GLAUCO
Glauco revelava os políticos no delírio infantil do poder
‘Quando morrem, os humoristas não merecem ir para o céu. Assassinado junto com o filho, Raoni, na madrugada desta sexta-feira, em Osasco (SP), o cartunista Glauco Villas Boas inviabilizou seu passaporte para o lugar-comum dos vertebrados: era impertinente, livre, subversivo e de oposição. Olhando bem, nesta República poucos justificam os quatro carimbos. Não confundir um humorista com os piadistas e os imitadores anedóticos. Estes são aceitos em qualquer festa. Os humoristas, em seus confrontos de Oscar Wilde, Dorothy Parker ou Millôr Fernandes, não gozam descanso terreno ou eterno.
Sem coincidência, Glauco se hospedou por nove meses no lendário apartamento de Henfil na rua Itacolomi, em São Paulo, nos anos 70. Esse encontro de fradins e geraldões insinuava um ritual de passagem do humor do ‘Pasquim’ para o da geração de craques como Laerte, Angeli e Glauco. Não havia admiração pacífica. A agilidade do traço de Henfil, quase ‘caligráfico’ – como destacava Jaguar -, e a liberdade no uso do espaço do cartum contagiaram ‘Los 3 Amigos’. ‘Estou falando com Deus, pensava, quando conheci o Henfil. Os Fradinhos, aquele traço todo solto, o uso do palavrão – o trabalho dele era um avanço muito grande’, declarou numa entrevista.
Mas o que o distanciava do mestre era justamente o que determinaria a personalidade artística de Glauco: o impulso dessacralizador da política. A partir de 1977, iniciou sua colaboração com a ‘Folha de São Paulo’, no momento em que o humor vivia o conflito entre a militância e a contestação da esquerda. Ele reduzia a República a seus elementos mais infantis, para revelar o nonsense de engravatados e congêneres. Fernando Henrique Cardoso, papada e tremedeiras de intelectual da primeira infância. Lula, charuto híbrido de sindicalista e líder plenipotenciário. Os gestos infantis são, óbvio, fundadores do ser humano. E Glauco descascava as pompas dos políticos brasileiros até deixá-los montados num cavalinho. Não parece o Arruda num carrossel?
Suas charges (‘cartuns editoriais!’ – bradaria o humorista Osmani Simanca), na página de Opinião da ‘Folha’, vibravam nesse Olimpo dos palpiteiros do jornalismo (sempre revestidos de uma gravidade que não se ajusta à nossa esquina). A surpresa da caricatura nascia do movimento, dos nervos. Geraldinho e Geraldão, Dona Marta, Zé do Apocalipse e Doy Jorge se metem em tumultos vários, alguns deles animalescos – em diálogo e traço. Glauco banqueteou-se com o budismo, Carlos Castañeda, Osho e o Santo Daime. Agora vemos que tinha uma clarividência corrosiva. No desassossego com a notícia de sua morte, a última tirinha da Dona Marta desconcerta por enquadrar a violência:
‘- Chefinho tenso… Vou fazer uma massaginha…
– Experimenta! (Clic! Revólver apontado)
– Experimento, fica bem quietinho! (Fuzil na nuca).’
Glauco morreu aos 53 anos, em sua casa. Quatro tiros no (nosso) peito. Os deuses dos grandes humoristas costumam falhar. E ouvimos Geraldão, no quadrinho final: Mãe, que merda!’
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