Da primeira telenovela levada ao ar no Brasil – ‘Sua vida me pertence’, exibida ao vivo, com poucos recursos, pela antiga TV Tupi – às superproduções atuais, seis décadas se passaram. O maior fenômeno da cultura de massa no Brasil pode estar com a fórmula desgastada, como apontam especialistas no tema, mas ainda representa lucro certo para as emissoras que investem pesado nesse filão. Somente a líder em audiência, a TV Globo, veicula seis novelas por ano. Cerca de 60 personagens prendem em média 40 milhões de telespectadores por dia em frente |
financeiro do mercado publicitário, as telenovelas ditam moda e influenciam o
comportamento do brasileiro. O Observatório da Imprensa exibido na
terça-feira (21/12) pela TV Brasil analisou o impacto da teledramaturgia no
Brasil.
Para traçar um panorama sobre o assunto, Alberto Dines recebeu no estúdio do
Rio de Janeiro Mauro Alencar e Rose Esquenazi. Autor do livro A Hollywood
Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, Alencar é doutor em
Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela Universidade de São Paulo
(USP) e membro de entidades acadêmicas como a Academia de Artes e Ciências da
Televisão de Nova York. Rose Esquenazi, jornalista, é professora de História do
Rádio e da TV no Brasil na PUC-Rio, foi editora das revistas Domingo,
Vida, e Amiga; no Jornal do Brasil trabalhou nas revistas
TV Programa e Ponto TV e durante cinco anos escreveu sobre a
memória da TV brasileira na coluna ‘Seção Nostalgia’, do JB.
Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines ressaltou que o Brasil não
criou a telenovela, embora a produza com alto padrão de qualidade. ‘Ela é filha
das radionovelas, ambas herdeiras das revistas de fotonovelas, todas
descendentes dos romances em folhetim que, no século 19, tornaram célebres
escritores do porte de Balzac, Dickens e Dostoievski. Todas têm como ancestrais
as tragédias gregas e o seu formidável acervo de incestos, vinganças, doidas
ambições e paixões desvairadas’, explicou Dines.
A telenovela em novos tempos
O Observatório entrevistou o escritor de novelas Manoel Carlos,
contratado da TV Globo, o professor de Comunicação Muniz Sodré, presidente da
Fundação Biblioteca Nacional, e o jornalista Eugênio Bucci. Manoel Carlos
assegurou que a telenovela é o produto de maior sucesso da televisão brasileira.
Para o dramaturgo, as novas tecnologias da comunicação tiveram um forte impacto
na forma como a novela é assistida. Se, antes, toda a família se reunia diante
de um aparelho na sala, hoje se pode assistir aos capítulos a qualquer momento
na internet ou até pelo telefone celular. E esses novos hábitos não estão sendo
contabilizados como audiência.
‘Ela não tem a grande audiência que tinha antes porque isso tudo se diluiu em
outras mídias. Isso diminui muito o impacto da telenovela no ar no momento em
que ela é exibida. A novela é o produto cultural popular brasileiro mais
importante. Não existe nada que possa competir. Porque mesmo com esta diminuição
da audiência, são 40, 50 milhões de pessoas que vêem diariamente a novela. Já
teve 70 milhões. Que livro teve esta edição? Que disco atingiu isso?’, disse. O
escritor destacou que os telespectadores gostam de assistir aos capítulos sempre
no mesmo horário e, por isso, a TV Globo não muda a programação diante de
qualquer evento. ‘A novela realmente tem uma grande influência no caso do
Brasil, mas é sempre uma coisa extremamente provisória’, explicou. O folhetim
dita hábitos, moda, leva as pessoas a seguirem o comportamento de personagens,
mas por pouco tempo. Logo que a próxima novela estréia, o telespectador deixa de
lado os modismos do folhetim anterior.
Muniz Sodré destacou que a telenovela faz sucesso na América Latina e também
em países como Portugal e China. ‘Ela é a narrativa em estado bruto. Não há nada
que apele mais à consciência do que a contação de histórias’, avaliou. O
professor lembrou que a tradição da telenovela é originária dos folhetins
publicados nos jornais no século 19. ‘O folhetim era tão atraente que Théophile
Gautier, no século 19, disse que tinha doentes que adiavam a própria morte para
não perder o último capitulo de um folhetim chamado Os mistérios de
Paris‘, lembrou.
Cabeça vazia
Se a fórmula parece saturada, na opinião de Muniz Sodré, pode estar prestes a
mudar porque todos os elementos já foram experimentados. ‘Eu acho que não muda
exatamente por isso. Porque a saturação é bem recebida também. É a
descomplicação. É o nível zero de informação, e quando você tem nível zero de
informação você pode se divertir exatamente com esse nível zero. É isso que para
o intelectual às vezes é difícil de entender. Ele sempre espera que o púbico se
eleve, queira complicação, e o público quer mais é o seguinte: que não lhe
encham o saco’, avaliou. Sodré considera os roteiros das telenovelas
inteligentes e destacou que telenovela é literatura, mesmo que fora do papel,
porque é uma narrativa. ‘Se boa ou má literatura? Eu diria que é uma literatura
para grande consumo, para grande público, assim como tem muita literatura
escrita assim também’, analisou.
No Brasil, o modelo de telenovela encontrou uma renovação que não aconteceu
em outros países, de acordo com a avaliação de Eugênio Bucci. ‘A telenovela não
ocupa o vazio deixado pela falta de teatro, pela falta de literatura. Antes, o
contrário. Ela é uma possibilidade de ingresso nestas outras linguagens, até
para o mercado de trabalho dos atores’, disse. Bucci destacou que pode ser
preconceito afirmar que as pessoas não apreciam o teatro de boa qualidade porque
vêem muita novela. ‘Essa é a nossa história cultural, é a formação do
brasileiro. E muitas coisas boas saíram daí. O raciocínio de que vai nos levar a
pensar que haveria mais teatro se houvesse menos novela é muito traiçoeiro,
perigoso, e pode conduzir a alguns desastres autoritários’, sublinhou.
No debate no estúdio, Rose Esquenazi disse que este é um momento de crise da
telenovela brasileira por conta das novas tecnologias. No passado, as novelas
chegavam a alcançar 100 pontos de audiência e hoje a média das que fazem grande
sucesso é de 36. ‘A novela não tem o carisma que tinha antigamente, em outras
épocas. Eventualmente, algum produto que tem um debate, alguma coisa, atrai a
população. Mas há uma divisão’, disse. Rose avalia a falta de unanimidade com um
dado positivo. ‘Tem coisas que eu acho questionáveis. Você ficar dez meses preso
a uma trama uma hora e quinze minutos por dia é muito tempo de uma vida. Acho
que hoje em dia o jovem está buscando outras saídas e a novela ele vê mais ou
menos pelos pedaços’, comentou. A jornalista destacou que o Brasil é um renomado
produtor de novelas e exporta os folhetins para mais de cem países.
Noveleiros em todo o mundo
Dines relembrou que a novela ‘Roque Santeiro’, exibida pela TV Globo nos anos
1980, teve mais de 200 capítulos e criticou o hábito de ‘esticar’ a trama das
novelas. Mauro Alencar explicou que, por um princípio dramatúrgico, a telenovela
precisa preencher mais de 100 capítulos. Mesmo com a perda de audiência,
continua angariando e galvanizando uma população ‘gigantesca’. Estima-se que as
telenovelas alcancem 2 bilhões de telespectadores ao redor do mundo. ‘A tão
refratária BBC está arregaçando as mangas para a produção de ‘Betty, la Fea’’,
disse. Dines comentou também que elementos das tragédias gregas, como incesto e
traições, continuam presentes nas telenovelas de hoje, porém de uma forma
simplificada. ‘É isso que atrai tanto a audiência. Seria uma espécie de
compensação e de uma ancestralidade. Aquilo acordaria no indivíduo
reminiscências as mais remotas possíveis da origem do homem’, explicou Mauro
Alencar.
Para o especialista em novelas, o produto ‘é um grande negócio, é fascinante
e faz vender revista a rodo’. Rose Esquenazi ponderou que há uma diluição da
audiência comprovada pelas pesquisas do Ibope e Alencar chamou a atenção para o
fato de que as novas mídias também se alimentam das novelas, mas o fenômeno não
é quantificado. ‘Quando eu me recordo de impactos como ‘O Bem Amado’,
‘Gabriela’, ou mesmo ‘O Grito’, que foi tão polêmico, para mim, sinceramente,
pouca coisa mudou. Apenas ampliou-se a repercussão mediante essas outras
mídias’, avaliou. Na opinião de Rose, falta um equilíbrio nos hábitos
brasileiros. Seria ‘mais saudável’ se o telespectador, além da acompanhar as
novelas, freqüentasse teatros ou lesse livros. A novela é apenas uma ‘forma
narrativa a mais’, além do cinema e do teatro, na opinião de Mauro Alencar.
O lado positivo da novela, para Rose Esquenazi, é promover uma espécie de
psicanálise da família. ‘Desde o começo era assim, desde ‘O Direito de Nascer’.
Com os personagens, você fala do seu problema pessoal, do problema do vizinho,
‘aquele ali é alcoólatra’, ‘aquele tem problema com drogas’. Você discute, faz
uma psicanálise mesmo. Pode não estar falando do seu problema familiar, mas está
falando da família do outro, que é parecida com você. Eu acho que a novela tem
essa preocupação’, disse. Outro ponto positivo é levantar o debate de temas
polêmicos e ousados como transplante de medula, doação de órgãos e inclusão de
pessoas com síndrome de Down através do merchandising social.
Válvula de escape
Dines questionou se a telenovela é apenas uma forma de escapar da realidade
ou pode ser um instrumento para compreendê-la melhor. Para Mauro Alencar, a
telenovela cumpre as duas funções, pois ao mesmo tempo em que provoca uma
catarse, também serve para conscientizar o povo e tem um ângulo transgressor.
‘Se assim não fosse, a censura federal não teria ficado tão estremecida com
algumas telenovelas como ‘O Bem Amado’, ‘Selva de Pedra’ e, sobretudo, ‘Roque
Santeiro’’, disse. Na opinião de Rose Esquenazi, falta reflexão sobre o papel
dos folhetins. ‘O público tem um olhar, às vezes, crítico. Mas você chega em
casa cansado, depois de um dia inteiro de trabalho, pegou duas horas de
trânsito. Você não quer nem pensar. Você liga ali e deixa. Essa reflexão os
jornalistas têm que fazer. Só que a crítica não é muito bem-vinda, mexe com os
brios, as pessoas são muito frágeis’, avaliou Rose.
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Quem matou Saulo?
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 577, exibido em 21/12/2010
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Na reta final da campanha eleitoral, a pergunta que se fazia em milhões de
casas brasileiras depois dos telejornais da noite não era ‘quem vai ganhar?’ e,
sim, ‘quem matou Saulo?’. O grande enigma da telenovela ‘Passione’, no ar há
sete meses, ultrapassou as eleições e ainda está em cartaz.
O Brasil não inventou a telenovela, ela é filha das radionovelas, ambas
herdeiras das revistas de fotonovelas, todas descendentes dos romances em
folhetim que, no século 19, tornaram célebres escritores do porte de Balzac,
Dickens e Dostoievski. Todas têm como ancestrais as tragédias gregas e o seu
formidável acervo de incestos, vinganças, doidas ambições e paixões
desvairadas.
Na TV americana, as novelas eram chamadas de soap-operas, geralmente
patrocinadas por sabonetes – daí o nome – que duravam anos. As nossas são mais
curtas. Mas a nossa contribuição não pode ser minimizada: trouxemos ao gênero o
esmero do cinema com superproduções, às vezes gravadas no exterior,
acrescentamos as técnicas de marketing que permitem desenvolver as tramas de
acordo com o gosto da audiência e oferecemos horários nobres, nobilíssimos,
pouco antes ou durante o jantar, quando a família se reúne e, em vez de
conversar sobre os seus problemas, discutem as emoções trazidas pela
telinha.
Hoje temos dez novelas inéditas correndo simultaneamente em quatro redes
abertas, além de algumas outras reprisadas em canais abertos e por assinatura. É
uma indústria com dimensões hollywoodianas servindo de veículo para grandes
anunciantes, movimentando riquezas e trazendo grandes lucros do exterior.
Com enredos geralmente empurrados por crimes e com personagens criados
basicamente para produzir surpresas e reviravoltas, as telenovelas são iguais no
conjunto, mas surpreendentes quando acompanhadas no dia a dia. Graças às
simplificações – da dramaturgia e da realidade – quando chegam ao clímax
conseguem manter ligados praticamente a totalidade dos televisores, mudam os
hábitos e rotinas dos telespectadores e até influem na pauta nacional graças à
intensa exposição na mídia impressa.
Fenômeno mediático, controverso, tema obrigatório do Observatório da
Imprensa.