Acabou-se. Após 168 anos, o tabloide britânico News of the World teve sua última edição publicada no domingo [10/7]. A capa trazia, em letras garrafais, a frase “Obrigado e Adeus” sobre uma colagem com imagens de manchetes antigas. Dentro do jornal, o leitor encontrava a história do News of the World; foco nos furos jornalísticos, borracha nos pontos baixos. Números não oficiais dão conta de que teriam sido vendidos 4,5 milhões de exemplares – 70% acima da circulação normal.
Em um editorial de página inteira, o jornal se desculpou aos leitores pelo escândalo que levou a seu fechamento. “Falando de maneira simples, nós perdemos nosso caminho. Telefones foram grampeados e por isso este jornal pede desculpas. Não há justificativa para esta terrível conduta. Não há justificativa para a dor causada à vítimas, ou para a profunda mancha que isso deixou em nossa grande história”.
Em artigo no Guardian [10/7], o colunista Charlie Brooker definiu a última edição como sentimental. “Não é uma surpresa, visto que foi feita por uma equipe que – não importa o que você pense dela – não grampeou o telefone de uma estudante assassinada. Independente disso, [estes jornalistas] perderam seus empregos; a mulher que era editora na época manteve o seu. Obrigado, Rebekah. E Adeus para sua equipe”, alfinetou Brooker, em um trocadilho com a frase na capa.
Gotas d’água
Rebekah é Rebekah Brooks, hoje executiva chefe da News International, braço britânico do grupo de mídia News Corp. Ela editava o News of the World em 2002, quando, com a ajuda de detetives particulares, o jornal grampeou o celular de uma menina desaparecida – que, soube-se depois, havia sido assassinada. Não contente com a invasão, o tabloide ainda apagou mensagens de voz da caixa postal do telefone, o que deu esperança aos pais da adolescente (e à polícia) de que ela estivesse viva.
Foi este caso a primeira gota d’água para a decisão da News Corp de fechar o News of the World. As irresponsabilidades do jornal não eram novidade. As histórias envolvendo grampos, também não. Mas até pouco tempo se pensava que as vítimas eram “apenas” figuras públicas; celebridades, atletas e políticos. Na última semana, além de Milly Dowler, a menina morta em 2002, descobriu-se também que o tabloide invadiu contas de telefone de parentes das vítimas do ataque à bomba ao sistema de transporte de Londres, em 2005, e de soldados britânicos mortos em conflito.
Situação feia
Foi o bastante para irritar o público e fazer com que políticos – de situação e oposição – cobrassem respostas. Nas redes sociais, internautas fizeram campanha por boicote, e anunciantes decidiram não mais anunciar nas páginas do jornal. Junto às mais novas revelações de grampos, surgiram acusações de que o News of the World teria ainda pagado propina a policiais. A situação ficou feia demais.
Na quinta-feira [7/7], James Murdoch, filho do magnata Rupert Murdoch e presidente da News International, anunciou o fim do jornal. Houve revolta na redação. Principalmente porque, enquanto muitas daquelas pessoas perderiam o emprego por um erro pelo qual não tiveram culpa, não havia sinal de que Rebekah Brooks perderia o dela. Na semana passada, Ed Miliband, líder do Partido Trabalhista, de oposição, chegou a defender que a executiva deixasse seu cargo. Mas, no domingo [9/7], Rupert Murdoch foi a Londres e saiu de sua casa ao lado de Rebekah, os dois sorrindo, para que todas as câmeras pudessem registrar o encontro. Quando perguntado sobre qual era sua prioridade, o magnata respondeu, apontando para a executiva: “esta”.
***
Compra da BSkyB por um fio
O escândalo do News of the World trouxe à tona um tema controverso: as relações entre magnatas de mídia, como Rupert Murdoch, e políticos. Em artigo no New York Times [9/7], o filósofo A. C. Grayling diz que a influência da News Corp na política e no debate público se tornou “profundamente corrosiva”. Afirma ele:
“O grupo de Murdoch influenciou cada eleição no Reino Unido desde a era Thatcher. Os dois maiores partidos políticos já cortejaram o senhor Murdoch na esperança por seu apoio; quando ela o dava, eles cresciam nas pesquisas. Em troca, ele recebia permissão para tomar o controle de cada vez maiores pedaços da paisagem midiática, enquando dissuadia o governo de regulações que pudessem atrapalhar suas operações”.
Deste modo, a confusão formada em torno do News of the World pode ter ajudado opositores do primeiro-ministro britânico, David Cameron, em seus esforços para impedir que Murdoch abocanhe 61% da operadora de TV por satélite British Sky Broadcasting (BSkyB).
Inicialmente, o órgão regulatório Ofcom analisava se a permissão para que a News Corp – hoje o maior conglomerado de mídia do mundo – tomasse conta da BSkyB daria a Murdoch poder demais sobre a mídia britânica. Mas as alegações de que editores de sua empresa estariam envolvidos em milhares de casos de escutas ilegais e propina a policiais para conseguir furos levou o Ofcom a considerar se os executivos da News Corp seriam pessoas “apropriadas” para dirigir a operadora de TV.
Murdoch já possui 39% da BSkyB, e seu objetivo para querer a companhia inteira seria torná-la mais parecida com a Fox News, sua empresa de TV nos EUA. Agora, especula-se que o empresário teria decidido encerrar o News of the World para que os escândalos sem fim não acabassem por minar de vez a compra.
O governo britânico já recebeu mais de 135 mil reclamações públicas contra a compra da BSkyB, e aos poucos foi crescendo a pressão para que o primeiro-ministro barrasse a proposta de Murdoch, pelo menos enquanto o caso dos grampos é investigado. Jeremy Hunt, ministro da Cultura, Mídia e Esportes, anunciou na segunda-feira, 11, que o governo encaminharia a oferta da News Corp para avaliação da Comissão Britânica de Concorrência. Agora, o órgão deverá fazer uma investigação completa para verificar se a compra não viola as regras contra monopólio do país, o que deverá levar meses.
***
Revisão das relações entre mídia e política
Em editorial no domingo [10/7], o jornal britânico Observer declarou que o escândalo dos grampos “expôs um império podre e a necessidade urgente de uma regulação de imprensa mais forte”. Continua o artigo:
“Por 40 anos, Murdoch convenceu o establishment de que podia erguer ou derrubar reputações políticas e dar ou tirar sucesso nas urnas. Ao fazê-lo, ele esteve próximo de comprar o parlamento, prejudicar os direitos dos cidadãos e minar a democracia. É legítimo questionar como um americano naturalizado, com domicílio em Nova York, nascido na Austrália, e que paga quase nada de imposto no Reino Unido, tem tanto poder. Que direito exatamente tinha este homem de exercer tanta influência sobre nossa vida política? Pedidos sob o ato de liberdade da informação revelam que ele falou com o primeiro-ministro Tony Blair por três vezes nos 10 dias que antecederam a invasão do Iraque, em 2003. O que ocorreu foi uma deturpação da nossa política, orquestrada por um homem cujo poder o establishment falhou em deter e teve que viver com as humilhantes consequências”.
O primeiro-ministro David Cameron precisou defender suas escolhas depois que seu ex-porta-voz Andy Coulson foi preso na sexta-feira [8/7] por envolvimento com o caso dos grampos do News of the World. Coulson era editor do tabloide quando veio à tona que um detetive particular contratado pelo jornal teria hackeado contas de telefones dos príncipes William e Harry. No início de 2007, o detetive, Glenn Mulcaire, e o repórter que cobria a família real, Clive Goodman, foram condenados pela invasão e passaram meses na cadeia.
Coulson alegou que não tinha conhecimento dos grampos, mas pediu demissão por ter falhado em seu cargo. No mesmo ano, foi contratado por Cameron. O porta-voz deixou o governo em janeiro, depois que as investigações sobre os grampos do tabloide foram reabertas. No fim da semana passada, foi preso por “suspeita de conspiração”.
Diante das questões, o primeiro-ministro prometeu novas formas de controle sobre a mídia britânica. “Este escândalo não é apenas sobre jornalistas em um jornal”, afirmou Cameron. “Também não é apenas sobre a imprensa. É sobre a polícia. E, sim, sobre como funciona a política e os políticos”.
***
O que a imprensa falou
Veículos de imprensa britânicos e americanos publicaram uma enxurrada de artigos analisando o escândalo dos grampos, o fechamento do News of the World e a influência política de Rupert Murdoch. Alguns trechos:
“Não há um aspecto que amenize o escândalo que engoliu o feudo britânico de Murdoch, a News International, e agora matou seu jornal de maior circulação, o News of the World. Este tabloide fez seu dinheiro cruzando regularmente o limite da decência; a revelação de que também cruzava regularmente o limite da legalidade não é suspresa para ninguém, já que ninguém esperava nada melhor. O que horrorizou o público britânico é a natureza das ilegalidades. Os jornalistas de Murdoch não apenas hackearam os telefones de crianças vítimas de assassinato e de seus pais, como os das famílias de vítimas de atentados terroristas e de soldados mortos no Afeganistão e Iraque. E, em busca de escândalos sexuais e políticos, eles invadiram os telefones de milhares de outros; a polícia de Londres diz ter uma lista de quatro mil pessoas que podem ter sido alvo de menitoramento.” – A. C. Grayling [The New York Times, 8/7/11].
“De repente, Rupert Murdoch parece menos um magnata global, e muito mais um pequeno homem de vidro. Ele voa a Londres este fim de semana de Sun Valley, Idaho, a tempo para os últimos ritos do jornal dominical de maior sucesso no Reino Unido, o News of the World. Cento e sessenta e oito ano atrás, o jornal garantiu: ‘Nosso lema é a verdade, nossa prática é a defesa destemida da verdade’. Depois de hoje, o tabloide não existirá mais, derrubado não apenas por um repórter ruim, mas pela arrogância, ambição e aparente tolerância de um comportamento criminoso sistêmico por membros da alta administração da News International”. – Editorial –The Observer [10/7/11].
“Quase todos os primeiros ministros desde a era Harold Wilson nos anos 60 e 70 prestaram reverência a Murdoch e seu incomparável poder. Quando Murdoch ofereceu sua festa anual de verão em Londres para a elite política, jornalística e social do Reino Unido, na Orangery [salão de chá] dos Jardins de Kensington em 16 de junho, o primeiro-ministro Cameron e sua mulher, Sam, estavam lá, assim como o líder trabalhista Ed Miliband e outros ministros. Companheiros de Murdoch antigos e atuais – e seus biógrafos – já disseram que uma de suas maiores e mais antigas ambições era repetir este poder político e cultural no Estados Unidos”. – Carl Bernstein [Newsweek, 11/7/11].
“É preciso algum esforço para irritar um país inteiro por causa de uma conduta de mídia imprópria, mas o News of the World conseguiu. Ao invadir os telefones de vítimas do terrorismo e de uma menina de 13 anos desaparecida e depois encontrada morta, o tabloide londrino se tornou um símbolo tão desprezível de jornalismo que deu errado que o gigante midiático Rupert Murdoch se sentiu obrigado a fechá-lo no domingo. Mas a queda é apenas um exemplo extremo de um modelo de negócios de notícias que cada vez mais ultrapassa os limites éticos – e talvez de um público que quer a parte picante, mas não sabe muito bem como ela é obtida”. – Howard Kurtz [The Washington Post, 10/7/11].
“O escândalo dos grampos que se desenrola no Reino Unido, com prisões, artifícios escusos e troca de influências, seria uma história deliciosa para o News of the World se não fosse sobre o próprio jornal. Em vez disso, o caçador virou a caça, e na última quinta-feira a News Corporation de Rupert Murdoch empurrou sumariamente o jornal de 168 anos embaixo de um ônibus de dois andares”. – David Carr [The New York Times, 10/7/11].
“No passado, os 63% da imprensa britânica que não pertencem a Murdoch sempre foram muito preguiçosos, medrosos ou intimidados para preparar e suportar um ataque. Desta vez, graças aos esforços liderados pelo Guardian, à forte oposição do líder trabalhista Ed Miliband, que pretende forçar uma votação na Câmara dos Comuns, e ao amplo volume de grampos e subornos revelados, a sensação é diferente”. – Tina Brown [The Daily Beast, 10/7/11].
“Há muitos desafios complexos e delicados à frente. Eles incluem a composição e apresentação de um inquérito público; como, no futuro, os jornais serão regulados; e o que acontecerá com relação à propriedade da BSkyB. Esta será uma história longa e de final incerto. Há uma pequena certeza. Na relação entre a mídia, os políticos e a polícia, nada será como antes.” – Steve Richards [The Independent, 7/7/11].
Leia também
As notícias do mundo – Alberto Dines
News Corp fecha o News of the World
O tabloide sensacionalista e o telefone da menina morta
A desgraça do jornalismo – Carlos Eduardo Lins da Silva
***
[Edição de Leticia Nunes]