Poucos dias antes de completar três anos, quase quatorze meses após receber parecer favorável da Procuradoria Geral da República (PGR) e depois de ter entrado na pauta três vezes e não ter sido julgada, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3944 foi finalmente considerada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 5 de agosto.
Ajuizada pelo PSOL em 21 de agosto de 2007, a ADI 3944 sustentava a inconstitucionalidade de quatro artigos (7º, 8º, 9º e 10º) do Decreto nº 5820, de 29 de junho de 2006. O Decreto 5820/2006 é, na verdade, uma continuação do Decreto nº 4901/2003 e, ambos, instituem e definem as regras de implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital no Brasil (SBTVD) [ver, neste Observatório, ‘Omissão do STF favorece radiodifusores‘].
Basicamente o relator, ministro Ayres Brito, considerou que se trata apenas da mudança da tecnologia analógica para a digital e que não há (a) novas concessões; (b) renovação de concessões por mais 10 anos; (c) favorecimento ao controle das concessões por uns poucos concessionários e (d) ofensa ao direito à informação nem ao princípio da publicidade. Outros seis ministros acompanharam o voto do relator, com uma única discordância: a do ministro Marco Aurélio de Mello.
Liberdade de expressão
Entre as razões apresentadas pela ADI 3944 e acatadas pelo parecer da PGR existe uma que merece especial atenção. Ela se refere à possibilidade de multiprogramação oferecida pelo Decreto 5820/2006 aos atuais concessionários do serviço público de radiodifusão. A multiprogramação favorece a concentração da propriedade. Dito de outra forma, restringe a possibilidade de que mais vozes sejam ouvidas ou, ainda, a universalização da liberdade de expressão individual. Diz a ADI:
‘Num canal de 6 megahertz, várias programações podem ser transmitidas simultaneamente, no que se convencionou denominar multiprogramação. Ao ‘consignar’ às emissoras um canal com tamanha capacidade, está-se, paralelamente, impedindo a entrada de outros atores na programação. Ao invés de se ampliarem as possibilidades de ingresso de outros canais, incluindo novas emissoras e permitindo acesso a programações variadas (…) tem-se uma verdadeira outorga de espaço maior às concessionárias que já atuam no mercado. O que provavelmente ocorrerá é o que a norma constitucional visa a impedir: o oligopólio, ou, melhor dizendo, um aprofundamento do oligopólio já existente.’
No seu voto o relator responde afirmando:
‘Se monopólio ou oligopólio estão a ocorrer nos meios de comunicação brasileiros, tal fato não é de ser debitado ao decreto ora impugnado, é algo preexistente’ (…) ‘Que a imprensa e o governo se façam dignos da nossa decisão, atuando no campo da proibição da oligopolização e da monopolização. Nós atuamos no campo do ‘dever ser’, no campo do ‘ser’ não atuamos’.
Não foi essa a opinião do único voto divergente. Para o ministro Marco Aurélio ‘toda concentração é perniciosa, daí a Carta da República prever trato de matéria mediante atos seqüenciais com a participação de instituições diversas’ (ver aqui).
A decisão do STF, todavia, implica em ignorar o ‘efeito silenciador’ de que fala o jurista Owen Fiss e que se aplica perfeitamente à grande mídia brasileira [‘Liberdade de expressão: o ‘efeito silenciador’ da grande mídia‘]. Conforme a decisão, não compete ao STF julgar se existe monopólio ou oligopólio na mídia brasileira. Essa seria tarefa da própria ‘imprensa ou do governo’ (sic).
Erro histórico
Tomo a liberdade de repetir aqui trechos da conclusão de artigo publicado na edição nº 581 deste Observatório. Dizia, então, que ‘uma das maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos ou seus representantes. No caso da adoção pelo Brasil do modelo japonês para a TV digital, não poderia haver clareza maior sobre quem ganhou e quem perdeu ou sobre quais, de fato, foram os interesses atendidos’.
Agora, bastaria verificar o que disseram os amicus curiae aceitos para apresentar suas razões contra a ADI 3944 no julgamento do STF (ver aqui).
O que sempre esteve em jogo foi a oportunidade ímpar para se democratizar o mercado brasileiro de televisão. A opção feita pelo Decreto nº 5820 – agora confirmada pela decisão do STF – favorece inquestionavelmente aos atuais concessionários deste serviço público e impede a ampliação do número de concessionários. Contraria, portanto, o princípio da ‘máxima dispersão da propriedade’ (maximum dispersal of ownership), vale dizer, da pluralidade e da diversidade.
Mais do que isso: impede a extensão da liberdade de expressão a um maior número de brasileiros. A liberdade de expressão – pedra angular da estratégia de combate da grande mídia no Brasil – seguirá sendo exercida prioritariamente por aqueles poucos grupos empresariais que equacionam liberdade de expressão com sua liberdade de imprensa.
Às vésperas da assinatura do Decreto 5820/2006, a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, que reunia cerca de 40 entidades, divulgou um manifesto que terminava com a afirmação: ‘O governo estará cometendo um erro histórico, que não poderá ser revertido nas próximas décadas’.
Com a decisão do STF o erro histórico está consumado.