Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Suzana Singer

“‘A gravata na Cracolândia.’ Esse era o título que acompanhava a sequência de fotos que mostrava, na capa da Folha de terça-feira, um homem na rua comprando, preparando e fumando o que parecia ser um cachimbo de crack.

As imagens mostravam claramente o seu rosto -não as reproduzo aqui, desfocando a face, porque, por telefone, ele me proibiu. ‘Não faça isso! Quero que me esqueçam’, disse, aos gritos.

Além de figurar na Primeira Página, o flagrante está na internet, em fotos e vídeo da Folha.com. Por que a Folha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?

‘Até hoje e na maior parte dos casos, a política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque o personagem, desta vez, vestia paletó e gravata’, diz a Secretaria de Redação.

O argumento de ‘já fizemos isso antes’ não convence. Um erro não justifica o outro. O correto é não expor ninguém, independentemente da sua situação econômica, porque o vício deve ser tratado como doença, e não como crime. É isso o que a Folha defende em seus editoriais.

Outra justificativa apontada pelos que defendem a publicação das fotos é a de que, ao se drogar na rua, a pessoa abre mão da privacidade. Mas será que um dependente químico tem discernimento para escolher onde e quando usará a droga?

O fato de estar em público não implica necessariamente abrir mão de decidir sobre a sua imagem. Uma mulher gorda de biquíni em Ipanema, fotografada sem perceber, pode processar uma revista se vir, alguns dias depois, sua imagem estampada em uma reportagem sobre dieta, por exemplo. Caberá ao juiz decidir se houve danos morais.

Se for uma atriz famosa, suas chances de obter uma indenização são menores, porque pessoas públicas estão mais cientes dos riscos que correm ao saírem de casa.

Do ponto de vista médico, a exposição dificilmente ajuda o dependente químico. ‘É o que chamamos de confrontação: diante de uma ameaça ou de um prejuízo muito grande, a pessoa procuraria ajuda, mas esse não é um modelo bem-aceito. O caso clássico é o do sujeito que bate o carro porque dirige bêbado. Ele fica sóbrio por um tempo após o susto, mas depois volta ao álcool’, explica o psiquiatra André Malbergier, do Hospital das Clínicas, que considerou ‘‘irresponsável’ a publicação das fotos.

Dos 44 leitores que escreveram para mim, só dois aprovaram a edição. Os demais tacharam-na de ‘antiética’, ‘insensível’, ‘um tiro na testa do infeliz’.

A Secretaria de Redação diz que foram discutidos os possíveis malefícios que a exposição traria à vida do retratado. ‘Mas o interesse público da reportagem fotográfica, de mostrar que o fenômeno do crack não se confunde com pobreza e não atinge apenas moradores de rua, prevaleceu na decisão de publicar as imagens’, afirma.

Ao apontar a lente teleobjetiva, como um dedo acusador, em direção ao homem grisalho na cracolândia, o jornal assume uma atitude policialesca que não lhe cai bem. ‘A Folha é um jornal que se rediscute constantemente. A política atual está sob discussão’, diz a Secretaria de Redação. Ainda bem, porque, na terça-feira passada, a Folha não parecia a Folha de sempre.

Folha avisa: transar no carro faz mal à saúde

Às vezes, o jornal faz humor involuntário. Aconteceu domingo passado, em Veículos, num texto que aproveitava o Dia dos Namorados para alertar: ‘sexo no carro é um risco para a saúde’.

Parecia pastiche do que se faz na Folha: tinha pesquisas (32% dos espanhóis transaram em veículos), especialista (‘em lesões ortopédicas ocorridas durante o ato sexual’), conclusão (‘pela configuração de bancos, equipamentos e comandos, o interior do automóvel é um ambiente hostil para namorar’) e dicas (‘três locais contraindicados: sofás, escadas e debaixo do chuveiro’).