Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Teses sobre o close-up

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Em diálogo com Gilles Deleuze e Félix Guattari, especialmente com o volume três de Mil Platôs (1996), este artigo assume de antemão o argumento de que o capitalismo pode e deve ser analisado como uma empresa mundial de produção, distribuição e consumo de rostos, de modo que, nele e através dele, tudo se torna rostidade, rosto de rosto: o dinheiro, as mercadorias, a propriedade privada, o amor, as subjetividades, as ideias, o desejo, o ódio, o medo, as artes, a violência, a paz, a alegria, a justiça, a cultura, as guerras, o saber, a verdade, as notícias.

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A empresa mundial de confecção, distribuição e consumo de rostos, o capitalismo, possui uma fórmula responsável pela rostificação infinita da vida: a do muro branco no qual e através do qual se espalham buracos negros das imagináveis e inimagináveis possibilidades de perfis humanos mensuráveis e imensuráveis, tendo em vista um processo de significação dominante comprometido até o miolo com o rosto branco, heterossexual, masculino ou simplesmente com o rosto branco adulto e macho do europeu mediano.

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No decorrer da primeira modernidade, iniciada com a expansão colonizadora européia no século 16, durando até a Segunda Guerra Mundial, a fórmula do rosto, muro branco/buraco negro, fez-se e refez-se como máquina binária que punha em polos opostos: 1) o cristão e o não cristão; 2) o civilizado branco macho ocidental e o bárbaro não ocidental e não branco; 3) o homem e a mulher; 4) o heterossexual e as outras sexualidades; 5) o alfabetizado e o analfabeto; 6) o Ocidente e o Oriente;7) o centro ou o norte e a periferia ou o sul; 8) o rico e pobre; 9) o burguês e o operário; 10) a cidade e o campo; 11) a oligarquia e a plebe.

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Essa primeira modernidade, por se constituir como máquina binária de produção de rostos opostos e irreconciliáveis, é também hierárquica, patriarcal e, por conseqüência, marcada por subjetividades tomadas pela culpa, pelo ressentimento, pelo ódio, a moral de escravo, independente se o rosto em questão ocupe o lugar do opressor ou do oprimido, uma vez que a fórmula muro branco/buraco negro foi usada, durante a primeira modernidade, com o propósito de produzir sujeição social generalizada.

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A posição do filósofo alemão Nietzsche contra a moral do escravo foi, em sua época, extemporânea porque não é nem burguesa nem operária, nem opressora nem oprimida, constituindo-se, bem entendido, como uma linha de fuga em relação à máquina binária opositiva do sistema de rosto da primeira modernidade.

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O poeta Carlos Drummond de Andrade, talvez no mundo todo, foi a voz lírica, em dissonância, desse sistema de rosto maniqueísta, pois, em sua poética, expressou a falência desse modelo, elevando ao quadrado o ressentimento e a culpa, ao produzir singulares poemas de ressentimentos sobre ressentimentos e de culpas sobre culpas, antecipando, assim, o fim do sistema de rosto binário e maniqueísta da primeira modernidade.

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A segunda fase da modernidade, esboçando-se após a Segunda Guerra Mundial, embora já viesse sendo gestada desde muito antes, foi e é marcada pela multiplicação do buraco negro ou das subjetividades, de tal sorte que o muro branco, da fórmula de rosto, muro branco/buraco negro, passa a ser totalmente tomado, razão pela qual acreditamos viver num período histórico de diferenças e diversidades.

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A consequência mais evidente da tomada do muro branco pelos buracos negros das subjetividades é a sensação de que vivemos num mundo sem hierarquias, sem maniqueísmos, sem opressor e sem oprimido, sem, portanto, binarismos opositivos entre branco e não branco, rico e não rico; heterossexual e não heterossexual; homem e mulher e assim por diante.

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No atual período histórico, o muro branco se transforma em buraco negro sem deixar de ser muro branco, de modo que qualquer rosto pode ser mais branco que o branco rosto europeu ou mais patriarcal que o patriarcado; ou mais heterossexual que o heterossexual; mais rico que o rico, mais opressor que o opressor; ou mais hierárquico que a hierarquia, independente se é de fato branco, patriarcal, heterossexual, hierárquico, opressor, razão por que o sistema de rosto do mundo contemporâneo é o que utiliza ou coopta o rosto alheio, não branco, não patriarcal, não ocidental, a fim de que cumpra, tal rosto de outrem, o subserviente papel, ainda que alegre e orgulhoso de si, de estar a serviço do sistema de rosto branco, macho, ocidental, capitalista.

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Diferentemente da primeira modernidade, na atual fase histórica, por alguns chamada de pós-modernidade, a máquina binária muro branco/buraco negro tomou de assalto a divisão opositiva entre realidade e ficção, de modo que esta se apresenta como a própria realidade, sem ser, pois não apenas está a serviço desta, mas antes de tudo é subserviente à realidade dominante ou tornada dominante no decorrer da primeira modernidade, ainda que, de modo igualmente alegre e orgulhoso de si, professe, em seus bufões e teatrais rostos, o fim da dominância do rosto branco, heterossexual e proprietário do capital.

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Os Estados Unidos da América se tornaram o epicentro da atual fase histórica. Hollywood, nesse contexto, não é a capital do cinema americano, mas a verdadeira capital do planeta, num contexto em que, no mundo todo, a ficção ocupa o lugar da realidade, sem que esta deixe de existir ou perca espaço social, pois, muito pelo contrário, é precisamente porque o princípio de realidade do sistema de rosto do capitalismo é mais branco, heterossexual e ocidental que nunca que todo e qualquer rosto pode agir como se fosse livre para expressar, sem ressentimento ou culpa, e afirmando a si mesmo, o sistema de rosto dominante.

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Considerando a segunda fase da modernidade, chamada de pós-moderna, nela e através dela os Estados Unidos da América foram e ainda são a matriz da empresa mundial de produção, distribuição e consumo de rosto do capitalismo porque souberam (não sem o uso da força bruta patriarcal, haja vista o seu poder bélico) pragmaticamente jogar com os rostos, transformando a ideia de democracia em ficção ou publicidade democrática de rostos livres afinal de contas para expressar o sistema de rosto dominante do capital, de modo que o limite da liberdade, em nossa atual época, é precisamente o muro branco do capital.

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Mais que o cinema, a televisão constituiu-se como o principal suporte tecnológico do sistema muro branco/buraco negro da pós-modernidade, pois ela mesma é o próprio buraco negro das subjetividades ocupando todo o muro branco, transformado em jogo de luzes eletromagnéticas.

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Os Estados Unidos da América são, pois, mais que o cinema, a televisão do mundo ou o grande espalhafatoso buraco negro geográfico a ocupar ou suturar todo muro branco do planeta Terra, sob a forma de imperialismo, através da ficção de um mundo democrático no qual e através do qual o branco, o macho, o rico, o ocidental supostamente se transformam em rosto dentre rostos, num contexto histórico no qual e através do qual, fora da ficção, logo fora do cinema e da televisão, a realidade é uma só: é branca, é heterossexual, é rica, é racista, belicista; quinteto que constitui, mais do que nunca, o poder dos poderes, agora metamorfoseado em ondas eletromagnéticas, via-satélite, encarnadas ou pegadas em qualquer rosto a seu serviço, pois hoje o rosto em si é o próprio muro branco do capital.

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Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, como homem negro, é apenas mais um rosto em si, ou muro branco, de um mundo cuja realidade é mais branca do que nunca, via-satélite, eletromagneticamente. Hillary Clinton, secretária de Estado dos Estados Unidos, como mulher, é apenas mais um rosto em si, ou feminino muro branco ficcional, de um mundo cuja realidade é mais masculina do que nunca, via satélite, eletromagneticamente.

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E é porque o primeiro poder desde que o mundo é mundo da opressão, antes de ser branco, é masculino – vale dizer, bélico – que Hillary Clinton, mesmo não sendo a presidente da televisão do mundo, os Estados Unidos da América, manda no imperialismo americano mais que Barack Obama precisamente porque é mulher e porque, sendo mulher, cumpre o script à risca do papel feminino no sistema de rosto da pós-modernidade, a saber: o de ser mais macho que macho, na suposição de que, assim sendo, é livre, razão por que ela é, de forma ficcional apenas, o exemplo vivo e encarnado de que o muro branco patriarcal e despótico foi finalmente destronado, embora, de forma real, inscreva seu trono de sempre no rosto alheio, especialmente no rosto feminino: muro branco do poder patriarcal no contemporâneo.

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Se o sistema de rosto do capitalismo pós-moderno é o de produzir a distribuição e o consumo do rosto do negro como mais branco que o rosto do branco, do rosto da mulher como mais macho que o rosto do macho, do rosto do pobre como mais rico que o rosto do rico, do rosto do laico como mais religioso que o rosto do religioso, do rosto da esquerda como mais direita que o rosto da direita; da infância como mais adulto que o rosto do adulto, talvez não seja circunstancial que Hillary Clinton seja, bem mais que a secretária do Estado dos Estados Unidos, a secretária mundial da morte, do golpe, do genocídio, do racismo e assim por diante, não sendo circunstancial que o dia em que veio ao Brasil, na ocasião do Rio + 20, tenha sido o preciso dia do golpe de Estado contra o presidente Lugo, no Paraguai, pois seu rosto estava aqui na América Latina para, cinicamente, anunciá-lo – rosto de mortais golpes, sorridentemente.

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São meia noite do dia 13 de julho de 2012 e, neste exato momento, enquanto escrevo, escuto e vejo o programa Na Moral, da TV Globo, com Pedro Bial. Desde aqui, onde escrevo, tenho a singular oportunidade de ver e ouvir o ator Pedro Cardoso polemizar falando mal da própria mídia – não da TV Globo, é claro – citando indiretamente Guy Debord, discordando frontalmente (face to face) de Pedro Bial e, mais que isso, brincando de ocupar o seu lugar como o “dono” polêmico do programa Na Moral, embora ao fim e ao cabo Pedro Bial assuma o seu “legítimo” lugar, colocando Pedro Cardoso em seu devido papel de mero circunstancial porra-louca tomado pelo abraço de rostidade dominante da TV Globo, numa circunstância – marca do próprio programa Na Moral –, em que ele, Pedro Cardoso, está ali apenas para ser o rosto como muro branco do buraco negro televisivo chamado TV Globo, a fim de que esta inscreva nele, como muro branco contestador, a subjetividade pós-moderna de sua dominação despótica, travestida de abertura ao questionamento e à crítica, razão por que a verdadeira moral do programa Na moral é a de constituir-se como o rosto da polêmica pela polêmica, como buraco negro no muro branco do capital, para o capital, através do capital, sem nunca ir além da ditadura flexível do capital.

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O capitalismo contemporâneo – com sua fábrica mundial de produção de rostos não brancos mais brancos do que nunca; de rostos pobres mais ricos do que nunca, de rostos democráticos mais ditadores do que nunca, de rostos contestadores mais domesticados que nunca; de rostos de paz mais belicistas do que nunca; de rostos femininos mais machos do que nunca, de rostos civilizados mais bárbaros do que nunca – é ao fim e ao cabo uma “grande família”, tal como o programa de mesmo título da TV Globo, no qual e através do qual a grande família nada mais é que a velha família patriarcal e edípica: papai, mamãe, filhinhos, com e através do rosto da classe média brasileira: rosto de rosto no muro branco do adulto ocidental médio, tanto mais normal e simpático, tanto mais a serviço do fascismo e do holocausto alheio.

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E é porque a fórmula muro branco/buraco negro do capitalismo pós-moderno foi toda tomada por uma invasão sem fim de subjetividades a serviço do muro branco da mais-valia do capital, que a saída do capital, entendido como máquina mundial contemporânea de produção infinita de rostos ficcionalmente livres, certamente não se inscreve no sistema de rostos, com suas estilizadas subjetividades que funcionam como muro branco ou pauta vazia para escrita genocida do capital, mas, fora da paisagem de rostos da fábrica capitalista mundial, a saída do capital ou se dá através da justiça econômica coletiva, para além dos países isoladamente, para todos os habitantes da terra, ou, qualquer outra saída de e através de rostos isolados, não passará de muro branco para a ditadura internacional e genocida da guerra do capital contra a vida.

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Sair, pois, do capital, só é possível através de um processo revolucionário de desrostificação planetária do close-up cinematográfico ou televisivo esquadrinhado na e através da máquina binária norte/sul/; branco/não branco /; heterossexual/não heterossexual/;homem/mulher/; democrata/ditador/; Ocidente/ Oriente; num contexto, como o atual, em que, como se viu, o segundo termo da máquina binária de rostidade – o não branco, o não heterossexual, a mulher, o sul, o ditador, o oriente – vira muro branco para extraordinárias edições compradas pelo buraco negro genocida do capital.

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Os Estados Unidos são o close-up da paisagem de rostos do capitalismo mundial integrado e, no Brasil, a TV Globo é o close-up do buraco negro televisivo planetário, a serviço do filme de horror da carnificina ou holocausto do negro, do índio, do latino, do oriental, do africano, do miscigenado, da mulher, das sexualidades não heterossexuais, do pobre, da infância, dos, enfim, abandonados e condenados da Terra, pois, quanto mais o capitalismo avança sobre os rostos das diferenças, domesticando-as, colonizando-as e incorporando-as, fazendo-as produzir mais-valia branca, racista e financeira, mais o não branco, o não heterossexual, o não proprietário, o não alfabetizado são ignorados, manipulados, massacrados, além de apresentados como rostos não capitalistas dos não democratas, dos bandidos, dos terroristas, dos perigos a serem dizimados, através de humanitárias guerras, como rostos de rostos de terroristas cruzadas contra as diferenças.

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Para, enfim, sair do sistema de rosto do capital e, por consequência, produzir uma civilização pós-capitalista de infinitas justiças, mais que simplesmente trocar de canal, através do controle remoto, é preciso desligar a televisão do capital, produzindo um mundo sem submetidos rostos vivamente mortos, como teatro de subjetividades tanto mais livres quanto mais não passam de meros muros brancos a serviço da pilhagem da vida na Terra.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes]