Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Um jornalista de insensato coração

Na novela escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, o ator Cássio Gabus Mendes interpreta Kléber Damasceno, um jornalista veterano que defende seus ideais esquerdistas do passado, quando imperavam a ética e a transparência de um jornalismo sonhadoramente ‘imparcial’. No folhetim, a turma da propaganda leva uma doce vida, convive com a elite carioca e os negócios vão a todo vapor. Os profissionais de publicidade não agem com o coração, e sim, com a razão. Suas estratégias para atrair grandes investimentos e clientes poderosos geralmente funcionam.


Enquanto isso, no núcleo pobre da novela o nosso jornalista está sempre passando dificuldades financeiras e, como se não bastasse, alguns personagens à sua volta são humilhados pelo pessoal do núcleo rico do folhetim. É o caso da secretária (Isabela Garcia), ex-mulher do jornalista, que antes de ser demitida foi esculachada pelo banqueiro ricaço (Herson Capri). Em outro capítulo da trama, o jornalista, depois de chegar bêbado à redação em pleno horário de expediente e afrontar o editor-chefe, é sumariamente demitido.


Passados alguns capítulos, descobre-se que o desafortunado jornalista é também viciado em jogos de azar e frequenta uma espécie de ‘jogadores anônimos’ para tentar se livrar de mais esse vício. Após ficar desempregado o jornalista resolve se aventurar em um blog. Escrever em um blog significa dar asas à liberdade de suas convicções.


Atribuições negativas


Como o jornalista é separado e está sempre na pindaíba, vai morar com seu irmão. Um belo dia, o agora blogueiro está na sala de estar atualizando o seu blog e eis que surge o seu irmão, enfurecido por ele ter usado o creme de barbear sem seu consentimento.




— Eu não tenho cara de pau como outros aí que não repõem o creme de barbear que usam sem permissão.


— Já entendi, essa conversa toda foi pra esfregar na minha cara a minha situação difícil — diz o jornalista.


— Se está difícil, a culpa é sua mesmo, se não tem vaga em jornalismo trabalhe em outra coisa, esse blog é que não vai te sustentar. Por exemplo, vem me dar uma força lá no bar. Quando tem roda de samba, eu preciso de outro garçom.


— Você tem ideia de quantos ministros eu ajudei a derrubar? Eu cobri o impeachment do Collor, investiguei os mensaleiros e você quer que eu termine meus dias servindo bolinho de bacalhau?


— Não, Kleber, eu quero que você termine seus dias sem depender de mim, ou então deixe essa barba crescer e não gaste o meu creme de barbear, seu folgado!


Todas as atribuições negativas concentradas no pobre profissional da imprensa, numa só novela, nos fazem crer que o jornalista idealista em nenhum momento age com a razão, somente com o coração, um insensato coração.


Novela da vida real


Você pode estar se perguntando, isto não é apenas ficção? A ficção, comparada com a realidade, muitas vezes nos induz de forma errônea na percepção das coisas, principalmente em se tratando de um veículo de comunicação como a TV Globo, que tem um alcance extraordinário no país e, mesmo que de maneira fictícia, exerce forte influência de raciocínio nas massas. Se a ideia era mostrar personagens que refletem o espelho da realidade, desta vez a televisão se superou e foi muito além da imaginação.


Segundo o site Memória Globo, Gilberto Braga é formado em letras e o Ricardo Linhares em jornalismo, um colega de classe. Tudo bem que é ficção, mas não exagera, né, Ricardo? Afinal, a gente está passando por um momento delicado em que o Supremo Tribunal Federal constatou que a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão não é legítima. Somos agora o patinho feio das profissões. Só que nós, jornalistas, somos teimosos, não tem jeito, e já está em andamento no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 33/09), de autoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), que visa restabelecer a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para exercer a heroica função. Acompanho diariamente cada capítulo dessa novela da vida real e creio, de coração, em um final feliz.

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Jornalista