Quando então cursava a pós-graduação em Literatura Brasileira na UERJ, o nome de um escritor aparecia na bibliografia ‘obrigatória’: Moacyr Scliar. E, mais por prazer do que ‘obrigação’, comecei a ler sua obra (já havia lido A Majestade do Xingu, 1997). Passado algum tempo, entendi que deveria ser ‘obrigatória’, num país como o Brasil, que enfrenta sérias dificuldades no processo de formação de seus leitores, a leitura de autores como Scliar. Afinal, é lendo texto bom que se aprende ou aprimora a escrita. Agora, infelizmente, o Brasil perde mais um de seus grandes nomes das letras. O fato de ser acadêmico, sem querer aqui fazer qualquer desmerecimento à ABL e seus membros, é secundário quando nos defrontamos com os textos de Scliar, surgidos há meio século no panorama da literatura brasileira de temática urbana (e até mesmo rural).
Apenas para, como de costume, fornecer aos leitores um breve resumo da obra de Moacyr Scliar, vamos à biografia desse gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1937. Foi autor de mais de 80 livros, em vários gêneros: conto, romance, crônica, ficção juvenil, ensaio – o primeiro, Histórias de um Médico em Formação, em 1962, e o mais recente, o romance Eu Vos Abraço, Milhões, em setembro do ano passado. Suas obras foram publicadas nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália, Tchecoslováquia, Suécia, Noruega, Polônia, Bulgária, Japão, Argentina, Colômbia, Venezuela, México, Canadá, Israel e outros países, obtendo grande repercussão crítica. Recebeu vários prêmios. Para citar alguns: Academia Mineira de Letras (1968), Joaquim Manuel de Macedo (1974), Érico Veríssimo (1975), Cidade de Porto Alegre (1976), Brasília (1977), Guimarães Rosa (1977), Associação Paulista de Críticos de Arte (1980), Casa de las Américas (1989), José Lins do Rego, da Academia Brasileira de Letras (1998), Jabuti (1988, 1993 e 2000, neste último ano, por A Mulher que Escreveu a Bíblia). Além disso, teve trabalhos adaptados para cinema, TV, teatro e rádio.
‘Não é por mim, não. É pelo Noel’
Contudo, é sobre uma declaração do autor que desejo me ater: ‘Não preciso de silêncio, não preciso de solidão, não preciso de condições especiais. Preciso só de um teclado.’ Entre inúmeros depoimentos de autores sobre as diversas ‘manias’ que envolvem o ato de escrever publicados desde o início de 2010 no blog do escritor Michel Laub, o de Moacyr Scliar se destaca pelo pragmatismo. Realmente, Scliar encarava a escrita como algo inevitável, do qual não se pode abrir mão. Para ele, sendo o autor realmente um ‘autor’, somente era necessário um computador, um teclado, mesmo também tendo exercido o ofício de médico, já que era formado em 1962 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesta área, destacou-se desde 1969, em cargos como chefe da equipe de Educação em Saúde da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul e diretor do Departamento de Saúde Pública.
Voltando ao ‘ofício do qual não se pode fugir’, à labuta que envolve o escritor e seu processo criativo e ao pragmatismo como encarava o ato de escrever, ao mesmo tempo que produzia textos repletos de lembranças, lirismo e ‘subversões’, em A majestade do Xingu, para citar um exemplo, romance narrado em primeira pessoa, em estilo quase didático, o autor nos sensibiliza e mostra o caminho mais curto para se chegar às palavras certeiras, aquelas que atingem o leitor ‘em cheio’: ‘Não é por mim, não. É pelo Noel. Não: é pelo senhor. O senhor deve ouvir a história do Noel, doutor. Acho que alguma coisa mudará no senhor depois que ouvir esta história.’ Nesta obra, Scliar traça um claro panorama da situação política no Brasil desde o início do século, com a vinda de imigrantes judeus no ano de 1921, sendo ainda relatada a situação social na Rússia até a revolução socialista. Na verdade, o narrador conheceu Noel Nutels, singular personagem que dedicou sua vida às causas indígenas, quando criança, no navio que os trouxe para o Brasil.
O verdadeiro papel de um escritor
Aqui, cumpre lembrar que Moacyr Scliar também dedicou atenção especial às obras infanto-juvenis. Era hábito seu afirmar que escrevendo para os jovens reencontrava o jovem leitor que havia sido. Mais uma prova inconteste de que o processo de formação de qualquer leitor deve começar bem cedo, mesmo num país como o Brasil, com alta taxa de analfabetismo e poucas bibliotecas públicas de qualidade. Sem esquecer que, por aqui, nas escolas, e até mesmo dentro de casa, o incentivo à leitura é mínimo.
Por fim, importa deixar aqui registrada a importância de Moacyr Scliar e sua obra não apenas para a literatura brasileira, mas também para nosso país, considerando que em seus textos podem ser encontrados fatos verídicos e personalidades ilustres da história do Brasil.
E nada melhor para terminar essas linhas sobre Scliar do que uma citação sua, tão oportuna quanto necessária, num país de pouco hábito de leitura. Ao falar sobre sua obra infanto-juvenil, desabafou: ‘Foi um reencontro com o jovem leitor que fui, um leitor que procurava nos livros um sentido para a vida e para o mundo.’
Só nos resta agradecer a Moacyr Scliar por todos os sentidos. Para a vida e para o mundo. Esse sim, o verdadeiro papel de um escritor.
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Jornalista, professora do curso de Jornalismo da UFRJ, tem mestrado e doutorado em Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, RJ