Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma fábula da luta de classes na ficção global

A ficção não se opõe, imita ou complementa a realidade, pois tem sua dinâmica própria, sua própria realidade. Por outro lado, não se opor, não imitar e não complementar aquilo que usualmente chamamos de realidade não significa que a ficção esteja alheia à realidade. Não existe a ficção enquanto tal, totalmente livre das relações de poder, das divisões de classe, das formas de propriedade, dos desejos de pertença a esse ou aquele grupo social.

Não existe ficção ao quadrado, como se um filme, um romance, uma novela, um conto dissessem respeito apenas às suas propriedades internas, seus enredos, seus gêneros respectivos; como se pudessem estar alheios à luta de classes ou mesmo ao imperialismo americano, que afeta a todos os viventes do planeta, inclusive ao leitor/telespectador ideal ou empírico, como co-participante da construção da ficcionalidade de um filme, de um romance, de um conto, de uma novela.

É por isso que, ao falar de ficção, me ocorre usar um dos procedimentos ficcionais de Machado de Assis, que, com um piparote, salta de um ponto ficcional a outro, o que me permite, de salto machadianamente igual, focalizar logo esta forma de ficcionalidade: o centro de poder da ficção televisiva brasileira, a saber: a produção global de telenovelas, e muito especialmente a produção global de novelas das 8, verdadeira máquina que ficcionaliza o fracasso da realidade brasileira, pela singela razão de que é na novela das 8 da TV Globo que a fracassada luta de classes brasileira é ficcionalmente narrada, a partir do ponto de vista da classe dominante, razão pela qual constitui o cenário ficcional por excelência no qual e através do qual nossas elites econômicas vencem, subjugam e domesticam, sem cessar, as classes populares brasileiras.

Segunda onda de imigração italiana

As novelas das 8 da Rede Globo nada mais são que a ficção de nossas classes dominantes no front da luta de classes, no Brasil, seja a ficção real, como ficção da realidade da luta de classes brasileira, sob o ponto de vista da classe dominante; seja a ficção desejada, se considerarmos que podem ser interpretadas como o arranjo ideal-ficcional, sempre sob o ponto de vista das classes dominantes, do mapa das classes sociais brasileiras, como uma espécie de República de Platão; uma utopia ficcional-burguesa tipicamente brasileira, na qual e através da qual perfis sociais que podem representar algum perigo para as classes dominantes são apresentados ora como vilões, ora como bons personagens que, por uma tragédia qualquer, são impedidos de viver-participar da Casa Grande de nossas elites econômicas, pelo simples fato de que morrem mais ou menos nos finais das tramas.

A propósito, consideremos o exemplo da atual novela das 8, Passione, de Silvio de Abreu.

Embora saibamos de sobra que a TV Globo votou e fez campanha aberta e golpista, para não dizer criminal, a favor de Serra, Passione é uma novela das classes dominantes brasileiras num cenário de luta de classes da era do presidente Lula da Silva.

É, assim, uma novela do imperialismo ou sub-imperialismo brasileiro, embora sob o ponto de vista das classes dominantes ou de seus considerados legítimos quadros, razão pela qual procura, no nível ficcional de luta de classes, incorporar os êxitos da política externa do governo Lula, mas tendo em vista, digamos, a gestão/apropriação ficcional da era Lula pelo PSDB, na suposição de que José Serra fosse ou pudesse ganhar a eleição para presidente.

De qualquer forma, na atual novela das 8, nossas classes dominantes já não se veem como subservientes em relação ao chamado primeiro mundo, e muito especialmente em relação ao chamado primeiro mundo europeu, razão pela qual nela e através dela é possível assistir uma espécie de segunda onda de imigração italiana para o Brasil; imigração em que imigrantes de classes médias italianas – expulsos pela máfia italiana – encontram abrigo na Casa Grande de nossas elites econômicas, ainda que como agregados; ainda que como parentes de um segundo anterior envolvimento amoroso, como ocorre no interior da Casa Grande da família Gouveia.

Eugenia matrimonial

Curiosamente, no entanto, essa segunda onda de imigração italiana tem um enredo um pouco mais complexo. A primeira evidência é a seguinte: a classe dominante brasileira emerge da primeira onda imigratória de europeus para o Brasil, especialmente de europeus portugueses, nossos primeiros colonizadores, tanto sob o ponto de vista político-cultural como étnico.

Como tudo, na teledramaturgia de nossa classe dominante, é uma questão de sêmen, o perfil étnico da nossa primeira Casa Grande, o perfil português, é semeado de perfil étnico da segunda grande onda de imigração europeia para o Brasil, especialmente da imigração italiana, de maior número.

Tem-se, assim, a eugenia ficcional da atual Casa Grande brasileira, enredada na novela Passione, de Silvio de Abreu, afinal como uma questão de paixão, do português para o italiano e vice-versa.

Talvez não seja circunstancial, a propósito, que o patriarca português-brasileiro da família Gouveia seja um personagem de nome Eugênio Gouveia, representado pelo ator Mauro Mendonça, marido da matriarca portuguesa-brasileira, Bete Gouveia, que se envolve, por sua vez, com um italiano-brasileiro, chamado Olavo da Silva Randelli, representado pelo ator Francisco Cuoco.

Evidencia-se, assim, um festival de eugenia, de português para italiano, de Gouveia para Randelli, na ficção racista da Casa Grande brasileira, ficcionalizada por nossa novela das 8 da vez, Passione.

Do envolvimento da portuguesa brasileira, Bete Gouveia, com o italiano brasileiro, que traz um suspeito Da Silva de sobrenome, Olavo da Silva Randelli, nasce o brasileiro italiano, Totó. Como a eugenia não pode ser apenas étnica, de vez que deve ser também matrimonial, Eugênio Gouveia mente para sua esposa, Bete Gouveia, dizendo-lhe que o filho dela com Olavo da Silva Randelli é natimorto e dá um jeito de encaminhá-lo para Itália, entregando-lhe à empregada italiana da família Gouveia, a personagem Gemma Mattoli, representada pela atriz Aracy Balabarian.

Um planejado e desejado projeto de eugenia

Chega-se, assim, ao cenário ficcional-novelesco da segunda onda de imigração italiana para o Brasil. Sem a presença viva de Eugênio Gouveia, que foi assassinado por um brasileiro (ou brasileira ) da senzala, a personagem matriarca Bete Gouveia não apenas descobre a verdade sobre seu filho, o brasileiro-português-italiano, Totó, como também consegue trazê-lo para perto de si, como legítimo herdeiro da Casa Grande brasileira-portuguesa-italiana.

Primeira moral da história: a segunda onda italiana para o Brasil é de descendentes de brasileiros, ou de brasileiros-italianos-portugueses que voltaram para Itália e lá criaram filhos, a fim de, em seguida, trazê-los todos novamente para o Brasil, porque agora, essa é a ficção de nossas classes dominantes, agora já não somos mais uma Casa Grande de periferia: somos a Casa Grande do imperialismo brasileiro, na era ‘real’ de um Da Silva brasileiro, o presidente Lula da Silva.

De qualquer forma, até aqui apresentei apenas o mapa global-ficcional da árvore genealógica portuguesa-italiana de nossa atual Casa Grande planetária, pouco dizendo, nesse sentido, da luta de classes que as novelas das 8 da Globo não nos cansam de nos contar, sempre sob o ponto de vista de sua resolução-desfecho ficcional, manietado pelos interesses, desejos e receios da Casa Grande, como projeto de eugenia do capital de um Brasil global.

Por outro lado, o mapa genealógico-ficcional de nossa classe dominante, tecido e entretecido, como sempre, apaixonadamente, como um planejado e desejado projeto de eugenia, assim como ocorreu no final do século 19 e início do século 20, com a primeira onda de imigrantes italianos para o Brasil, é-nos novamente contado, agora por nossa teledramaturgia, através da mais cínica recusa em relação a tudo e todos que não fazem parte de nossa Casa Grande eugênica.

Dissimulada, infiel, artificiosa e diabólica

A caricatura dos brasileiros que não fazem parte da Casa Grande brasileira, na novela Passione, é de uma violência típica de um ódio de classe implacável, principalmente direcionado àqueles brasileiros aos quais é possível designá-los como excluídos coletivos, porque não pertencem nem à eugenia étnico-econômica da Casa Grande e nem à senzala, o que os torna potencialmente perigosos.

Claro está que Casa Grande e senzala, aqui, apenas ecoa o livro homônimo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, de vez que a senzala da produção globo de ficção pouco ou nada lembra da senzala enquanto tal, habitação comum dos escravos de uma fazenda, uma vez que a senzala global é estilizada; nela os escravos brasileiros contemporâneos moram melhor que a maioria de nós.

De escravos mesmo eles têm apenas o igualmente estilizado desejo dos donos da fazenda: o de que sejam trabalhadores, humildes e fiéis ao dono. A última coisa que podem ser é escravos fujões, os auto-excluídos coletivos da Casa Grande da senzala global, razão pela qual o inconsciente político do ódio de classe da teledramaturgia das novelas das 8 não pode ser definido senão pelo seguinte argumento: o excluído coletivo é aquele que nem pertencente à Casa Grande e nem à senzala; é constituído por um tipo abjeto de ser humano cujo desejo mais fundo e raso é o de tomar o lugar dos eugênicos da Casa Grande, destronando-os para impor o inferno da ditadura, da luxúria, da corrupção e do ressentimento, no coração da sociedade brasileira.

Quatro personagens, em Passione, encarnam os brasileiros que detêm o traço de serem excluídos coletivos: a personagem Clara Medeiros, representada pela atriz Mariana Ximenes; o personagem Frederico Lobato, Fred, representado pelo ator Reynaldo Gianecchini, a personagem Diana Rodrigues, representada pela atriz Carolina Dieckmann e Valentina Miranda, representada pela atriz Daisy Lúcidi.

Dos quatro personagens, sem dúvida Clara Medeiros é a mais duramente transformada em caricatura do medo que nossas classes dominantes têm do brasileiro que ocupa o lugar – ou o não lugar – de excluído coletivo. Ela começa a novela como uma típica vilã: dissimulada, infiel, perspicaz, artificiosa, diabólica.

Uma mulher humilde, trabalhadora, fiel

De seus cinco atributos de vilã, a dissimulação é a sua marca predominante. Primeiro é uma singela e bela cuidadora de idosos, curiosamente – que perigo! – do patriarca da família Gouveia, Eugênio Gouveia, assim como dos país deste último.

Sua perspicácia diabólica e artificiosa para dissimular, faz com que a matriarca, Bete Gouveia – sempre com boa vontade para o mundo da senzala –, adquira uma confiança e um respeito singulares por Clara Medeiros, tanto que manda prender a empregada da casa, acusada de ter roubado suas joias, tal a confiança que a matriarca tem em Clara Medeiros, que é quem acusa a empregada de ser ladra.

Clara Medeiros é uma arrivista e quer se dar bem a todo custo; é ressentida e odeia todos os personagens da Casa Grande, por isso é a vilã por excelência da primeira parte da novela, sendo capaz inclusive de matar, e mata, para conseguir seu principal objetivo: destronar os donos da Casa-Grande, ocupando o lugar deles sem piedade.

Por causa dos sucessivos crimes que cometeu, roubo, falsificação de documentos, tentativa de assassinato, Clara Medeiros é condenada e cumpre pena. Após sair da prisão, volta supostamente arrependida de tudo que fez e, como uma dissimulada inveterada, trabalha com afinco de garçom num restaurante italiano e, com uma perspicácia diabólica, convence a quase todos de que se tornou uma humilde pertencente à senzala, tendo deixado de ser, assim, uma excluída coletiva.

Seu objetivo principal é retomar a confiança de Totó, com quem já fora casada e a quem decepcionou amargamente, embora Totó ainda a ame muito. Pouco a pouco, todos, inclusive os telespectadores, tendem a acreditar que Clara Medeiros de fato mudou de vida, não é mais uma vilã, porque não deixa pista alguma de que esteja dissimulando, sobretudo porque não apenas se mostra solidária às colegas de trabalho, as outras funcionárias humildes do restaurante italiano, mas antes de tudo porque resiste a todo custo aos galanteios incessantes de um galã-cantor do restaurante, o personagem Diogo, representado pelo ator Daniel Boaventura.

Se os dois traços mais caricaturais da vilã do mundo do excluído coletivo, na teledramaturgia, são a lascívia e a infidelidade, o fato de resistir aos galanteios e cantadas de Diogo, em nome de seu objetivo de retomar a confiança de Totó, é a prova mais evidente de que Clara Medeiros realmente está mudada; é uma verdadeira mulher da senzala: humilde, singela, trabalhadora, fiel.

Um filho pedófilo

Eis que, assim que consegue a confiança de Totó, o ingênuo, Clara Medeiro finalmente cede aos galanteios de Diogo e novamente demonstra seu ódio de classe, sua periculosidade de excluída coletiva, disposta a retomar as artimanhas para matar Totó e tomar o seu lugar na posição de classe.

O outro perigoso excluído coletivo da novela é o personagem Fred, cujo pai teria se matado, à época de sua infância, após ter sofrido um acidente de trabalho e, em seguida – segundo o ponto de vista de Fred, criança traumatizada –, ter sido injustamente demitido pelo patriarca da Casa Grande, Eugênio Gouveia.

Fred, como um Hamlet, jura vingança e passa toda trama da novela levando a cabo sua vingança, que não poderia ser outra, em se tratando de excluído coletivo, senão a de destronar os donos da Casa Grande, empurrando-os para o mundo da senzala, o lugar recusado por excelência.

Claro está que o destino de Fred é o mesmo do de Clara Medeiros: a loucura e a prisão, assim sendo igualmente o destino de Valentina, a avó má que explora de sua própria neta, como , de resto, assim foi o destino do Quilombo de Zumbi de Palmares, por terem ousado excluírem-se coletivamente da perniciosa equação Casa Grande & Senzala, que nada mais é que a roupagem intimista-sexual que nossas elites historicamente vestem na relação opressor & oprimido, a fim de torná-la menos perigosa e mais sensual aos olhos entediados da Casa Grande.

Destino diverso, embora trágico, é o da personagem Diana Rodrigues, uma esforçada excluída coletiva que procura ser, através de sua dedicação aos estudos, uma legítima representante da Casa Grande. Diana tem doutorado e bastante disposição para trabalhar nos empreendimentos da Casa Grande, razão pela qual se torna desejada pelo filho dos Gouveias, o pedófilo Gerson Gouveia.

Um sítio de pedofilia na internet

O personagem Gerson Gouveia, ainda que filho natural da Casa Grande, não merece Diana Rodrigues, seja porque ele não reconhece seus esforços, como doutora, seja porque seus traumas de infância não o permitem se tornar um candidato, como Diana, a levar adiante a mais-valia da Casa Grande, na direção da empresa da família, razão pela qual Diana acaba se descasando de Gerson e se envolvendo com Mauro Santarém, personagem representado pelo ator Rodrigo Lombardi, filho, pasmem, do motorista da família Gouveia, o humilde senzalado personagem Diógenes Santarém.

A partir daqui, outro piparote machadiano se faz necessário. Saio do campo semântico da senzala e retomo o olhar à Casa Grande, mesmo sem, por ora, explicar o motivo pelo qual inscrevo a personagem Diana Rodrigues como pertencente também ao mundo dos excluídos coletivos da novela Passione.

A propósito, se considerarmos a virada da primeira parte da novela para a segunda, note-se que o perfil dos personagens da Casa Grande passa por uma metamorfose que ocupa exemplarmente o oposto ao ocorrido com a personagem Claro Medeiros. De uma forma mais ou menos parecida com esta, os filhos e bisnetos da Casa Grande, na primeira parte da novela, com exceção de alguns, estão perdidos e, embora não sejam dissimulados, como Clara Medeiros, são perseguidos por sentimentos considerados inferiores, típicos dos excluídos coletivos, como o ciúme, a inveja, a lascívia, a mesquinharia.

Melina Gouveia é apaixonada por Mauro Santarém. Como seu amor não era correspondido, torna-se uma personagem, ela mesma, excluída coletiva, pois se apresenta como ciumenta, mentirosa, ressentida, sendo capaz de fazer de tudo para conquistar, nem que seja à força, Mauro Santarém.

Gerson Gouveia, o filho da Casa Grande, é um pedófilo da internet. Teria sofrido um trauma em sua infância, tendo sido ele mesmo vítima de pedófilas, de tal sorte que, como um espécie de retorno do reprimido, torna-se ele mesmo um pedófilo que frequenta sítio de pedofilia na internet.

Contraponto aos personagens excluídos

O outro filho da Casa Grande, o mais velho, Saulo Gouveia, representado pelo ator Werner Sechünemann, é um verdadeiro senhor de engenho, pois o tempo todo faz questão de destacar o lugar dos personagens da senzala, ofendendo-os, desprezando-os e odiando-os. Além do mais, é infiel, mau pai e corrupto, de vez que desvia para fora do país dinheiro da Metalúrgica Gouveia, sem contar que é também ressentido, tal a sua fúria quando a matriarca indica Mauro Santarém para ocupar a direção da empresa.

Stela Gouveia, mulher de Saulo Gouveia, é inexpressiva e mal amada; uma mulher medíocre que só pensa em compras e futilidades, enquanto seus filhos sofrem com a opressão do pai.

Danilo Gouveia, representado pelo ator Cauã Reymond, é um jovem perdido, que sofre um ódio edípico pelo pai, Saulo Gouveia, razão pela qual, subtende-se, envolve-se com droga, tornando-se um dependente de craque.

Lorena Gouveia, representada pela atriz Tammy Di Calafiori, filha de Saulo Gouveia, é uma adolescente ciumenta, mesquinha, petulante, arrogante e egoísta, que vive um Complexo de Electra com a mãe, Stela Gouveia, além de odiar o pai.

Da família de Saulo Gouveia, o único que sobra é o filho Sinval Gouveia, que é um garotão bonzinho, típico gente boa.

No entanto, com a morte de Saulo Gouveia, assassinado por algum excluído coletivo da novela; e com a ascensão de Fred à direção da empresa, a família Gouveia adquire aquilo que é possível chamar de coesão de classe, ou bloco ideológico, para usar e abusar de um conceito de Gramsci.

Assim, através de um sistema de contrastes, na segunda parte da novela, ou nos preâmbulos de seu desfecho, a família Gouveia em conjunto se une e em bloco faz um contraponto aos personagens excluídos coletivos da novela, distinguindo-se destes, traço a traço, sem dissimulação alguma, que é marca dos excluídos coletivos.

Parar ficar num exemplo, Stela Gouveia, agora viúva, muda da água para vinho, finalmente é capaz de sacrifício, pois chega ao ponto de se declarar culpada pelo assassinato do marido, a fim de salvar da cadeia o filho drogado, Danilo Gouveia, que confessa ter matado o pai, num lance – mais um – pastelão da novela.

E a partir daqui, com mais um piparote machadiano, o terceiro, que retomo o destino infeliz de Diana Rodrigues, na novela Passione.

Ela é uma personagem do mundo dos excluídos coletivos não por causa de sua sagacidade, que não tem; nem de sua dissimulação, que também não tem, mas em função de também não ocupar o campo semântico da senzala: não é propriamente humilde, nem subserviente.

É, pelo contrário, criativa, inteligente e independente, qualidades suspeitas para um personagem do mundo dos excluídos coletivos, por serem atributos típicos, diria transcendentais, dos personagens da Casa Grande, os quais podem ficar perdidos, podem ter recaídas e assumirem traços do mundo dos excluídos coletivos, mas sempre recobram a sobriedade de classe, quando estão em risco de perderem a guerra pelos excluídos coletivos.

Função fabular de luta de classes

Ainda como excluída coletiva, Diana Rodrigues não tem mais cacife para disputar o amor de Mauro Santarém com Melina Gouveia, pela singela razão de que esta já não é a mesma da primeira parte da novela. Agora é uma verdadeira Gouveia: responsável, solidária – solidariedade de classe, é claro –, criativa, ousada e empreendedora.

Como destino manifesto, o de Diana Rodrigues é a morte. Como a Casa Grande é antropofágica, pois se apropria das qualidades do mundo dos excluídos coletivos, Diana Rodrigues só pode mesmo morrer em função de um parto difícil, pois deve deixar uma herdeira que possa ser cuidada pela Casa Grande, a fim de que deixe de ser, através da filha, uma excluída coletiva, fazendo valer os seus supostos genuínos atributos tipicamente pertencentes à classe dominante.

Afinal, tudo está escrito e prescrito, em nebuloso estatuto, a saber: Melina Gouveia se casa com o viúvo Mauro Santarém e ambos educarão a filha de Diana Rodrigues em conformidade com os preceitos da Casa Grande, sem risco algum de que venha sofrer um revés, de vez que os excluídos coletivos costumam ser sempre dissimulados, de modo que não poderíamos saber nunca se, com a mãe biológica, a criança não seria ou se transformaria num adulto do mundo dos excluídos coletivos.

Esta é, portanto, a segunda moral da história da novela Passione: a árvore genealógica portuguesa-italiana-brasileira, de nossas ‘legítimas’ classes dominantes, tem que tomar todo cuidado possível com os excluídos coletivos.

Afinal, eles são os verdadeiros perigosos, pois podem, dissimuladamente ou não, surpreender e produzir um mundo sem Casa Grande e sem Senzala.

De qualquer forma, ainda fica uma dúvida que emerge da suposta contradição entre a eugenia da Casa Grande e o gesto estranho desta em relação à incorporação integral, sem condicionalidades, de um filho de motorista, típico representante da senzala, à sua exclusiva árvore genealógica transcendental, o que já ocorrera na geração precedente com a incorporação de Olavo da Silva, pai de Totó.

Como é possível que Mauro Santarém, um filho da senzala, tornar-se não apenas o presidente da Metalúrgica Gouveia, mas, bem mais que isso, um Gouveia ele mesmo, ao se casar com a filha dileta da classe dominante, Melina Gouveia?

A resposta a essa pergunta não pode ser outra. Está relacionada com a fábula da luta de classes, ou função fabular de luta de classes, típica das novelas das 8, da TV Globo.

Uma equação perniciosa e genocida

O casamento mítico da Casa Grande & Senzala desempenha uma função fabular, tipicamente oriunda de uma confabulação das classes dominantes, em suas estratégias diversas no front de luta de classes; confabulação absolutamente farsante, porque lança para o plano da ficção aquilo que nunca pode ocorrer no plano da chamada realidade: a senzala procriar na Casa Grande.

Como sabemos, ainda que sob o signo do estupro, é a Casa Grande que historicamente produz bastardos na Senzala.

São esses bastardos que, a rigor, se transformam em excluídos coletivos e igualmente são os bastardos que são acusados de farsantes, não sendo circunstancial que, na novela em questão, os personagens Diana Rodrigues e Fred tenham sido acusados de falsificar documentos.

A função fábula da luta de classes, sob o ponto de vista das classes dominantes, assim, é a verdadeira farsa e é apenas como farsa que um sobrenome como Silva pode ser protagonista na Casa Grande, procriar nela.

Não é por acaso que o pai de Fred tenha perdido a mão, na Metalúrgica Gouveia. Seria um Lula da Silva sem os dedos, a exigir justiça à Casa Grande?

É aqui que entra o governo Lula da Silva.

Até que ponto o governo Lula da Silva é o excluído coletivo da Casa-Grande brasileira? Não seria, por outro lado, mais uma farsa da Casa-Grande, com sua função fabular Senzala-Silva-Mauro-Santarém, a presidir os empreendimentos dela, da Casa-Grande? A farsante ficção se transformou numa farsante realidade?

A tentativa atual de exigir do próximo governo, o de Dilma, contenção de gastos, não é já um front de luta de classes? Por acaso cortar seiscentos milhões de reais da Educação e da Ciência e Tecnologia, do orçamento do próximo ano, não será uma atitude subserviente da senzala, a serviço da Casa Grande?

Se considerarmos o governo Lula da Silva, em todos os aspectos prováveis e improváveis, não é possível interpretar que os méritos de seu governo sejam tributários de escolhas feitas no horizonte do excluído coletivo, seja em relação à Casa Grande nacional, seja em relação à Casa Grande internacional?

De qualquer forma, numa coisa a função fábula da novela Passione não é farsa e tem a ver com a sua terceira moral da história.

E eis a sua terceira moral da história: o excluído coletivo não tem que desejar destronar a Casa-Grande, a fim de se tornar o seu novo rei.

A novela em questão caricaturiza: Fred assume a presidência e implanta uma ditadura; o reino da corrupção. Tal não ocorre no governo Lula; o país da Casa Grande fica melhor.

No entanto, esta não é a saída, a de governar melhor ou pior a Casa Grande. A saída do excluído coletivo é a de colaborar para acabar com a equação perniciosa e genocida Casa Grande & Senzala, através da produção sem fim e insubordinada de linhas de fuga: Zumbis de Palmares.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo