Nos últimos dias, o artigo intitulado “É hora de perdoar o PT”, escrito por Ascânio Seleme em sua coluna no jornal O Globo, tem sido um dos assuntos mais comentados no cenário político brasileiro.
De acordo com o texto, “em nome da democracia e da tolerância”, os cerca de 30% de eleitores que votam frequentemente no PT não devem ser desprezados no debate público nacional, o que não se trata de minimizar os “erros” do partido – como as “práticas de corrupção” e a “índole autoritária” –, mas unir forças contra o grave problema que deve ser enfrentado por todos: o bolsonarismo. “Perdoar o PT não significa abrir mão de convicções. Ao contrário, significa pavimentar caminhos pelos quais pode se chegar ao objetivo comum de paz e prosperidade”, concluiu o artigo.
Ao entrar em contato com o texto, um leitor menos precavido poderia se perguntar: será que Ascânio Seleme e seus patrões, imbuídos do ideário cristão, esqueceram os vários ataques ao PT em um passado recente e resolveram “perdoar seus inimigos”?
Evidentemente, a resposta é negativa.
Primeiramente, é preciso enfatizar que o artigo de Ascânio Seleme não foi obra de um articulista isolado, que resolveu acenar positivamente ao Partido dos Trabalhadores.
Longe disso. Os textos presentes no jornal O Globo (e em toda imprensa hegemônica brasileira – do editorial às páginas de esportes) estão associados à ideologia dos proprietários dos grandes grupos de comunicação.
Não há espaço para o contraditório. Intelectuais e personalidades de esquerda – como Djamila Ribeiro, Sabrina Fernandes e Jean Wyllys – só aparecem na Rede Globo, Folha de S. Paulo ou CNN Brasil – porque seus discursos identitários – inócuos e confusos – não tocam no verdadeiro antagonismo de uma sociedade capitalista como a nossa: a luta de classes.
No máximo, eles conseguem fazer com que alguém desavisado pense: “Nossa! Como a Globo é progressista: fala sobre racismo, machismo e homofobia”. Pura demagogia.
Portanto, o artigo “É hora de perdoar o PT” não diz respeito apenas ao que pensam Ascânio e o Grupo Globo, ou os outros veículos da grande mídia. É o sentimento predominante na elite brasileira. Trata-se de mais uma etapa para a consolidação de um vasto movimento suprapartidário (supostamente de unidade nacional) de oposição ao governo Bolsonaro: a chamada “Frente Ampla”
Basicamente, os objetivos da elite brasileira com a Frente Ampla são recuperar a direita tradicional, esconder os recentes ataques à democracia, negar qualquer tipo de paternidade sobre Bolsonaro e o bolsonarismo, isolar Lula no cenário político, monopolizar a oposição e angariar o eleitorado petista. Para tanto, contam com os noticiários da grande mídia e suas inúmeras armadilhas editoriais.
Conforme já apontei em artigos anteriores, os discursos antipolítica e anticorrupção da imprensa hegemônica miraram no PT, mas atingiram com maior força a direita tradicional e trouxeram como efeito colateral o fortalecimento da extrema direita. Resultado: somente Bolsonaro seria capaz de vencer eleitoralmente o candidato do partido de Lula.
Nos últimos meses, os índices negativos do país na área econômica, as atitudes irresponsáveis do presidente em relação à pandemia do coronavírus, os flertes com ideias e práticas autoritárias e os ataques de Bolsonaro e seus seguidores à imprensa tornaram imprescindível para a grande mídia desvincular-se totalmente da imagem do presidente e esconder de todas as formas o seu apoio ao ex-capitão durante a campanha eleitoral.
Também é importante lembrar que, em uma sociedade polarizada, o PT surge no cenário político como adversário mais forte de Bolsonaro. Ter que aderir ao bolsonarismo em mais uma campanha eleitoral não está nos planos da grande mídia. Optar por um candidato apoiado por Lula, muito menos.
Como o eleitorado da direita tradicional migrou para o bolsonarismo, a solução é trazer o eleitorado petista para o “centro” (eufemismo para “direita tradicional”), convidando o PT (sem Lula, evidentemente) para compor a Frente Ampla contra o mal maior: o bolsonarismo.
Em outros termos, isso significa que a mídia quer fazer com que o eleitorado da esquerda deixe de lado seus valores ideológicos e o PT funcione como uma espécie de trampolim para o ressurgimento da direita tradicional.
Não por acaso, Fernando Haddad – representante da “ala moderada” do Partido dos Trabalhadores –, tem sido presença constante em programas da grande mídia, defendendo, justamente a Frente Ampla; enquanto Lula, “radical” e contrário à Frente Ampla, não tem voz nos principais veículos de comunicação do país.
Não sejamos ingênuos! A exposição ou a ausência de uma determinada personalidade política nos noticiários da imprensa hegemônica não obedecem a critérios jornalísticos, mas meramente ideológicos.
E assim, a mesma mídia que incentivou o fascismo a sair do armário para engrossar as manifestações anti-PT, agora lança editoriais e notas de repúdio contra o extremismo bolsonarista. A mesma mídia que incentivou a classe média a vestir amarelo para legitimar mais um golpe de Estado, agora pede que as pessoas vistam “amarelo pela democracia”. A mesma mídia que elegeu Bolsonaro para aplicar a nefasta agenda econômica neoliberal, agora finge não ter nada com isso. E o que é mais surreal: a mesma mídia que atacou tendenciosamente o PT nas últimas décadas, agora quer que o partido peça perdão, no melhor estilo Síndrome de Estocolmo.
Em suma, parafraseando Ascânio Seleme, pelo apoio a golpes de Estado e por sempre se posicionar a favor dos interesses da elite em detrimento dos anseios populares, definitivamente, ainda não é tempo de perdoar a grande mídia.
***
Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor dos livros 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV) e Crônicas no Jornal O Tempo: o olhar de Francisco Ladeira sobre o mundo contemporâneo (Vicenza Edições Acadêmicas).