Todos sabem que é apenas uma questão de tempo. Os jornais do mundo inteiro voltarão a publicar as mesmas manchetes, somando outros tantos mortos em qualquer outro país da Europa ou mesmo nos Estados Unidos, vítimas de atentados.
As casas de apostas talvez ainda não tenham se dado conta deste novo filão. Em todo caso, não será surpresa se abrirem lances para o jogo macabro, em nome de qualquer um desses malditos expedientes para se ganhar dinheiro a qualquer custo.
Enquanto as apostas não chegam, a bolsa satisfaz muita gente.
Milhares de investidores e instituições, segundo The Sunday Times, embolsaram milhões de libras com a oscilação da bolsa em seguida às explosões em Londres.
A British Petroleum e a Vodafone estão entre as maiores empresas britânicas beneficiadas pela roleta financeira. Além delas, mais de 8 mil investidores estão rindo à toa, com os bolsos bem forrados. Eles compraram ações na quinta-feira sangrenta raciocinando corretamente que subiriam em seguida. Clive Cooke, executivo de uma empresa de cotação de ações, relatou ao Sunday Times que se deparou com ‘uma avalanche de compradores, um total desespero’.
Dinheiro, mais do que nunca, parece ser a única força a mover o mundo, desbancando a primeira lei da termodinâmica (conservação de energia) e a gravitação de Newton.
A contextualização
Francis Bacon, pai metodológico da ciência moderna, deve estar mordendo a língua em alguma dimensão, arrependido pela previsão de que as sociedades que viessem a cultivar ciência estariam livres de sofrimentos mundanos. Seus problemas estariam restritos a decifrar novas questões ligadas apenas ao conhecimento.
Pobre Bacon, que descanse em paz, apesar dos equívocos.
A leitura rápida dos jornais, o noticiário melodramático da TV, as notas curtas da internet e os comentários teatralizados do rádio sugerem que não há alternativas ao caos alienante.
Nesses momentos de profundo ceticismo, quando nada mais parece refletir alguma coerência lógica, os jornais demonstram a eficácia de que ainda dispõem.
E a eficácia dos jornais vem de onde sempre veio: do talento de repórteres capazes de produzir seus escritos com sobriedade, profundidade e abrangência literárias. Neste caso, tudo o que os leitores devem fazer é escapar momentaneamente da superficialidade e retirar dos jornais o que eles têm de melhor: a contextualização dos acontecimentos como forma de se obter inteligibilidade possível.
Pessoas solitárias
No caso de artigos relacionados ao atentado londrino, publicados por jornais brasileiros, mais especificamente os dois grandes jornais de São Paulo, o melhor veio de republicações. Combinados com material produzido por correspondentes, iluminam os bastidores, e se não eliminam a sensação de caos, enquanto impotência para reversão de um desastre previsível, ao menos fornecem inteligibilidade.
O Estado de S. Paulo republicou (pág. A17, 10/6) artigo de David Leppard e Nick Fielding produzido originalmente para The Sunday Times que pode estar na base da elucidação do atentado que atingiu o coração de Londres. O ataque pode ter sido obra não de ativistas estrangeiros em conexão com Osama bin Laden, mas de ativistas islâmicos britânicos e autônomos.
Um estudo que Tony Blair leu no início do ano passado mostra que a frustração poderia facilmente coagir jovens muçulmanos nascidos na Grã-Bretanha (‘pessoas solitárias e desapegadas, incapazes de se encaixarem em suas comunidades’) a se transformarem em terroristas. E isso pode ter acontecido em Londres na quinta-feira rubra, segundo a polícia e o MI-5, o serviço interno de inteligência, citados pelo jornal.
Filosofia rasa
Uma fonte muçulmana não identificada pelos repórteres confirma o conteúdo do estudo relatando que ‘há um crescente fenômeno de jovens muçulmanos enraivecidos na Grã-Bretanha’. Esses garotos não aparecem em banco de dados dos serviços de informação ligados ao terrorismo. São gente limpa, sem antecedentes.
O artigo do Sunday Times republicado pelo Estadão (articula-se perfeitamente com o que escreveu David Gardner, do Financial Times (republicado pela Folha de S. Paulo, 10/6, pág A23), sobre os Estados Unidos e seus aliados nessa cruzada mundana contra o islamismo e a versão fabricada em Washington de um suposto ódio árabe devido ‘às nossas liberdades, nossos valores e por tudo aquilo que somos e pensamos e não por alguma coisa que fizemos’.
A filosofia rasa pode ter levado George W. Bush à Casa Branca, mas não lhe daria emprego num jornal sério. Gardner deixa isso claro ao escrever que a realidade aponta para um choque sem conciliações no interior do mundo árabe devido ao apoio inescrupuloso dos Estados Unidos e seus aliados na sustentação, à custa de petróleo barato, dos déspotas mais repugnantes dessa parte do mundo. A fila pode iniciar-se com Saddam Hussein, lapidado pelos Estados Unidos para uso contra a ameaça potencial do Irã.
Talking to Terrorists
Osama bin Laden, o inimigo número 1 do ‘mundo livre’, é outro subproduto dos interesses dos Estados Unidos, neste caso envolvendo o conflito que os soviéticos mantiveram e perderam no arrasado e ainda mais miserável Afeganistão.
Ao invadir o Iraque, em busca de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas, Bush apenas aumentou o descontentamento latente, o que desqualifica as versões de que o mundo islâmico (que necessariamente não significa árabe, mas se confunde com ele) está despreparado para a democracia.
Gardner avalia que talvez não sobreviva no mundo árabe outra razão capaz de provocar maior revolta que esse conluio entre tirania e repressão, expondo as raízes de um conflito que Deus sabe aonde conduzirá este mundo globalizado pela desigualdade.
Neste contexto, é fundamental a referência à peça Talking to Terrorists (Falando com terroristas) no Royal Court Theatre entre 30 de junho e 30 de julho. É a força e a beleza da arte acenando com alguma promessa em meio ao apodrecimento de valores.
Sem infância
Quando os sociólogos com suas limitações inerentes e os economistas – responsáveis por boa parte do malogro social da sociedade moderna – não têm praticamente nada a fazer de imediato, a literatura, pelo teatro, e mesmo o jornalismo, promete alguma chance de reconstrução.
Robin Soans, o autor, Max Stafford-Clark, o diretor, além dos atores e da equipe técnica de Talking to Terrorists conversaram demoradamente com terroristas de diferentes partes do mundo, incluindo políticos envolvidos em negociações e vítimas de ações. O resultado disso está expresso num trecho da peça: ‘Uma grande parte do que chamamos terrorismo surge do fato de ninguém ouvi-los’, uma frase capaz de demolir na base os argumentos de George W. Bush e seus falcões.
Bush não teve infância. Sua mãe, fria e distante, nunca leu para ele e os irmãos uma única passagem das Mil e uma noites, outra promessa perdida pela literatura de evitar um massacre de desavisados, entre eles jovens soldados norte-americanos, desempregados recrutados nas pequenas cidades do interior.
A cultura árabe
Na abertura da peça, de acordo com texto de Érica Fraga (FSP, 10/6, pág. A 24), personagem inspirado na ex-ministra da Irlanda do Norte Marjory Mowlan diz que ‘falar com terroristas é a única forma de derrotá-los. Eu não consigo compreender porque Tony não entendeu isso’.
Nem Tony, nem Bush (pai e filho), nem significativa parte da mídia pautada pelo emocionalismo mais rasteiro e por isso mesmo incapaz de outro resultado senão uma rejeição crescente por algo que, em essência, nem se sabe o que é. Sem falar de escritos oportunistas, em que seus autores não fazem mais que desfiar rancores pessoais, embutindo-os convenientes no espaço entre os fatos.
A simples leitura da denominação das estrelas, uma enorme quantidade delas com nomes árabes, caso de Altair (alfa de Águia) Alnair (alfa de Grou, 250 vezes mais brilhante que o Sol) ou as Três Marias (Alnilam, Mintaka e Alnitak) seria suficiente para rebater uma intolerância crescente contra a cultura árabe que preservou, ampliou e nos devolveu o classicismo grego para a fermentação do Renascimento.
Movido a dinheiro
Bush, historiador que não hesitou em golpear fundo o berço da própria história (o que psicanaliticamente ajuda a entender um de seus passatempos prediletos na vida universitária, de queimar o traseiro de colegas com cigarros acesos, ou explodir sapos e rãs com bombinhas), talvez pela frieza da mãe permaneceu refratário à literatura. Tony Blair, no entanto, tem a ganhar se se dispuser a abrir os ouvidos a Talking to Terrorists.
O pragmatismo da América e as limitações pessoais de George W. Bush oferecem condições menos promissoras em termos de uma reformulação de idéias mesmo com as lições, aparentemente não-assimiladas, do Vietnã.
Na América, certamente mais que na Inglaterra, a guerra é hoje o sinônimo mais próximo de negócios e oportunidades. A belíssima reportagem de Leslie Wayne para o New York Times, que o Estadão reproduziu com o título de ‘Depois da guerra, os bons negócios’ (OESP, 10/6, pág. A20) é a melhor prova disso.
Numa entrevista com o general Henry Hugh Shelton (comandante do Estado-Maior Conjunto e o mais alto consultor militar do governo Bush à época do 11 de Setembro), Wayne escancara os bastidores da guerra, movido exclusivamente por dinheiro, da procedência mais podre e repugnante que se pode imaginar.
A resposta
Bem instalado em sua casa de praia, em Morehead City, na costa da Carolina do Norte, o general, agora na reserva, estrilou mais de uma vez contra as abordagens de Wayne, mas isso, longe de inibir, dá consistência a um trabalho de impressionante denúncia de que os leitores só não tomam conhecimento se não estiverem dispostos a ler.
Nas coxias da guerra o dinheiro jorra como num poço de petróleo para quem não estiver preocupado em se sujar: do lobby armamentista incluindo empresas como a Anheuser-Busch (produtora da cerveja Budweiser vendida nas bases militares norte-americanas de todo o mundo), estendendo-se a funções como conselheiros técnicos e comentaristas da TV.
Há uma decomposição crescente nas mais diferentes partes do mundo, permeadas pela busca enlouquecida do dinheiro. Os golpes mais sujos são aplicados com as justificativas mais variadas, desorientando completamente as pessoas elevando a que elas se perguntem se vale a pena serem honestas.
A resposta está na literatura. A literatura que permeia o teatro e o bom jornalismo.