Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A indústria cultural e a guerra híbrida mundial

Curiosa é a origem grega da palavra hybris. De um lado, tendo em vista sua etimologia, significa desafio, provocação ou insubordinação a uma ordem cosmológica preestabelecida pelos deuses, constituindo-se como um presente dilatado, sem passado e sem futuro, na suposição de que sempre existiu e sempre existirá – a ordem tal.

Nas tragédias gregas, a palavra hybris representa uma atitude de insolência do herói perante a natureza primeira e última das coisas e dos seres. Édipo, por exemplo, personagem da peça Édipo-Rei (427 a.C.) de Sófocles, mesmo sem o saber, desafia aos deuses e realiza a hybris quando mata seu pai, Laio, e se casa com sua mãe, Jocasta.

Num certo sentido, Édipo é a hybris encarnada desde antes de nascer, pois seu destino já estava marcado nas estrelas como antinatural: seria órfão, pois foi abandonado pelo pai, ao qual mataria tendo como prêmio a união conjugal com sua mãe, Jocasta. Nele e através dele (e sempre não obstante ele mesmo) viria inscrever-se a hybris da orfandade, do parricídio e do incesto, não podendo, por consequência, produzir senão uma geração de híbridos filhos, Antígona, Etéocles, Ismênia e Polinice, doravante condenados a habitar a terra de ninguém da ausência de origem ou de origem manchada, como ocorre desde sempre com o povo, outro nome para a hybris, porque cosmologicamente sem pai nem mãe, sem Deus; porque, enfim, originalmente maculado por um destino de mistura heterogênea, impura, antinatural, incerta, duvidosa, híbrida.

Habitante da terra de ninguém

De hybris, portanto, chega-se ao adjetivo híbrido, que qualifica, desde igualmente os gregos, toda mistura antinatural, porque elaborada através de elementos que supostamente violam leis naturais, razão por que, insisto, o povo é híbrido, mistura de ninguém com coisa alguma, gerando indefinidos seres sem origem, sem castas, sem eira nem beira, tanto mais livres e antinaturais, quanto mais são demos sem cracias, isto é, povo sem poder, pois, sendo povo ou demo sem um poder soberano ou transcendente que os domestique, estão finalmente livres para compor suas misturas antinaturais, como aberto presente e futuro nos quais e através dos quais o híbrido povo pinta e pintará o sete do esboço não menos híbrido de sua infinita liberdade.

É nesse sentido que é possível interpretar a palavra democracia não como o regime do povo, para o povo, através do povo, mas, em termos da experiência ocidental, como o sistema político em que o povo, mesmo que através dele mesmo, está impedido de compor livremente o presente e o futuro de sua hybris social, razão por que democracia, sobretudo a representativa, nada mais é ou tem sido do que o regime de domesticação da hybris factível para o povo não fazer-se como híbrido povo de si.

Se, pois, o povo é hybris, mistura antinatural, a questão democrática, para quem manda e desmanda de fato no Ocidente, o imperialismo americano, não é de forma alguma a de estimular o povo a inventar a mistura que lhe aprouver, mas, antes pelo contrário, é a de realizar a mistura híbrida com elementos heterogêneos de tal sorte a produzir o povo ideal para o sistema de poder do mundo contemporâneo, no qual e através do qual o que está em jogo é a invenção de um povo que de forma alguma possa ser povo de sua hybris, mas um povo hibridizado de tal maneira que este, hibridizando-se, possa voltar-se contra si mesmo, realizando a guerra ou a luta de classes contra, principalmente, o direito terráqueo (outro nome para hybris) de o povo, como habitante da terra de ninguém, realizar livremente a hybris de sua liberdade e justiça, hibridamente sem fim.

A híbrida rede de comunicação

O imperialismo, mais do que todos nós, sabe que a questão do poder é, portanto, a do domínio sobre a hybris da população terráquea. Ele sabe que tudo no mundo é mistura heterogênea. Sabe que tudo – o sujeito, as identidades, as nações, os valores, a cultura, a informação, a criação, o saber, o amor, as instituições, os sistema políticos – é impuro, não unitário, não homogêneo; sem começo, sem meio e sem fim, em si mesmo.

Não existe, pois, esquerda que seja puramente esquerda, sem conter elementos heterogêneos de direita, centro direita, de extrema direita, de fascismos. Não existe mulher que não contenha nela elementos de machismos em graus diversos ou negros que não incorporem em si e através de si misturas de racismos às avessas. O imperialismo sabe, em resumo, e de forma pragmática, que a melhor maneira de dominar o mundo é dominar a hybris povo do e no mundo, compondo meticulosamente os elementos de povo que devem prevalecer no povo, de tal sorte que o povo jamais seja o povo de sua hybris.

É por isso que os meios de comunicação ou a indústria cultural, que domina o planeta, constituem sem dúvida alguma a principal arma do imperialismo americano/europeu/oligárquico. Sem ela, sem a híbrida rede de comunicação, que abraça não menos hibridamente o planeta, não existiria o imperialismo nos termos ao menos que o conhecemos: travestido de democracia.

Um povo contra o povo

É fundamentalmente através do controle dos meios de comunicação que o imperialismo consegue fazer a massa de povo que interessa a ele, imperialismo, pois a rede de comunicação privada ou estatal que domina o planeta, no seu híbrido conjunto, é que a que tem determinado, de forma ditatorial, os elementos de povo que o bolo povo deve conter, de tal sorte a ser assado no forno da boca dos interesses imperiais. É, pois, a indústria cultural planetária que define que o povo deve ser hibridamente banal, machista, racista, fascista, constituindo-se como híbrido povo contra seu direito de livremente compor seu próprio hibridismo.

Não existe, nesse contexto, a mínima chance de produzirmos uma humanidade realmente livre e justa, no mundo contemporâneo, se não realizarmos uma verdadeira revolução híbrida nos meios de comunicação planetários, acabando de vez com a pureza não híbrida e fascista da oligarquia da e na comunicação mundial, manietada por famílias puristas, plutocratas, eugênicas e endógenas.

Democracia para valer é o poder do povo de produzir seu hibridismo povo, com liberdade, criatividade, ousadia, inventividade, de tal sorte a escolher os heterogêneos elementos de povo que, misturados hibridamente, não possam fabricar um povo contra o povo, mas, pelo contrário, um povo pelo povo, para o povo e através do povo – democraticamente. Os meios de comunicação de massa, sob esse ponto de vista, são profundamente antidemocráticos, pois existem para fabricar um povo contra o povo.

Uma horda híbrida de mercenários

É nesse contexto que devemos entender o que está atualmente ocorrendo na Síria, país que sofre uma guerra imperialista contra a sua soberania, entendida como direito dos povos a realizar seu próprio hibridismo, sem que uma força externa possa agir em seu lugar. A pretexto de garantir esse direito soberano dos povos – a única razão pela qual a soberania dos países é válida e necessária –, o imperialismo americano (mas não apenas) realiza uma guerra híbrida contra Síria, assim como o fez contra Iraque, contra Líbia e faz na Somália, no Iêmen, no Líbano, no Paraguai, na Colômbia, na Venezuela, Brasil, no mundo inteiro: contra a híbrida liberdade dos povos.

A guerra contra Síria é híbrida simplesmente porque não é propriamente nem uma guerra civil nem uma guerra entre países, ao mesmo tempo em que é uma guerra civil e uma guerra entre países. Síria está sendo invadida por mercenários contratados e treinados por Qatar, Arábia Saudita, Otan, Israel, Estados Unidos, inclusive por Al Qaida, híbrida organização terrorista planejada pragmaticamente pelo imperialismo americano.

Externamente falando, portanto, Síria está sendo invadida por uma horda híbrida de mercenários, de heterogêneas procedências, hibridamente financiados e treinados basicamente pela Otan, CIA, Pentágono, Mossad (Instituto para Inteligência e Operações Especiais hebraico), pelo Conselho de Cooperação do Golfo, CCG, composto pelas ditaduras do petróleo do Golfo Pérsico, a saber: Omã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait.

Um presidente democraticamente eleito

Por sua vez, internamente falando, híbridos grupos de esquerda (geralmente, ainda que ingênuos, imbuídos de legítimos motivos), de direita, de vende pátrias, de jovens cooptados ou hibridamente tomados pela propaganda da ilusória, falsa e midiática democracia ocidental, de forma não menos híbrida, juntaram-se aos imperialistas invasores externos com o objetivo de derrubar o presidente da Síria, Bashar al-Assad, embora, no conjunto, estejam, tais híbridos grupos internos, mesmo que não queiram ou não saibam, a serviço dos interesses geoestratégicos do imperialismo ocidental, que tem como clara finalidade a derrubada do presidente da Síria a fim de colocar no seu lugar um “eleito” ou ditador que possa atuar contra Irã, o movimento libertário, Hesbollah, do Líbano; e os grupos de resistência contra a invasão do território palestino por Israel, ao mesmo tempo que seja hibridamente capaz de dar uma boa banana para Rússia e China.

O que vemos, pois, no caso da Síria, é uma guerra híbrida e geopolítica do imperialismo contra a soberania de um povo. É, bem entendido, um ensaio híbrido e efetivo de uma guerra mundial imperialista, sob o comando antes de tudo dos Estados Unidos e de Israel, contra híbridos antiimperialistas, marcados por híbridos interesses, tendo como protagonistas Rússia e China, dois países que estão hibridamente envolvidos no conflito, razão pela qual Bashar al-Assad não foi ainda eliminado – e espero que não seja.

Estamos, pois, na época de mundiais guerras híbridas, tanto mais híbridas e mundiais, quanto mais puderem ou conseguirem, como tática e estratégia de guerra, disfarçar seus verdadeiros elementos híbridos, razão pela qual, volto a dizê-lo, os meios de comunicação oligárquicos do mundo todo desempenham uma função bélica de extrema importância na era das guerras mundiais híbridas em que vivemos, pois são eles que definem, para a híbrida opinião pública mundial, que tal ou qual guerra mundial híbrida é não uma híbrida guerra imperialista geoestratégica, mas uma guerra civil, ou mero conflito religioso, étnico ou, ainda, “legítima” destituição parlamentar ou jurídica de um presidente democraticamente eleito, sobretudo se esse presidente tiver sido eleito por um povo que insiste, contra a ditadura bélica da indústria cultural, em esboçar a sua própria, ainda que imprópria e antinatural, mistura híbrida.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes]