O escritor gaúcho Moacyr Scliar, que havia sofrido um acidente vascular cerebral isquêmico e estava internado no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre desde 17 de janeiro, faleceu, aos 73 anos, na madrugada de sábado para domingo, vítima de falência múltipla de órgãos. O velório foi realizado na tarde de ontem, no salão Júlio de Castilhos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O sepultamento, aberto apenas para familiares e amigos, estava previsto para a manhã de hoje, no Cemitério Israelita de Porto Alegre.
‘Não preciso de silêncio, não preciso de solidão, não preciso de condições especiais. Preciso só de um teclado.’ Em meio a dezenas de depoimentos de autores sobre as mais diferentes manias no momento de escrever, publicados desde o início do ano passado no blog do escritor Michel Laub, o de Scliar se destacou pelo pragmatismo: para o criador prolífico e naturalmente inspirado, o único impedimento para a escrita seria a falta da ferramenta com a qual levá-la a cabo.
Tanto era assim que, em quase 50 anos de carreira literária, o porto-alegrense publicou mais de 80 livros – o primeiro, Histórias de um Médico em Formação, em 1962, mesmo ano em que concluiu a faculdade de medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e o mais recente, o romance Eu Vos Abraço, Milhões, em setembro do ano passado. Entre um e outro, publicou romances e livros de crônicas, contos, literatura infantil e ensaios, numa média de mais de um livro por ano, com destaque para O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes, O Exército de um Homem Só e O Centauro no Jardim.
Tudo isso mantendo os critérios que o tornaram um dos mais reconhecidos autores brasileiros contemporâneos em solo nacional, com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desde 2003 e três Jabutis (1988, 1993 e 2009); no exterior, teve obras publicadas em 20 países e recebeu honrarias como o Prêmio Casa de Las Americas, em 1989.
Isso, sem deixar de lado a carreira na medicina. Na área, destacou-se desde 1969 em cargos como chefe da equipe de Educação em Saúde da Secretaria da Saúde do RS e diretor do Departamento de Saúde Pública. Entre o lançamento do livro de contos que Scliar preferia considerar como sua primeira obra profissional, O Carnaval dos Animais, em 1969, e o primeiro romance, A Guerra no Bonfim, em 1971, encontrou tempo ainda para cursar pós-graduação em medicina comunitária em Israel. Ainda no início da década passada, em 2002, concluiu doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, com a tese ‘Da Bíblia à Psicanálise: Saúde, Doença e Medicina na Cultura Judaica’.
Jornais, revistas, cinema
A tradição judaica o acompanhou em toda a carreira literária, assim como o imaginário fantástico – nascido em 23 de março de 1937 no bairro do Bom Fim, que até hoje reúne a comunidade judaica de Porto Alegre, e alfabetizado pela mãe, Sara, que era professora primária, Scliar chegou a ter o romance O Centauro no Jardim incluído numa lista com os cem melhores livros relacionados à história dos judeus dos últimos dois séculos, elaborada pelo National Yiddish Book Center. Também se tornou um grande porta-voz do País sobre temas relativos ao judaísmo, mantendo laços de amizade com alguns dos maiores autores israelenses no mundo contemporâneo, como David Grossman, A.B. Yehoshua e Amos Oz.
A especialização em saúde pública, por sua vez, deu a Scliar a oportunidade de vivenciar temas como a doença, o sofrimento e a morte – características que podem ser percebidas tanto em sua ficção, em obras como A Majestade do Xingu, quanto na não ficção, caso de que A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura é um dos exemplos mais claros.
Casado desde 1965 com Judith Vivien Oliven e pai de Roberto, nascido em 1979, Scliar também dedicou atenção especial às obras infanto-juvenis. Costumava dizer que, escrevendo para os jovens, reencontrava o jovem leitor que havia sido. Boa parte de sua produção nessa área foi considerada ‘altamente recomendável’ pela Fundação Biblioteca Nacional.
Além de produzir textos para vários jornais e revistas, o autor também teve trabalhos adaptados para o cinema, caso do romance Um Sonho no Caroço do Abacate, adaptado em 1998 por Luca Amberg sob o título Caminho dos Sonhos, em cujo elenco apareceram atores como Taís Araújo, Caio Blat e Mariana Ximenes. Em 2002, o romance Sonhos Tropicais também virou filme, sob direção de André Sturm, com Carolina Kasting, Ingra Liberato e Cecil Thiré no elenco.
Repercussão
Marcos Vilaça (presidente da ABL) – ‘Foi um acadêmico múltiplo. Trabalhador incansável da cultura, produziu uma obra respeitável e de grande poder de comunicação com o leitor. Vai nos fazer muita falta.’
Cristovão Tezza (escritor) – ‘Foi o grande narrador brasileiro dos anos 80. A leitura de O Centauro… foi um choque para mim, pela novidade temática, pelo poder da fantasia.Foi um clássico contador de histórias.’
Fabrício Carpinejar (escritor) – ‘Ele estava sempre ao nosso lado, disposto a entender e a investigar a alma das coisas. Como nos quadros de Chagall, seus textos encontravam alegria e cor nas desventuras.’
Dilma Rousseff (presidente da República) – ‘Ele representou nossa sociedade em diversos gêneros, sem perder de vista sua condição de filho de imigrantes e médico. É com tristeza que nos despedimos de um mestre.’
Luiz Schwarcz (escritor e editor) – ‘Sua imaginação trabalhava sem parar. Moacyr Scliar tinha um olhar único, com ele criava um mundo fantástico no qual o humano estava sempre a serviço da literatura.’
Daniel Galera (escritor) – ‘Ele sempre foi muito generoso comigo e com os autores da minha geração. Um cara de uma energia admirável. Sentirei falta dele, mas foi um grande autor e sua obra está aí’