Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Valmir Santos

‘Em suas iniciativas reguladoras para as áreas da comunicação e da cultura, o governo e o Congresso não devem atropelar a liberdade de expressão.

Foi essa a percepção mais evidente entre as 76 personalidades (artistas, produtores, acadêmicos, publicitários, arquitetos, jornalistas etc) que participaram do ‘Conteúdo Brasil – Seminário de Valorização da Produção Cultural Brasileira’, realizado anteontem no Teatro da Universidade Católica, o Tuca, em São Paulo.

‘A liberdade de expressão foi enfatizada sobretudo por artistas e produtores culturais, mas todos os participantes têm a compreensão de que as áreas não estão suficientemente reguladas’, afirma o coordenador-geral do evento, o jornalista Gabriel Priolli, 50, diretor da TV PUC-SP.

O seminário durou nove horas. Abriu com uma palestra do dramaturgo paraibano Ariano Suassuna. Na seqüência, os convidados foram divididos em cinco grupos de discussão.

Pautas: o impacto da produção estrangeira, as diversas formas de expressão e interdependência, qualidade na mídia, papel e limites do capital estrangeiro e impacto das novas tecnologias.

Cada grupo produziu uma síntese. O conteúdo dos debates e a apresentação das conclusões foram gravados e serão transcritos em documento a ser divulgado em breve, conforme Priolli.

Na abertura, Suassuna, 76, deu um show, quer dizer, uma aula-espetáculo. ‘Na minha terra, ‘show’ é uma interjeição para espantar galinha’, afirma o filho de Taperoá (PB) que vive em Recife (PE), para quem ‘a independência e a identidade da cultura brasileira estão ameaçadas’.

Para o cineasta Zelito Viana, 65, que mediou o grupo ‘As Diversas Formas de Expressão Cultural e Sua Interdependência’, a influência estrangeira é uma introjeção inevitável. ‘A gente não sabe mais o nível da contaminação, por isso precisamos valorizar cada vez mais a cultura brasileira. Não adianta ser contra a chegada do rock’, afirma Viana.

Antropofagia

Sobre o estrangeirismo na música, o sociólogo Hermano Vianna, 43, afirma encarar ‘com mais naturalidade essas absorções, essa antropofagia da cultura brasileira’. Segundo ele, ‘a entrada da polca no Brasil [música típica de origem européia], por exemplo, foi importantíssima para a definição do samba como o conhecemos hoje’.

Queda de referências

O ator Marco Nanini, 55, integrante da mesa ‘A Questão da Qualidade na Mídia e na Cultura’, ressalva importância de trazer o ‘patrimônio cultural’ para o centro da cena. Temo que um dia sejamos obrigados a importar até programas de televisão, em vez produzirmos os nossos’, diz.

No mesmo grupo, o jornalista e escritor Zuenir Ventura, 72, afirma que antigamente haviam os cânones que orientavam as preferências e gostos. ‘A queda de referências, modelos e padrões não se deu só no plano ideológico, mas também no cultural, quando o mercado passou a ser a medida de todas as coisas; quantidade acabou virando qualidade. Esse é o impasse’, afirma.

O que leva Ventura à seguinte equação: ‘Nem todo sucesso é bom e nem tudo que é bom faz sucesso. E não se pode ser radicalmente contra o sucesso, por ser sucesso, e achar que tudo que não faz sucesso é bom’.

O ‘Conteúdo Brasil’ é uma promoção da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da Rede Globo de Televisão. Está previsto um segundo encontro na metade do ano.

‘A expectativa é de que possamos dar o primeiro passo no sentido de repensar a produção nacional dentro dos novos desafios e oportunidades apresentadas pelo contexto e mercados atuais’, avalia Priolli.’



Zuenir Ventura

‘Questão de qualidade’, copyright O Globo, 14/02/04

‘Em tempo de globalização, com as antigas referências e convicções perdendo a força ou o sentido – não só as ideológicas, mas também as culturais – como estabelecer uma hierarquia estética para a obra de arte e a produção artística em geral? Como conferir selos e certificados de qualidade quando os paradigmas que orientavam nossos gostos e preferências foram substituídos pelas leis do mercado, que pretende ser a medida de todas as coisas?

A questão da excelência não foi a única discutida, mas a que coube ao grupo de que participei no seminário promovido pela PUC-SP e a TV-Globo, que teve como objetivo buscar caminhos para ‘a valorização da produção artística e intelectual brasileira’. Eram cerca de 70 representantes de várias áreas, divididos em cinco grupos, cada um dos quais no final de um dia de debates apresentou seu relatório dos trabalhos.

Não dá para resumir aqui todas as conclusões, mas houve pontos em comum. O primeiro é que a produção cultural, com suas várias formas de expressão, é um fator de desenvolvimento socioeconômico do país, além de ser indispensável na criação de nossa identidade. Seu valor e importância precisam ser difundidos e estimulados para enfrentar a competição dos produtos estrangeiros aqui e lá fora. É indispensável fortalecer a competitividade e privilegiar nossos bens culturais, mas sem xenofobia e isolamento, mantendo o diálogo com o mundo.

Outra preocupação foi em relação ao impacto que as novas tecnologias da comunicação provocam numa sociedade meio desprotegida legalmente, já que a Constituição, por ser de 1988, é anterior às transformações operadas, por exemplo, pela internet, por satélites, telefonia. O que fazer quando houver a concentração de jornais, rádios e TVs numa única plataforma de distribuição?

Mais um desafio inquietante é como elevar os níveis estéticos e éticos da mídia, sabendo que isso não pode ser feito com censura ou ingerência estatal, mas por meio da educação. De um lado, responsabilidade social de quem faz e do outro, reforço das defesas culturais de quem recebe.

Felizmente o seminário, que deve ter outras edições, não se propôs a resolver todos os problemas da mídia e da arte no Brasil. Foi de diagnóstico e sugestões, não de cura. Valeu pela disposição. Há muito tempo que agentes da cultura de massa não se reuniam para discutir tanto entre si. Não interesses corporativos, mas projetos e idéias para o país.’



Mônica Bergamo

‘Eu, tu, eles’, copyright Folha de S. Paulo, 15/02/04

‘Num cenário simbólico, o Tuca, teatro que foi palco de manifestações contra o regime militar, 70 artistas, intelectuais, publicitários, cineastas, escritores e editores se reuniram na quinta-feira para discutir a ‘valorização da produção cultural brasileira’. Do cinema estavam, por exemplo, Hector Babenco, Cacá Diegues e Luiz Carlos Barreto; da TV e do teatro, Antonio Fagundes, Glória Perez, Marieta Severo e Maria Adelaide Amaral; do mercado editorial, Ana Cristina Zahar e Luciana Villas-Boas. Os organizadores? A PUC-SP e a TV Globo.

A emissora vem, há alguns meses, se movimentando para conquistar a intelligentsia nacional para uma aliança em torno do que seria a ‘defesa e valorização da produção artística e intelectual brasileira’ -e, por que não?- a defesa e a valorização da própria TV Globo.

Num desses movimentos, Marluce Dias da Silva, diretora-geral da Globo, convidou os principais cineastas do país para visitarem a emissora. A TV levou ao ar uma série publicitária com personalidades que vão desde a empresária Milú Villela, presidente do MAM (Museu de Arte Moderna-SP) ao senador Paulo Paim, do PT, todas louvando as realizações da emissora nas áreas cultural e social. Fez ainda uma série de reportagens sobre a cultura brasileira.

No próprio seminário realizado no Tuca, cineastas lembravam que, em uma de suas conversas com Marluce, nos estúdios da TV, ela foi direta: disse que a emissora fatura, em um ano, o que uma empresa de telefonia celular pode faturar em apenas três meses; e que a emissora é ‘40 vezes’ menor do que a Time-Warner. Uma vez permitido que essas empresas estrangeiras passem a produzir, sem regras rígidas, conteúdo para brasileiros na mídia digital (como TV pela internet, nos próximos anos), a sobrevivência da própria emissora estaria ameaçada. E, junto com ela (calculou a diretora), estaria em risco a sobrevivência dos produtores de cultura nacional. A Globo também está incomodada com a possibilidade de o governo passar a regulamentar fortemente as televisões -cobrando, por exemplo, taxas que seriam destinadas à produção de filmes nacionais.

Os participantes do seminário no Tuca foram divididos em cinco grupos. Esta colunista foi convidada a compor o que discutiu ‘o impacto da produção estrangeira no mercado cultural e na cultura brasileira’.

O fato de a TV Globo promover uma campanha de ‘valorização’ da cultura nacional, ainda que entendido como uma estratégia defensiva, foi definido no grupo como uma ‘evolução’. Houve risos quando foi lembrada uma piada que faz sucesso entre os cineastas: o novo slogan da rede seria: ‘Globo e PC do B (Partido Comunista do Brasil): tudo a ver!’.

O assunto mais discutido foi a necessidade de regulamentação da produção de conteúdo para as novas mídias, de forma a assegurar que, tal qual acontece hoje nas mídias tradicionais, ela permaneça nas mãos de brasileiros.

A produtora Paula Lavigne afirmou que ‘a indústria cultural brasileira não é uma coitadinha: 80% do mercado de música consome produção nacional. A cultura brasileira reage a qualquer estímulo’. O cineasta Paulo Thiago disse que ‘o povo brasileiro tem o direito de ver seu próprio cinema, seu próprio teatro e sua própria música’ e defendeu, por isso, uma forte intervenção do Estado na cultura -outro tema polêmico que tomou conta da reunião.

Coube ao publicitário Roberto Duailibi, da DPZ, a revelação inusitada: o grande concorrente da cultura nacional tem sido -ele de novo!- o Programa Fome Zero do presidente Lula. ‘As empresas estão deixando de aplicar em cultura para investir no Fome Zero’, afirmou Duailibi. ‘A vocação de adesão do empresário brasileiro é infinita.’

As propostas de cada grupo foram redigidas e depois lidas para a platéia dos 70 participantes. A PUC e a Globo planejam novo seminário, agora aberto ao público e até com shows de cantores nacionais.’

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‘O ‘xô’ de Suassuna’, copyright Folha de S. Paulo, 15/02/04

‘Até a roupa do escritor paraibano Ariano Suassuna é um libelo à brasilidade: ele só usa calças e camisas feitas pela costureira Edith Minervina de Lima, nordestina, e feitas com tecido nacional. Radical, Suassuna já mandou retirar uma faixa, numa universidade, com a palavra ‘show’: ‘Para mim, isso é xô, de espantar galinha’, diz. O escritor abriu o evento realizado no Tuca com uma palestra que levou a platéia às gargalhadas.

‘Comecei a escrever aos 17. Em Taperoá havia um médico culto que me emprestou as obras de Ibsen. Foi um impacto muito grande, e eu tentei escrever. Mas vocês podem imaginar a diferença entre a Noruega e o sertão da Paraíba. Então eu parei.’

‘Desculpem, mas eu tenho um pigarro terrível. Fui secretário de Cultura do Miguel Arraes [governador de Pernambuco], ele pigarreava. E eu ficava num constrangimento terrível porque achavam que eu pigarreava para imitar o chefe.’

‘Eu gosto muito dos mentirosos -não dos que prejudicam os outros, mas dos que mentem por amor à arte. Estou cultivando um mentiroso de Pernambuco. Ele me contou uma maravilhosa mentira lírica. Disse que o pai era o maior fabricante de mel porque cruzou abelha com vaga-lume -e os bichos trabalham de dia e de noite!’

‘Eu estava em casa escrevendo ‘O Auto da Compadecida’ e apareceu um dramaturgo. Perguntou: ‘é regionalista? Passa no sertão? Tem cangaceiro? Rapaz, ninguém agüenta mais isso!’. Ele queria que eu mudasse o nome dos personagens, Chicó e João Grilo, porque eram de difícil tradução no exterior [risos]. Achamos graça, mas isso é muito grave.’

‘Fui procurado há dez anos pelo Chico Science [que misturava rock com maracatu]. Eu estava de acordo com a parte Chico dele, com a Science, do rock, não. Ele falou que fazia aquilo para valorizar o maracatu. Mas como é que uma coisa ruim valoriza uma coisa boa?’

‘O Brasil, rico como é, se deixar embasbacar por esses débeis mentais (…) Quando o John Lennon morreu, meu filho me avisou, e eu perguntei: quem é John Lennon? Eu não sabia! E meu primo, que é pior do que eu, achou que era João Lemos.’

‘Eu, por mim, reajo! Eu não admito nem… Outro dia chegou um cabra perto de mim e disse: ‘OK’. Eu disse: ‘Ah! Você Okô?’.’

‘Aqui mesmo, nesse seminário, eu tive uma decepção tremenda. [No programa] está escrito que às 10h30 tem um ‘coffee break’! No país do café! Atrás disso existe toda uma política, e isso é grave.’

‘O Machado de Assis dizia que o Brasil real é bom, mas o país oficial é caricato e grotesco. Se fosse vivo, ele veria que o país oficial hoje está mais caricato e grotesco ainda. Queremos ser grotescamente norte-americanos.’’



Nelson de Sá

‘‘É do Brasil’’, copyright Folha de S. Paulo, 12/02/04

‘O Jornal Nacional fez uma série de reportagens sobre cultura brasileira durante a última semana.

É parte de alguma campanha da Rede Globo -campanha que prossegue com seminário de diretores, atores, telenovelistas e outros globais a partir de hoje, em São Paulo.

As reportagens retratam o que é cultura nacional, no entender da emissora dominante. Para definir cultura, de cara, foram entrevistar a atriz de novelas Carolina Ferraz:

– O que faz a cultura de um povo é a língua que ele fala, o que ele veste, a música que ele escuta.

Passa um dia e, como exemplo do ‘ótimo negócio’ da cultura, o JN registra:

– Tudo começou com Jorge Amado, batendo à máquina. Era 1958, e a vida de Gabriela começou a encantar o Brasil. Do livro para a TV.

Para a telenovela, quer dizer. E a partir daí:

– Onde quer que Gabriela apareça, o mundo reconhece: é do Brasil.

Passa mais um dia e a coisa se escancara. O assunto agora é a cultura na TV, melhor dizendo, nas novelas da Globo. E o JN não economiza:

– É o maior complexo de TV da América Latina. Instalada num terreno com mais de um milhão de metros quadrados, a Central Globo de Produção abriga as cidades cenográficas, ou seja, os cenários das novelas e séries, além de dez estúdios e 15 módulos de produção. Uma fábrica de emoções que, no ano passado, produziu mais de 2.600 horas, equivalentes a mais de mil longas-metragens. Todos os programas foram exibidos no Brasil e também no exterior. A Globo exporta para mais de 60 países, da Rússia ao México, da Grécia ao Canadá.

E por aí foi, infindavelmente. Ouviu-se, do ator de novelas Marcos Palmeira:

– De repente você está dando autógrafo até para uma pessoa do Uzbequistão.

A propaganda travestida se manteve por mais dois dias. Num deles, a atriz de novelas Giovanna Antonelli foi levada a falar do que gosta, na cultura brasileira:

– Eu gosto de forró, adoro forró.

E o diretor Daniel Filho, da Globofilmes, surgiu para tratar do cinema:

– Queremos que o público brasileiro venha ver o cinema brasileiro.

Toda reportagem, durante a semana toda, terminava com o mesmo bordão:

– É a cultura que faz a cara do Brasil.

Troque ‘cultura’ por ‘Globo’ e a mensagem fica mais clara.’