No manifesto Caranguejo com Cérebro (1992), Fred Zero Quatro (1965), compositor do grupo pernambucano Mundo Livre S/A,esboçou as bases teóricas do movimento de contracultura recifense manguebeat, criado na década de 90 do século passado e que teve como expoentes, além do próprio Fred Zero Quatro, os compositores e cantores Chico Science (1966), morto prematuramente num grave acidente de trânsito; e Jorge Du Peixe (1967), criadores (os dois últimos) da singular Nação Zumbi, banda inspirada no líder negro, Zumbi de Palmares, e que propõe uma liberação da escravidão musical através da combinação rítmica de partículas sonoras nem locais e nem globais, nem humanas nem inumanas, posto que emitidas e captadas a partir das brechas ou frestas do movimento de existir, sem se fechar em fronteiras subjetivas ou rítmicas.
Tendo como referência a orquestração de vidas que ziguezagueiam no complexo ecossistema de peixes, caranguejos, mamíferos, répteis, microorganismos do mangue (sem contar e já contando a relação não menos intrincada, singular e benfazeja do milagreiro encontro híbrido entre a água doce com a salgada, aluvião de resíduos formados tanto pelos rincões montanhosos e planos dos interiores continentais , assim como dos não menos distantes e profundos mares, num ritmo de baixas e altas marés de danças entre seres doces e salobros), Fred Zero Quatro, no referido manifesto, propõe a instalação de antenas de rádio e televisão nos manguezais de Recife, sugerindo, assim, que o caos da alma da lama ou da lama das almas de faunas e floras possam receber os sinais da terra e do cosmos, aumentando ao infinito o aluvião de híbridos, dissonantes e intrincados encontros de partículas sonoras não menos mestiças de fomes econômicas, culturais, epistemológicas, étnicas, animais, minerais, proféticas.
O público não é simples massa de manobra
Inspirado no recifense cidadão do mundo Josué de Castro (1908-1973), autor do extraordinário Geografia da fome (1946), o manifesto Caranguejo com Cérebro propõe a indistinção entre o estômago e o cérebro, a partir de uma racionalidade ou musicalidade antropofágica, de tal sorte a tornar indiscernível arte e fome, natureza e cultura, o local e o cosmopolita, razão por que detém a seguinte divisão estrutural: 1) Mangue, o conceito; 2) Manguetown, a cidade; 3) Mangue, a cena.
O mangue é, pois, ciclicamente o conceito, a cidade e a cena ou cenário de realização da música de existir como antena do cosmos, razão pela qual tudo é antena porque é mangue, porque este é a antena ou estômago que capta as partículas sonoras de outros mangues, como o mangue estomacal do maracatu em relação antropofágica ou estomacal com o conceito ou a cena do hip-hop, do funk, do rock and roll, do reggae, dub, do raggamuffin, sem se distinguir nunca, na mistura cosmológica de sons, do mangue como conceito da cidade onde se vive, com suas redes de afluentes de comuns homens caranguejos, que vivem na lama, para a lama e com o estômago e o cérebro enlameados, porque vivem do barro de que somos formados, fora de toda especulação transcendental, enlameados rés-do-chão que, querendo ou não, nos fazemos enlamear no tecer e destecer do ser.
Como se vê, a proposta musical do movimento manguebeat não deixa de ser uma singular realização do conceito de mediação, formulado pelo comunicólogo espanhol, naturalizado colombiano, Jesús Martín-Barbero (1937), o qual, no livro Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia (1997), opôs-se à concepção restritamente marxista da cultura de massa como alienante meio de dominação, através da indústria cultural, de uma minoria sobre as maiorias massificadas, com o propósito de afirmar o lugar das mediações produzidas pela audiência, vista não mais como passiva antena receptora de sinais midiáticos produzidos por grupos econômicos, mas antes de tudo como mediadores de sentidos ancorados em antenas fincadas na lama de seus estômagos étnicos, de gênero, etários, econômicos, de tal maneira a poder afirmar que o público não é simplesmente uma estanque massa de manobra (o público não é idiota!), uma vez que o sentido recepcionado é sempre mais complexo que a soma de suas partes constituídas – ou sempre mais escorregadio e imprevisto que a mera mecânica positivista inscrita nas figuras do emissor e do receptor.
A transculturação é como um estuário
Existe sempre, pois, um mangue de mediações trans-subjetivas no mapa dinâmico da produção, distribuição e recepção de informações e artefatos culturais. A relação produtor-receptor simplesmente é insuficiente para dar conta das interações que os diferentes perfis de público recepcionam e produzem no ininterrupto movimento das mediações realizadas a partir das singularidades humanas, sempre inclassificáveis e voláteis quanto mais mestiças forem as culturas que formam o diagrama cotidiano da recepção-produção de sentidos autônomos e não direcionáveis.
Em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), o sociólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) analisou detidamente a formação étnico-cultural do povo cubano a partir dos conceitos antropológicos de aculturação, quando um povo dominado é tomado pela cultura do dominador, alienando-se de sua própria cultura de origem; de inculturação, que é o movimento interior ou subjetivo da aculturação; de desculturação, quando o povo aculturado realiza um dinâmico exercício de rasura da cultura dominante tendo em vista um mangue de singularidades de sua própria cultura para, ao fim da dinâmica síntese, produzir-se como povo transculturado, nem mais aculturado ou inculturado, mas antropofagicamente outro, híbrido, múltiplo ou simplesmente mais complexo, porque tecido e entretecido de variáveis de mediações transculturais formadas e deformadas do e no aluvião de encontros entre múltiplos povos.
A transculturação é, pois, como um estuário, a cena ou manguetown, o conceito, tal como pensado, em perspectiva, pelo compositor Fred Zero Quatro, no manifesto Caranguejo com Cérebro, simplesmente porque é aluvião de etnias e acontecimentos econômico-culturais- antenas do mundo.
Produtos culturais marcados por formas de mediação
A análise que Fernando Ortiz fez do povo cubano é perfeitamente aplicável ao latino-americano, razão pela qual é possível dizer que somos tanto mais transculturalizados quanto mais somos amálgamas de mediações culturais, étnicas, econômicas, religiosas, epistêmicas, de gênero; quanto mais “manguebeat” nos fazemos ser através das batidas de ritmos de multiplicidades de antenas cravadas no coração de mediações marcadas pela experiência do sofrimento, da submissão, mas também da luta para produzir sentidos liberadores no estuário de encontros de singularidades a produzir o agregado de não menos transculturadas soluções, ainda que precárias, como antídoto em relação às dominações e colonizações de ontem e de hoje.
Ainda que compartilhe com as instigantes análises propostas tanto pelo colombiano Jesús Martín-Barbero como pelo cubano Fernando Ortiz – tendendo a traduzir mediação por transculturação, no vice-versa do versa-vice – penso que é importante igualmente considerar que as mediações, entendidas como aluvião de interações tecnológicas/étnicas/culturais trans-subjetivas, não constituem atributos intrínsecos ao mundo da audiência, mas também dos produtores/controladores/ concentradores da indústria cultural, inclusive obviamente tendo em vista o mundo das notícias e informações transmitidas pelas mais diversas formas de mídia, pois que tudo é parte da indústria cultural-midiática, ela mesma uma dinâmica máquina ou mega-máquina de mediações transculturais, marcadas e demarcadas por pretensões despóticas e dominadoras.
Sob esse ponto de vista, conceitos como o de mediação, de carnavalização, de antropofagia, geralmente pensados como uma espécie de volta por cima dos povos dominados, de modo algum devem ser analisados ou usados de uma forma unidimensional porque um público capaz de realizar suas próprias mediações é também obviamente um público que recebe produtos culturais marcados por intensas formas de mediação.
Oligarquia midiática realiza mediações entre si
O movimento das mediações, como uma dialética, é, portanto, sempre duplo: um povo transculturado, como o latino-americano, sofrerá intervenções imperialistas também transculturadas. Uma população que carnavalize as figuras do poder também será carnavalizada pelas figuras do poder. O estuário ou mangue nos envolve a todos. Todos somos sujeitos e objetos do aluvião de encontros da e na guerra de poderes, razão pela qual nossas mediações não são apenas constituídas por fluxos de resistência ou alternativas aos poderes dominantes, de vez que mediamos também “esgotos” de micropoderes machistas, racistas, patriarcais, econômicos, no estuário de nosso cotidiano.
O sistema midiático brasileiro oligopolizado não teria a audiência que tem – e o poder, portanto – se não fosse apto a produzir ou transmitir informações, notícias e artefatos culturais como novelas, filmes e publicidades marcados por mediações igualmente transculturais. O povo do carnaval, como o brasileiro, é também um povo carnavalizado pelo sistema midiático aqui instalado. Aluvião é o que é: misturas vindas de múltiplas direções. Não nos enganemos, pois: nossa mídia dominante é aluvião e inclusive, como estuário que é, receberá também de forma ativa – e não apenas reativa – as inovações tecnológicas nas áreas das comunicações, razão por que produzirá intensas mediações com o mundo virtual da internet, o que já está ocorrendo por todos os lados, residindo aí a pertinência da metáfora do estuário.
Consideremos, a propósito, o caso recente protagonizado (?) pelo ministro do Supremo Gilmar Mendes. As acusações que ele fez ao presidente Lula – de que este teria proposto uma interferência no julgamento dos petistas envolvidos no “mensalão” – são, como sabemos, baseadas apenas em seu testemunho. A circunstância mesma de ter sido um depoimento sem provas cabais que demonstrassem a veracidade de sua acusação teve a repercussão que teve porque a oligarquia midiática brasileira realiza intensas mediações entre si, tendo em vista interesses próprios e exteriores – o imperialismo americano –, com os quais ela dialoga de forma dinâmica e transcultural.
A CPI do monopólio midiático
Existe sempre um aluvião de razões nas notícias veiculadas no Jornal Nacional. Como, sob esse ponto de vista, ignorar esta forma de mediação predominante no Brasil: a revista Veja produz factoides – e outras, é claro –, que são repercutidos pelos jornais Folha de S.Paulo, o Estado de S. Paulo, a rádio Jovem Pan e a CBN Notícias. Tais factóides, como um aluvião, transbordam no estuário ou caixa de ressonância, mediadas por razões nazistas, ao estilo Goebbels, da TV Globo, faiscando, num efeito dominó de mediações inter-midiáticas de poderes locais, pelas mídias estaduais e municipais de todo o Brasil. Como ignorar que, no mundo inteiro, onde elas existem, as embaixadas americanas funcionam antes de tudo como mediações dos interesses imperialistas com as oligarquias locais? Será, a propósito, circunstancial o fato do senador Demóstenes ter um celular habilitado nos Estados Unidos?
Não existe contradição alguma na união entre o sério senador Demóstenes com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e a articulação de ambos nos bastidores das notícias pré-fabricadas pela revista Veja. Isso não torna Demóstenes menos sério. O aluvião das mediações implica o encontro de opostos, de forma carnavalizada. É nesse sentido que argumentei que a oligarquia que domina o sistema midiático brasileiro nos carnavaliza, porque tudo é uma avacalhação só. O depoimento “sério” de Gilmar Mendes, bem entendido, é o discurso carnavalizado de um bufão. A seriedade com qual ele apareceu no Jornal Nacional nada mais é do que a cara de pau de um palhaço – fingindo seriedade – diante das complexas mediações que o miscigenado povo brasileiro é capaz de realizar.
O que está em jogo, pois, não é a mediação que a audiência é capaz de realizar de forma autônoma, criativa e transcultural, mas a própria luta pelas formas de mediação que serão gestadas pelo público no intrincado e não menos mediado cotidiano. Tudo é mediação, aluvião de práticas, saberes, imaginários e perspectivas, razão por que tudo é também mediado pelos poderes dominantes. Se não tivesse sendo interpelada internamente por uma série de mediações inconfessáveis, a estrategicamente designada CPI de Carlinhos Cachoeira deveria ser a CPI da mediação dominante da oligarquia golpista brasileira. Deveria, ser, pois a CPI do monopólio midiático e suas não menos golpistas mediações com a embaixada americana no Brasil e, por extensão, com os interesses do imperialismo americano não apenas no Brasil, mas também na América Latina.
O aluvião de golpes
Certamente se a CPI de Carlinhos Cachoeira fosse o que deveria ser, a da golpista oligarquia midiática brasileira (que tem a TV Globo como seu estuário detonador de mediações a serviço antes de tudo dos aluviões de interesses imperialistas no Brasil e América Latina), teríamos uma singular oportunidade de realizar uma verdadeira investigação dos crimes cometidos pela ditadura brasileira no período de exceção iniciado com o golpe militar de 64. Tal CPI seria a verdadeira Comissão da Verdade, pois investigaria não apenas o passado dos crimes cometidos pelos militares brasileiros, manietados pelo imperialismo americano, mas antes de tudo o presente das mediações golpistas que o imperialismo americano continua implementando no Brasil e na América Latina, usando, para tal, as mediações transculturais internas realizadas pelo oligopólio midiático brasileiro, consorciado com a nossa extrema direita, representada, de forma não menos mediada, pelo PSDB, pelo DEM e pelo PSD de Kassab.
O que está em jogo, portanto, na luta pela hegemonia das mediações levadas a cabo pelo povo brasileiro são múltimas outras mediações de interesses de curto, médio e longo prazo, as quais perpassam tanto o rumo que deve ser dado à CPI de Carlinhos Cachoeira, assim como as eleições municipais deste ano, com vistas antes de tudo às eleições presidenciais de 2014. O ataque ao ex-presidente Lula está, portanto, mediado pelo aluvião ou estuário implicado com esta tripla questão: CPI do oligopólio midiático golpista, eleições municipais e presidenciais.
Sob esse ponto de vista, não tenhamos dúvidas, numa encruzilhada qualquer do estuário midiático golpista brasileiro, o próximo alvo será sempre a presidente Dilma Rousseff. O aluvião de golpes é, pois, contra ela, porque é sobretudo contra as mediações de justiça que ela encarna ou se propôs encarnar, ao disputar as eleições das quais resultou eleita. É nesse sentido que podemos dizer que as táticas e estratégias de golpe também são constituídas ou levadas a cabo como uma espécie de “mangue” ou viveiro de golpes com vistas a determinar o rumo das mediações a serem vividas pelo presente e pelo futuro do povo brasileiro.
Eis aí a nossa verdadeira questão
E é no interior desse aluvião golpista que a presidente Dilma Rousseff já começou o jogo golpeada de antemão, razão pela qual – descontando o mérito de ter começado a baixar os extorsivos e corruptos juros bancários – não está (ainda?) devidamente ancorada no mangue das urgências históricas do povo brasileiro, sobretudo se considerarmos setores como o da educação – em greve em quase todo o Brasil –, da saúde, da moradia, do saneamento básico, do sistema midiático e tantos outros que são verdadeiras questões de vida ou de morte para as nossas carnavalizadas e humilhadas populações.
O que a presidente Dilma Rousseff deve (ou deveria) saber é que sua omissão ou leniência em setores de extrema importância para a mediação cotidiana da vida presente e futura de nosso povo transbordará no estuário não apenas de sua própria biografia, mas também e antes de tudo no destino do fabuloso mangue transcultural do povo brasileiro e latino-americano – verdadeiros conceitos ou cenas do mangue-mundo de aluviões de povos de todos os rincões do planeta, golpeados pelos esgotos midiáticos – mas não apenas – dos genocídios imperialistas de ontem e de hoje.
Em época de Rio + 20, eis aí a nossa verdadeira questão antropológica, sociológica, filosófica, ética, estética, midiática – ecológica.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes]