‘A semana começou mal para a Folha. No domingo, um tumulto na entrada de um jogo amistoso superlotado deixou 15 feridos em uma comunidade pobre próxima a Johannesburgo. A editoria de Esporte manchetou no dia seguinte: ‘Copa experimenta dia de África’ e, na página interna, ‘África real’.
O professor mineiro Marcelino Cástulo Martins, 50, acusou o golpe. Ele defende que o jornal tinha que noticiar a confusão, ‘que revelou a desorganização do evento’.
‘Mas o título explicita preconceito, pois expressa uma ideia errônea de que, naquele rico continente, o normal são as confusões e a desordem’, escreveu Martins, que se identificou como negro e disse que procurava um ombudsman pela primeira vez.
Admirador da Folha, o professor está ‘fazendo todo o esforço mental para creditar a referida manchete a uma infelicidade no uso das palavras, nunca à revelação de um (in)consciente nefasto’.
Lauro Brito de Almeida, 57, professor universitário em Curitiba, negro, também ficou incomodado. ‘O jornalista vincula, subliminarmente, os relatos, mostrando a África como terra de bárbaros. Nunca vi tratamento igual quando ocorrem tumultos na Europa com o odioso comportamento dos ‘hooligans’’.
UNIÃO PELO AFETO
Três dias depois do deslize, o mesmo caderno descrevia a manifestação de apoio à seleção sul-africana, que reuniu milhares de torcedores brancos e negros, com o título ‘Todos por um’.
O texto falava das mulheres zulus ensinando danças tribais a crianças loiras e do encontro entre um torcedor negro pobre, que foi de lotação até o bairro chique de Johannesburgo, e um branco que ‘aterrissou’ no local a bordo de um Porsche.
O colunista Juca Kfouri, nesse mesmo dia, contava que a festa tinha sido comovente e citava o ‘esforço da África do Sul de reunificar-se pelo afeto’. Um dos repórteres enviados ao país relatava, durante um treino, o inesperado fato de um negro empunhar a bandeira da Holanda -os africâneres, descendentes de holandeses, foram responsáveis pelo apartheid.
De contraponto, na quinta-feira, havia a notícia de que jornalistas portugueses foram roubados enquanto dormiam em seus quartos de hotel, em texto que informava, no último parágrafo, que as televisões, inclusive as brasileiras, estão trabalhando com escoltas.
E também Pasquale Cipro Neto, que descreveu ruas vazias e restaurantes frequentados por brancos, servidos por negros, concluindo que o apartheid ainda não acabou ali.
CORDA BAMBA
A Folha parece estar se equilibrando nessa cobertura para não resvalar no preconceito (inconsciente), como aconteceu na segunda-feira, mas também para não edulcorar a realidade sul-africana.
O país é um campo minado para a imprensa: não pode ser visto como sinônimo de racismo e violência, mas não é essa festa solidária multirracial que domina as ruas durante uma Copa do Mundo.
Faz apenas 16 anos que Nelson Mandela foi eleito, tempo suficiente para apagar a linha divisória que separava o país entre brancos e negros, mas não para acabar com a desconfiança entre as várias etnias, que ainda persiste fortemente.
Cabe à imprensa mostrar essas contradições, mantendo distância do entusiasmo geral. Se cada país torce pela sua seleção, o mundo todo torce para que essa Copa dê certo. Seria um sinal de que as feridas provocadas pelo preconceito feroz são superáveis. De que a humanidade, enfim, é viável.’