Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornal-escola nunca morre

Atribui-se ao ex-ministro da Fazenda e deputado federal Delfim Netto a frase segundo a qual um jornal demora 10 anos para morrer. Se levarmos em conta essa previsão, o Jornal do Brasil já ultrapassou há muito a fase da sobrevida.


Com décadas de má administração e falhas de gestão operacional, como o endividamento em moeda estrangeira para erguer um prédio faraônico, a opção por um modelo de impressão que já se anunciava ultrapassado nos anos 70, a insistência em abrir uma emissora de televisão sem estrutura para tanto e as costumeiras retiradas de caixa de membros da família controladora do jornal – o JB resistiu heroicamente, mesmo nos tempos em que brincava de enaltecer e ludibriar os desmandos do regime militar. Suas páginas expressavam uma certa esquizofrenia. Enquanto a editoria de Economia aplaudia os feitos do milagre brasileiro, com o respectivo endividamento, arrocho salarial e concentração financeira, o Caderno B abria espaço para a contestação no ambiente cultural e de comportamento. O JB nunca foi de esquerda, mas flertava com ela como um namoro platônico.


Para muitos jornalistas da minha geração e de gerações seguintes, o JB não só fez escola como se transformou numa própria escola de Jornalismo. A qualidade dos profissionais que ali trabalhavam nos anos 60/70, dos editorialistas e editores aos repórteres, fotógrafos, gráficos e motoristas, tornava o JB uma referência do bom jornalismo, como Diógenes e sua lanterna, sempre à procura de uma verdade nunca alcançada, porém sempre buscada. O ambiente de segurança ética e companheirismo na redação embevecia os mais jovens. Dizia-se, na época, que o repórter do JB ia para a rua a fim de acertar, enquanto o do Globo saía para não errar.


Entrei para o JB aos 19 anos, em setembro de 1973, num cursinho que selecionava estagiários entre estudantes de faculdades de Comunicação. Estava no quarto período de Jornalismo da UFF. Lembro que a prova de seleção trazia uma questão sobre a Islândia e pedia o nome da capital (Reykjavik). Podia soar estranho, mas duas semanas antes o Caderno B publicara matéria de capa sobre o país do norte europeu e como eu tinha o hábito de ler o JB em casa…


Gente íntegra


Fiquei 13 meses na reportagem geral e foi lá que aprendi a ser repórter. Não apenas pelo que me ensinaram os chefes, mas sobretudo pelas dicas e observações dos colegas mais velhos, os repórteres especiais, de texto limpo e criativo, que retratavam a cidade com olhar crítico, apesar dos tempos de censura e de opressão à liberdade de expressão.


Não foi apenas a reforma gráfica do início dos anos 60 que definiu o perfil inovador do Jornal do Brasil. O Caderno Especial, publicado aos domingos, representava uma aula semanal sobre as transformações do mundo contemporâneo. E o Caderno I, editado por Ana Arruda Callado, foi o primeiro a tratar a criança como leitor com as especificidades determinadas pela idade, e não como alguém com deficiência mental.


Naquela época, a reportagem geral do JB contava com mais de 40 repórteres e o copy, com 12 redatores. Hoje alguns deles ocupam (ou ocuparam) cadeiras na Academia Brasileira de Letras. Outro, Joaquim Campello, é co-autor do Dicionário Aurélio Buarque de Hollanda. Imagine como era confortável, em caso de dúvida, em vez de abrir o dicionário, virar para o lado e perguntar ao próprio autor. Conheci gente íntegra, como Paulo Cesar Araújo. Quando assumiu a subchefia de reportagem e percebeu que em sua conta bancária havia um depósito não identificado, depois atribuído ao jogo do bicho, preferiu entregar o cargo. Gente como João Batista de Freitas, meu ‘irmão mais velho’ na redação e pioneiro nas reportagens sobre meio ambiente no Rio de Janeiro. Alguém com sensibilidade capaz para criar plantas num dedal de costura.


Boas lembranças


O enxugamento das redações e o processo remoto de produção, que permite que muita gente mande suas matérias de casa, reduziram drasticamente a oportunidade de aprendizado com os colegas de trabalho. As redações hoje tendem a ser cada vez assépticas, como o CTI de um hospital de base.


Curiosamente, o dia previsto para a última edição – 1º de setembro – coincide com a entrada no ar do Jornal Nacional, 41 anos atrás. Naquele período, os grandes diários brasileiros nem se preocupavam com o noticiário veiculado pelo JN, algo impensável hoje em dia, tal a audiência ostentada pelo telejornal da rede de TV hegemônica.


Diz-se que os erros e desmandos administrativos provinham de um certo ar de nobreza, emanado do nono andar do prédio da Avenida Brasil, onde se acastelava a diretoria. Era mais do que isso. Lembro de uma história contada pelo chefe do Departamento de Física da UFF nos anos 80. Os professores haviam decidido assinar um jornal diário e, na reunião de docentes, o Jornal do Brasil venceu por larga margem de votos. Mas quando o professor ligou para o setor de assinatura e informou o endereço de entrega (Morro do Valonguinho, no centro de Niterói, dentro do campus da UFF), do outro lado da linha veio a resposta: ‘Desculpe, mas nós não entregamos o jornal em morro.’


Quem conhece o mercado editorial sabe que o jornalismo online veio para ficar, mas no caso do JB a opção pela internet está longe de representar uma escolha estratégica. Trata-se apenas de uma saída pela porta dos fundos do controlador atual.


O JB fez escola e, de certa forma, mesmo depois de morto e sepultado, vai continuar fazendo. Dos 12 professores do Setor de Jornalismo da UFF, nada menos do que sete passaram pelo jornal ou pela Rádio JB. As boas lembranças e ensinamentos adquiridos no cotidiano das ruas e da redação, no companheirismo e no respeito aos princípios éticos, permanecerão presentes. Senão em todos os jornais de hoje em dia, pelo menos na sala de aula.

******

Jornalista e professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense