A preliminar é questão de princípio: o combate ao racismo implica no compromisso da destruição da crença em “raças” humanas edificada no século 18 para a opressão. No mérito, a impertinência e o descabimento do estado praticar e induzir a afirmação de uma classificação racial dos humanos. O dever do Estado é combater o racismo e suas causas, dentre elas a crença social em “raças”. Por último, os termos da lei é um engodo das forças conservadoras representados por Sarney: não faz inclusão de afro-brasileiros, manieta as universidades que queiram fazei-lo; não faz inclusão de pobres; reserva 75% das vagas para os mais ricos e induz uma disputa “racial” entre os mais pobres, além de vocação paternalista bem ao estilo dos “defensores” de pobres: da boca para fora, nunca é na prática. Além das aqui expostas, há, ainda, 100 milhões de pretos e pardos afro-brasileiros que serão vítimas de mais racismo estimulado pelo estado, num futuro próximo, como razões a serem consideradas.
Ações Afirmativas é uma doutrina de direito para a promoção da igualdade humana destinada a impedir a manutenção de injustas discriminações racistas, sexistas, machistas, homofóbicas etc. valorizando e garantindo a diversidade humana e não a diversidade “racial”. Com Ações Afirmativas cabe ao estado adotar políticas públicas em benefício dos que se encontra em desigualdades, induzindo programas voluntários de inclusão e de neutralização das discriminações. Isso significa promover a igualdade o que não equivale a políticas estatais de privilégios com a segregação estatal de direitos raciais. Nem nos Estados Unidos, onde nasceu, as Ações Afirmativas não têm, nem jamais teve uma lei de segregação de direitos raciais, desde 1964 com a Lei dos Direitos Civis adotada exatamente para a destruição do antigo sistema segregacionista. Enfim, Ações Afirmativas não é sinônimo de direitos segregados.
Sem estigma dos favorecidos
A oposição, portanto, é contra qualquer legislação destinada a impor, de forma compulsória, a segregação de direitos baseados em “raças” conforme faz a lei aprovada, não se vislumbrando, portanto, problema algum com medidas voluntárias das universidades, faculdades privadas ou mesmo de empresas que façam programas especiais de Ações Afirmativas visando à diversidade humana. Desde que voluntárias, os critérios de Ações Afirmativas, não encontram óbices.
As cotas sociais, por serem mais justas, obtiveram vasto apoio junto à população. Na última pesquisa nacional (DataFolha, novembro 2008, v. Google) 86% apoiavam cotas sociais, enquanto 53% consideram as cotas raciais, verdadeiras “cotas de humilhação”. Para fazer justiça social com Ações Afirmativas beneficiando a pretos e pardos que são 70% dos pobres, conforme o IBGE, ao parlamento bastaria aprovar o projeto de lei original, PLC 73/99, com a previsão de reserva de 50% das vagas nas universidades pelo critério de renda familiar (e não de escola pública). Dos beneficiários do Bolsa Família por exemplo, 80% são pretos e pardos e ninguém alega que seja política racial estatal.
Outras Ações Afirmativas bem-vindas seriam programas com o investimento orçamentário na subvenção aos cursinhos preparatórios suprindo a deficiência da escola pública com bolsas de estudos para os melhores talentos que desejam continuar estudando. Assim, os mais pobres pretos, pardos e brancos disputariam o acesso à universidade pública em igualdade de condições, sem nenhuma disputa racial deformadora da alma e prejudiciais à personalidade de nossos jovens talentos na traumática fase pré-universitária.
Também a maioria absoluta dos afro-brasileiros não postula a concessão de privilégios baseados em direitos raciais conforme a pesquisa Cidan/IBPS (2008, p.24, Google): 63% de pretos e pardos, maioria de 2/3, opinava contra as leis de cotas raciais vigentes no Rio de Janeiro desde 2001. A maioria de pretos e pardos pensa conforme o “sonho” do famoso discurso de Martin Luther King: “Que nossos filhos sejam respeitados pela força de seu caráter, e não pela cor da pele.” Sem estigma dos favorecidos.
“Preto é cor; a raça é negra”
Mal comparando a história, o escravismo de africanos antigamente e o racismo hoje são sistemas políticos e econômicos para serem destruídos.
A defesa por cotas raciais, hoje, e das alforrias, ontem, representam, historicamente a mesma postura política de partes organizadas das vítimas da escravidão e do racismo diante de uma realidade posta: ambos concordam em conviver com o sistema perverso.
Na luta contra a escravidão, a grande maioria dos alforriados se organizava para obter o benefício de familiares, parentes e amigos próximos. Os beneficiados geralmente faziam parte da Casa Grande, ou seja, não eram os escravos do eito que eram tratados com maior violência. Os alforriados eram somente aqueles que já usufruíam de maiores privilégios e, libertos, passavam à condição de aliados do sistema e do senhor por eterna gratidão e lealdade a quem concedia – era condição legal – sob pena de revogação. Aceitavam conviver com o sistema e usufruíam de uma meia-cidadania. Manuela Carneira da Cunha (Negro, Estrangeiros, Ed. Brasiliense, 1985), nos relata: “Eram cidadãos de 2ª classe – formavam uma classe intermediária entre os senhores e os escravizados.” Ao manumisso estava implícito o dever legal de delatar os planos de fuga ou de rebelião na senzala.
No Brasil foi onde mais se utilizou a manumissão pela compra ou doação. Os escravos queriam a destruição do sistema para todos: lutavam, fugiam, eram torturados e humilhados nos pelourinhos e fugiam novamente. Mulheres abortavam filhos para não gerar novos escravos. Os alforriados lutavam para libertar alguns e não contestavam o sistema: muitos alforriados que prosperavam com apoio dos senhores, tornavam-se, eles próprios, donos de escravos. Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, relata o espanto do personagem ao ver seu antigo cativo tratando com violência, humilhação e desprezo um de seus escravos.
Para quem continuava no eito, o objetivo único era destruir o sistema. Para os libertos, era até natural, aceitavam conviver com ele. Os senhores de escravos sabiam disso. Embora tenha sido o país com maior número de escravos, o Brasil foi o último a abolir a escravidão, pois as revoltas, fugas e quilombagens não obtinham a inteira solidariedade dos libertos.
É o que fazem hoje ativistas da ascendente classe média afro-brasileira: aceitam conviver com o sistema racista. Existem campanhas de caráter evidente disso: “Preto é cor; a raça é negra”; “Mostre sua raça – declare sua cor”. Os mais pobres, hipossuficientes, precisam da destruição do racismo, pois são as vítimas cotidianas da violência e humilhação. Conviver com o racismo significa entregar à sorte do abandono 95% dos pretos e pardos, os mais pobres e despossuídos.
Não queremos conviver com racistas
Na história da abolição, nos anos 1880, havia mais de 1 milhão de libertos e 1 milhão de escravos. Dentre as principais lideranças do abolicionismo não se registra a presença de alforriados. Apenas afro-brasileiros nascidos livres, destacando-se Francisco Gê Acaiba de Montesuma; Luís Gama; José do Patrocínio e André Rebouças, nenhum deles alforriados, ao lado de Joaquim Nabuco, Antonio Bento, Castro Alves e tantos outros abolicionistas.
Nos EUA o emprego de políticas de cotas raciais nos últimos quarenta anos forjou o aumento da classe média que ficou vigorosa, porém, minúscula, de menos de 10% dos afro-americanos. A classe média já existente foi a beneficiária dos privilégios das cotas raciais, sendo ampliada, elevando alguns a condições de milionários, constituindo essa nova classe média alta. Era na antiga classe média baixa, onde nasciam as grandes lideranças de combate ao racismo. Agora, seduzida pelas benesses da boa vida, aderiu ao sistema da convivência com o racismo e abandonou a luta pela destruição do racismo e não surge nenhuma nova liderança anti-racista que se destaque desde Luther King e Malcolm-X dos anos 1960. Dentre as lideranças políticas que surgiram, como Colin Powell, Condoleezza Rice e Barack Obama, se aliaram ao status quo e repudiam a consideração de serem lideranças anti-racistas. A grande exceção, não é um líder político: Spike Lee é um grande ativista contra o racismo através de sua arte.
Aceitar a convivência com o racismo não condiz com a luta maior, a sua completa destruição. Frantz Fanon, afro-descendente nascido na Martinica, primeiro grande ativista contra o racismo, decretava em 1956: “Numa sociedade com a cultura de raças, a presença do racista será, pois, natural.”
Nós, brasileiros, e a maioria dos afro-brasileiros em especial, as vítimas preferenciais da opressão racial, não queremos conviver com racistas.
Sarney, o combate ao racismo e a promoção da igualdade
Neste início do século 21, o Estado brasileiro está fazendo a opção dos alforriados e dos cotistas americanos: impõe o aceite da convivência com o racismo. Através dos três poderes da República, trilha o nefasto caminho de edificação de um Estado com classificação racial para o exercício de direitos. Primeiro, o Poder executivo, desde o governo FHC. Depois, o Poder Judiciário, em várias instâncias até a decisão unânime do Supremo Tribunal, a despeito dos arts. 1º, 3º, 5º e 19 da Carta Magna, declarando a constitucionalidade de políticas públicas compulsórias de segregação de direitos raciais, culminando em 2012 com os representantes do povo, o poder legislativo.
A história humana registrará que num fatídico agosto de 2012, o Congresso Nacional do Brasil, país com a maior população miscigenada da história humana, aprovou a nossa primeira lei de segregação de direitos raciais desde a proclamação da República (ver aqui) numa sessão do Senado, de “esforço concentrado” por acordo de lideranças, um arranjo da direção da mesa, para aprovação de leis polêmicas sem votação nominal, ou seja, sem debates e sem comprometimento parlamentar. Apenas um senador Aloysio Nunes, representante de São Paulo, votou contra, ainda assim, em nome da meritocracia acadêmica e não por consideração da ameaça racialista desejada no PLC 180.
Embora saudado por setores ativistas do movimento negro organizado, quem acompanhou o trajeto parlamentar do PLC 180/2008, sabe que ele tem no DNA de sua inspiração fortes raízes maranhenses. Sua autora foi a então deputada Nice Lobão -PFL-MA, e no parlamento contou com total apoio do presidente do Congresso, senador Sarney. Ele tinha sido o autor do primeiro projeto de cotas raciais em 1997. Sem esse poderoso apoio institucional jamais seria aprovado. Diz a notícia: “No dia da aprovação da lei, o relator do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS), e representantes de movimentos sociais estiveram reunidos com o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP): ‘Eu apoio totalmente esta iniciativa. Comigo, você não têm de ter nunca nenhuma preocupação. Eu, estando aqui, sempre ajudarei a avançar nesta questão’,” disse (ver aqui).
Uma hierarquia de superiores e inferiores
A inspiração maranhense ganha relevância a história e a situação dos afro-maranhenses. Com o mais baixo IDH (0,510) são os mais pobres dentre todos os afro-brasileiros (IDH 0,680) com índice equivalente ao dos países mais pobres da África, significando que a elite política comandada há mais de cinquenta anos por Sarney – que se vangloria de ser o maior “defensor da raça negra” – manteve as exclusões sociais herança da época da escravidão negligenciando as políticas públicas de inclusão, sem acesso a educação, saúde, habitação e demais direitos sociais dos demais brasileiros. Campeão absoluto com cerca de 40% comunidades quilombolas do Brasil, com mais de 500 identificadas no Maranhão, desde 1988 não são entregues os títulos de propriedades outorgadas na Constituição Federal, art.68, ADTC.
Nos séculos 18 e 19, o Maranhão foi o estado que, proporcionalmente, mais recebeu escravos. Atualmente, 75% da população são pretos e pardos, mas a elite não viabiliza lideranças políticas relevantes, não elegendo pretos e pardos para deputados, prefeitos, senadores e governadores. No Rio Grande do Sul, por exemplo, com apenas 16% de pretos e pardos (IDH 0,718) já foram eleitos governadores pretos, pardos e mestiços, e tem hoje como senadores Paulo Paim, um afro-brasileiro, e Pedro Simon, que não é exatamente branco. Os afro-maranhenses, desde a revolta Balaiada (1838/1841), liderada pelo ex-escravo Cosme Bento na maior guerra de escravos pela liberdade no Brasil, pagam um alto preço pela ousadia. Colocados em seus devidos lugares: reprimidos e excluídos e submetidos a seus “defensores”, sem autonomia política e com sub-cidadania.
Contra o empenho pessoal de Sarney, basta ver que sua convicção pessoal é inteiramente equivocada. Ela se sustenta em uma falsa premissa do desenrolar da história. O senador acredita que foi o racismo que fez a escravidão: “Essa mesma preocupação com a educação me fez, depois de estudar com lideranças dos movimentos negros, acreditar na importância de uma política de cotas. Fui o primeiro a levantar essa questão no Brasil (palmas). O senador Paim, que aqui está, é testemunha disso… Tenho ouvido e lido com atenção todo o debate sobre o erro científico de qualquer medida que leve em consideração a raça. Gostaria que esse debate tivesse impedido a escravidão” (28/5/12, sessão solene em comemoração a 124 anos da Abolição (ver aqui).
Mas, na verdade histórica ignorada por Sarney, foi a exploração do sistema econômico da escravidão africana existente desde o século 16 que impulsionou no século 18 a ideologia do racismo criada para se opor à força dos ideais da igualdade humana trazidos pelo iluminismo. O racismo fez a classificação dos humanos em raças diferentes, com uma hierarquia implícita de superiores e inferiores, na qual, a “raça negra” era a dos escravos, a “raça inferior”. O racismo serviu para a manutenção do escravismo africano e depois, nos séculos 19 e 20, passou a servir a outros interesses sempre de opressão.
Política no Maranhão não é uma grande inspiração
Na página da presidência do Senado, Sarney se intitula de grande defensor da “raça negra” (ver aqui), uma prova de sua convicção pessoal racialista, portanto acredita em “raças” diferentes e crê na possibilidade de direitos segregados. Com essa inspiração o estado passa a outorgar direitos raciais distintos a brasileiros, em razão do pertencimento racial, que não temos.
Destarte, herdeiro da tradição maranhense o senador Sarney, na Presidência do Senado, vaidosamente empenhou o parlamento na aprovação dessa perversa lei racial. Conforme Weber: “Uma ambição pessoal, distinta da responsabilidade ética da relevante função pública.” Por ser fundada numa opinião pessoal e de cunho racialista que influenciará, alterando profundamente, o ambiente social das futuras gerações, ela nos remete à magistral literatura de O Mulato (1883) de Aluisio de Azevedo, retratando a intensidade do racismo nas elites do Maranhão. Mas, na condição de homem político, Weber adverte o nosso senador-presidente do Poder Legislativo: “Um dos desafios do político vocacionado é o de superar um inimigo bastante comum e demasiado humano: a vaidade vulgar.”
Experiente com mais de cinquenta anos no parlamento, o senador Sarney sabe que na história da República é a primeira vez que o estado outorga direitos distintos a brasileiros, em razão da falácia do direito decorrente de pertencimento racial, distinção essa violadora da singela norma expressa no artigo 19 da Constituição: “É vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios: III – criar distinções entre brasileiros ou preferência entre si.”
Em termos de promoção da igualdade e da dignidade humana pelo exemplo dos afro-maranhenses, conforme visto, a política comandada no Maranhão, não é, em absoluto, uma grande inspiração aos afro-brasileiros.
O veto presidencial
Em razão da lei racial aprovada, resta ainda, uma esperança: o poder constitucional de veto pela presidenta da República, pelo que se sabe, com mínima chance política de ser utilizado com bom senso para impedir o prevalecimento do sentimento racialista do senador Sarney. Há a esperança que pela história política, o ministro da Educação, senador Aluisio Mercadante, opine pelo veto às cláusulas raciais. A responsabilidade ética contra a pedagogia do pertencimento racial, e em respeito a 100 milhões de afro-brasileiros que serão vítimas de mais racismo, impõe-se à presidenta Dilma e ao ministro Mercadante o dever de veto dessa lei em razão de seus efeitos colaterais.
Por ser um paliativo estatal essa lei que não combate as causas – o racismo – agora legitimado pela lei federal, tal como o antigo instituto da alforria – que não combatia a escravidão – servirá para acalmar o ambiente, mantendo o status quo da péssima educação pública e concedendo ao beneficiário uma condição de 2ª classe. Mais que isso, a irresponsabilidade ética dessa lei é ser o precedente autorizado pelo congresso nacional para a racialização de norte a sul, com novos milhares de leis, decretos e portarias, federais, estaduais e municipais segregando direitos raciais em todo o Brasil.
Para acolher uma lei de direitos raciais, a presidenta estará convalidando a violação expressa do artigo 19 da Carta Constitucional, combinado com demais cláusulas, inclusive a da igualdade de todos perante a lei e da autonomia universitária.
Se não ocorrer o veto pela presidenta Dilma, essa lei será o precedente legislativo para milhares de leis segregando direitos raciais em todo o Brasil. As “cotas raciais” compulsórias, trata-se como visto de um engodo de política pública mais barata ao agrado dos políticos paternalistas e populistas. Em vez de investimento público para melhorar as condições de competição dos mais pobres, retiram-se oportunidades de jovens pobres, para entregá-la a outros pobres, todos jovens, demarcando seus futuros, de forma traumática, em nome de políticas públicas raciais. Pior ainda, como evidente efeito colateral violador da dignidade humana, num futuro próximo qualquer profissional afro-brasileiro portador de um diploma será visto, no senso comum, com um estigma social inescapável: será, por presunção, um cotista, alguém com capacidade inferior visto com desconfiança. O racismo sempre fez isso, o que não fará a partir da afirmação estatal da inferioridade presumida da “raça negra”? Isso não significa o Estado legitimando os ideais racistas?
O racista explícito e o dissimulado
A segregação de direitos raciais trata, pois, de uma política pública simples e barata conveniente para o administrador populista, como fez o ex-governador Garotinho (RJ) manipulando a escassez, sem nenhum novo investimento orçamentário. A fórmula prevista na lei é perversa e será aceita pelas elites, que não perderão vagas. É simples: a lei reserva 50% das vagas pelo sistema tradicional e mais 25% das escolas públicas de excelência serão ocupadas pelos mais ricos, melhores colocados no vestibular. A reserva mais a metade das vagas de escolas públicas sem recorte de renda serão ocupadas pelos oriundos das escolas públicas de excelência: as técnicas federais e estaduais, D.Pedro II, experimentais de universidades, das corporações militares etc., restando para a disputa racial apenas 25% das vagas.
Esse sistema de cotas retira vagas dos últimos colocados nas classificações: retiram-se vagas de pobres, últimos colocados, jovens brancos que estudaram em escolas públicas periféricas para as entregarem a jovens também pobres, pretos e pardos, oriundos todos da deficiente escola pública, do mesmo ambiente social, da mesma periferia e até da mesma família com a perversidade da entrega ser feita em nome de um “direito racial” que traz implícita a declaração estatal de uma presumida inferioridade racial do beneficiado. Os ricos nada perdem e os pobres não ganham vagas, mas ganham a disputa racial, semente de ódios raciais duradouros.
A disputa racial entre os pobres é o perigo maior para o combate ao racismo. A crença em “raça”, quando estimulada pelo estado, deixa de ser crença e passa a ser fato com a identidade jurídica, induzindo a pessoa a um pertencimento racial. Para Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, o pertencimento racial é mais profundo e maléfico entre os mais pobres. O pertencimento racial é uma condição imutável que aprisiona suas vítimas. Quem nada possui, passa a ter no orgulho racial um valioso patrimônio: o de pertencer a uma “raça” superior. Quem o adquire será um racista e para sempre aprisionado a ele, diz Buarque. O sentimento racial passa a ser um valioso patrimônio pessoal intangível que ninguém poderá usurpar. Por ele, lutará e morrerá. Não cabe ao Estado o emprego dessa pedagogia do ódio.
Por qual razão simplesmente não viabilizar apenas um justo acesso para todos os pobres em igualdade de condições? A razão é bastante óbvia: a finalidade maior da lei é a edificação de direitos raciais estatal. A monstruosidade desse tipo de leis será fazer a racialização estatal inédita no Brasil visando suprimir e tolerância relativa à que se referia o saudoso professor e intelectual-mor Milton Santos (ver aqui) cuidando, assim, de instalar o conflito racial que nós, afro-brasileiros e brasileiros em geral, não desejamos. É comum ativistas de ONGs do racialismo dizer que preferem o racista explícito em vez do racista constrangido e dissimulado. Porém, o papel do Estado é desencorajar a atitude ou comportamento racista. Não é o de estimular o sentimento racial semente de atitudes racistas.
Racialismo no Brasil e nos EUA
Pelas semelhanças da geopolítica, território e população temos a vocação de potência concorrente dos Estados Unidos, no futuro. Há nessa campanha do racialismo estatal a suspeita de ser um projeto acadêmico e político da inteligência imperialista visando nos retirar uma vantagem competitiva singular e nos igualar no futuro ao que há de pior nos EUA, fomentado por investimento de milhões de dólares pelas foundations norte-americanas no Brasil e em outras partes do mundo.
O objetivo dos investimentos é a formação de uma elite política, intelectual e acadêmica defensora de políticas raciais e da convivência com o racismo, numa versão moderna da doutrina americana: “iguais, mas separados”. Em 1896, a Suprema Corte dos EUA entendeu que a separação compulsória de direitos de pessoas de origens raciais distintas não caracterizava violação da 14ª Emenda – que assegurava a igualdade a todos os cidadãos. Essa doutrina de direitos separados prevaleceu nos EUA até a vitoriosa campanha do Movimento por Direitos Civis, liderados pelo dr. Luther King nos anos 1960. Porém, continua arraigado na cultura norte-americana produzindo conflitos raciais.
Essa influência da cultura acadêmica norte-americana, está na literatura recente com o livro A Curva do Sino (1994), que pretende comprovar a desigualdade e inferioridade nata dos afro-descendentes, exigente de políticas estatais diferenciadas na lei. Os atuais objetivos das foundations é um fenômeno constatado desde os anos 1990, conforme Livio Sansone (Negritude sem Etnicidade, 2004), da UFBA: “O Brasil nunca foi um paraíso racial, nem tampouco é hoje um inferno racial: o que mudou drasticamente foi a perspectiva dos cientistas sociais e dos intelectuais em geral no tocante à raça no Brasil. Essa mudança deveu-se sobretudo à alteração dos projetos políticos do meio acadêmico e das fundações Ford, Rockfeller e Mac Arthur, uma vez que os Estados Unidos sempre tiveram uma importância indireta na definição das relações raciais como área de estudo no Brasil” www.ceao.ufba.br/fabrica/Lsansone_07.doc (p. 269, Negritude sem etnicidade. Salvador/Rio de Janeiro: EDUFBA/Pallas).
Responsabilidade ética com o futuro
Max Weber, sociólogo alemão do século passado, ensinou a existência de duas éticas na sociologia política – a da convicção e a da responsabilidade – que não são opostas. Diz Weber: “O homem comum pode atuar conforme suas convicções, o conjunto de valores e crenças adquiridas. Já para o homem público, a ética atua em campo mais amplo: são obrigados a lidarem com a ética da responsabilidade. Eles se obrigam a pensar e responder pelos resultados futuros de suas ações.” Ele sustentava que, na política, muitas vezes o que parece ser o “bem” pode gerar o “mal” e que a vaidade pessoal é incompatível com a função política. Tal doutrina cabe integralmente para apontar a irresponsabilidade na violação dessa ética sociológica em face da lei aprovada – introduz o direito “racial” de forma compulsória pelo Estado – segregando direitos e não faz justiça social conforme alegam os defensores de cotas raciais. Na verdade, o texto legal reserva 75% das vagas aos mais ricos (art.1º a 3º).
Para o filósofo Michel Foucault, as grandes tragédias da humanidade foram edificadas de mesquinharia em mesquinharia. Uma lei de segregação de direitos raciais no Brasil já é uma mesquinharia absurda, irracional. Significa o Estado criador de “raças estatais” e ensinando, especialmente à juventude, uma pedagogia estatal de direitos distintos, semente do ódio e da apartação racial dos humanos. Essa lei de segregação racial desconsidera que a intensa miscigenação no Brasil é uma realidade demográfica ímpar e virtuosa na opinião dos saudosos professores Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Milton Santos. “O Brasil é um amálgama de mestiços de diferentes origens raciais e étnicas, cuja raça e etnicidade foram perdidas, a fim de ganhar a nacionalidade brasileira”, afirma Antonio Sérgio A. Guimarães.
A base filosófica encampada com grande equívoco nas propostas de lei de tratamento desigual em bases raciais é aquela de Aristóteles formulada no século IV antes de Cristo: “Se os homens não são iguais, não merecem receber coisas iguais.” A conhecida tese aristotélica tem sido invocada pelos mais ilustres juristas e doutrinadores do direito, desde Rui Barbosa até atuais ministros do Supremo Tribunal, o que, à luz da filosofia iluminista, precisa ser observado: o fazem sem a devida acuidade. Os defensores da segregação de direito racial recitam com ênfase: “A verdadeira igualdade consiste em tratar desigualmente aos desiguais.” Porém, não cuidam que quando formulada por Aristóteles, ele e todos na cultura grega da época, pensavam: “Os humanos não são iguais e não merecem a igualdade de tratamento” (Carta a Nicômaco). Ele também acreditava que a mulher era um ser incompleto, um meio-homem: “um ser incompleto passivo, enquanto o homem seria um ser ativo e completo.” Portanto, não é ousadia dizer: duas principais teses aristotélicas relativas à humanidade estavam equivocadas.
Porém, a bimilenar tese de Aristóteles era poderosa: os humanos não são iguais. Foi ela, e não o racismo, conforme pensa Sarney, a base filosófica do escravismo de todas as épocas e serve ao racismo ainda. Serviu ao escravismo moderno, pela doutrina da existência de povos “escravos por natureza”. Aqueles povos em distinto estágio de desenvolvimento, estrutura social, crenças e organização políticas tribais mais vulneráveis nas guerras de conquistas que podiam ser escravizados. Essa mesma tese de Aristóteles foi expressamente sustentada em 1551/1552 pelo filósofo espanhol Ginés de Sepúlveda no histórico Tribunal de Valladolid, pela qual legitimava o direito do colonizador, por lei, escravizar os povos conquistados nas Américas e na África contrariando as razões do bispo Bartolomeu de Las Casas, defensor da tese da igualdade humana como uma lei natural, com base na doutrina cristã: “Todos eram filhos de Deus, conforme a doutrina do jus-naturalismo de Santo Tomás de Aquino, para quem a lei feita pelo homem subordina-se à lei natural, não podendo contrariá-la, sob pena de se tornar uma lei injusta.”
“Racismo e capitalismo são duas faces da mesma moeda”
A tese aristotélica serviu ao racismo dos séculos 18, 19 e 20 e ainda serve agora, ao neo-racismo brasileiro do século 21 acreditando na diferença, classificação e hierarquia racial. Ainda serve àqueles que acreditam na desigualdade e inferioridade da “raça negra” aquela raça inferior que precisaria de “defensores”, pensa Sarney.
Destarte, somente a partir do século 18 com a base filosófica do iluminismo é que se confronta a tese de Aristóteles impondo o conceito da unicidade da espécie humana. Immanuel Kant, principal filósofo das luzes, foi o primeiro teórico a declarar a igualdade dos humanos e a reconhecer que “a nenhum ser humano se pode atribuir valor – assim entendido como preço – justamente na medida em que ele deve ser considerado em sua inteira dignidade, como fim em si mesmo em função do ser racional”. O iluminismo, impulsionador de revoluções democráticas, pregava a eliminação de quaisquer privilégios baseados na origem da pessoa e se opõe à antiga ideia da desigualdade humana por natureza, consagrando os ideais da igualdade, pré-condição para a dignidade humana, incompatível com qualquer classificação, hierarquia ou privilégio de origem racial: todos os seres humanos nascem com iguais direitos à vida e dignidade, sintetizava o iluminismo, nas palavras de Kant.
A partir desse ainda mais poderoso ideal da igualdade humana é que se edificam as bases republicanas e democráticas da modernidade, ainda em construção. Não foi mero acaso que, ao mesmo tempo, também no século 18, nascia a ideologia do racismo – a classificação dos humanos em raças diferentes – em oposição à força dos ideais iluministas. O racismo passa a fazer a classificação humana em “raças” recuperando e sucedendo a tese aristotélica pela intrínseca e presumida hierarquia da “raça” superior e das inferiores. No Brasil, apesar do sistema escravocrata, a declaração da igualdade humana para a fruição de direitos tem sido reiterada desde a primeira Constituição, convivendo com a indignidade humana escravista e social. A Constituição Cidadã a fez cláusula pétrea.
O racismo, ao contrário do que muitos acreditam, não é condição inerente à humanidade. É fenômeno social recente, construído ideologicamente a partir do século 18. Desde então, serviu a interesses das elites escravocratas para sobrevida na sustentação ao regime perverso e serviu ao poderio político da Europa justificando a ocupação colonial, exploração do trabalho escravo e semi-escravo, apropriação de terras férteis e das riquezas naturais com a “missão civilizatória”. O racismo negava a base filosófica do iluminismo: os humanos não eram iguais, eram divididos em raças com a presunção de uma hierarquia racial. Enfim, o racismo passa a ser base propulsora da acumulação capitalista, razão pela qual, a máxima proferida por Steve Biko, jovem líder contra o apartheid, assassinado na África do Sul em 1974. Ele sentenciava: “Racismo e capitalismo são as duas faces da mesma moeda.” A moeda da opressão.
Estados racializados
Voltando às lições de Weber e Foucault, desde o século 19, sempre que os Estados, sob influência do racismo, produziram direitos raciais segregados, as experiências históricas resultam em tragédias sociais que ainda repercutem com dezenas de milhões de vítimas além da opressão e miséria que produziram.
Desde as leis de segregação racial nos Estados Unidos até as leis de Nuremberg edificadoras do nazismo, culminando com a apartação racial na África do Sul, milhões de vítimas representam a violação ao dever da ética da responsabilidade com o futuro para quem as deseja repetir no Brasil do século 21. Não há na historiografia nenhuma experiência positiva, nenhum bom resultado com a produção de direitos raciais, segregando direitos, pois ele exige que o estado faça a classificação racial e toda classificação racial atende aos ideais do racismo: tem implícita a presunção da hierarquia racial o que resultará ainda mais em racismo.
O ápice das tragédias humanas decorrentes de leis de classificação racial foram os regimes totalitários do século 20 que resultaram na 2ª guerra. Desde 1948, com o final da guerra, os estados democráticos se comprometeram com a criação da ONU e reciprocamente a todos, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a não fazerem a classificação estatal dos humanos pela raça, para a outorga ou exclusão de direitos em bases raciais, considerando a igualdade humana perante o estado, exatamente com base nas lições do iluminismo.
A convivência com o racismo proposta por leis raciais tem deixado legados terríveis para a humanidade e são atuais: a segregação de direitos raciais nos EUA estimula ainda hoje, a terroristas raciais dispostos a invadirem escolas, cinemas e templos religiosos, em nome da supremacia branca.
Em 2011, a inspiração racista do nazismo motivou, em Oslo, na Noruega, Anders Behring Breivik, racista convicto, a friamente executar 77 jovens. Foi divulgado um “Manifesto” do terrorista em que pregava o uso do terror para a salvação da supremacia branca. No documento, Breivik temia a miscigenação e se referia ao Brasil, como “pior exemplo de uma sociedade degenerada pela mistura de raças”.
Também a segregação estatal de direitos étnicos, entre tutsis e hutus, na África, produziu o maior genocídio da história africana, em Ruanda, no Planalto Central, com mais de 4 milhões de mortos e refugiados nos anos 1990. As duas etnias conviveram por milhares de anos no mesmo território sem maiores conflitos. A partir da colonização sob o domínio alemão, e posteriormente belga, de 1880 a 1962, os tutsis foram escolhidos para assumirem cargos da administração estatal, treinamento militar, acesso exclusivo à educação. Essa política de discriminação incentivava a rivalidade étnica. A rivalidade que continua até hoje e provocou genocídios e continua provocando guerras que se alastram nos países vizinhos onde existam tutsis e hutus. Esse conflito é a demonstração cabal do efeito retardado da política racial europeia no continente africano. Em todo o mundo, a cada dia, veem-se, incrédulos, manifestações de crença racial e do racismo.
Lei natural é princípio de todo direito
Os defensores de leis de segregação de direitos raciais alegam que nestes dez anos de experiências da lei racial no Rio de Janeiro, não ocorreram conflitos relevantes nas universidades. Esse fato é de uma obviedade ímpar: dentro das universidades estão somente os incluídos. Os excluídos sobrevivem com a ferida de uma exclusão injusta: o que eles ensinarão a seus filhos diante dos fracassos da vida? Evidente que tal como nos EUA, na Alemanha ou em Ruanda, tais políticas públicas demoram décadas para ir construindo o edifício do ódio racial. Porém, é certo que a lei é semente de frutos venenosos.
A presidenta Dilma, o ministro da Justiça José Eduardo Cardoso e o ministro Mercadante, da Educação, com histórias de vida inteiramente comprometidas com a dignidade humana de todos, não podem desconhecer nem desconsiderar suas próprias responsabilidades ética com o futuro: o racismo e os ideais de “raças humanas” diferentes e com direitos raciais segregados faz a humanidade tremer diante da história e da força maléfica e letal de um racismo ainda vivo e que parece recrudescer com diferentes faces sem apreender as lições da história. Quando promovida pelo Estado, a tragédia está anunciada para futuras gerações.
Nessa questão da dignidade humana, o Estado se limita ao jus-naturalismo de Kant, sendo o ser humano racional, igual e livre, deve ser objeto de normas de conduta, designadas por normas éticas, válidas para todos. Afinal, todos nascem livres e com iguais direitos à vida e dignidade. Para o iluminismo, cada ser humano deve ser visto como fim em si mesmo e não como meio a serviço de outros fins. Por decorrência, nenhum ser humano, nenhum afro-brasileiro, poderá ser visto como instrumento útil ao Estado mesmo que fosse para um eficaz o combate ao racismo, o que não é o caso. Um jovem preto ou pardo somente pode ser visto em si e jamais como meio. Por isso essa premissa se faz imperar.
Logo, para Kant, a norma jurídica será de direito natural se sua obrigatoriedade for cognoscível pela razão pura, independente de lei externa ou de direito positivo. “Tal lei natural é princípio de todo direito, derivado da liberdade, igualdade e dignidade humana, reconhecidas por intermédio do imperativo moral categórico”, diz a interpretação dada pela jurista Maria Helena Diniz.
O comportamento racista da sociedade
Com tal inspiração que o dr. Martin Luther King, pastor evangélico, invocando lições da lei natural em Santo Tomás de Aquino, justificava a luta que liderava contra as injustas leis de segregação racial nos Estados Unidos. Ele estava preso, em 1963, criticado e pressionado pelas autoridades da Igreja para abandonar o movimento de desobediência civil e as agitações pacíficas, então, endereçou-lhes uma longa “Carta da Prisão de Birmingham” escrita com as reflexões da solidão do cárcere e que viria a se constituir em verdadeiro Manifesto do vitorioso Movimento pelos Direitos Civis, concluindo com as razões se seu dever para a desobediência às leis injustas: “Uma lei injusta é uma lei humana sem raízes na lei natural e eterna. Toda lei que eleva a personalidade humana é justa. Toda lei que impõe a segregação racial é injusta porque a segregação deforma a alma e prejudica a personalidade.”
Conceituado humanista, o jurista Fábio Konder Comparatto, da USP, em alentado estudo sobre as raízes históricas dos direitos humanos, realça a relevância das noções kantianas de que a pessoa humana jamais pode ser tratada como meio: “Ora, a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado ou determinados fins.” Comprovando a capacidade inebriante do racismo, contraditoriamente, o professor Comparatto tem sido defensor da segregação de direitos raciais para fins pedagógicos – ou seja, com sua poderosa voz, defende: o uso pelo Estado da pessoa de cor para um fim social.
Enfim, desde o advento da ONU, nasce a doutrina dos Direitos Humanos, pela qual, os estados se obrigaram a respeitar a individualidade, a igualdade e dignidade humana, como um fim em si mesmo. Também o compromisso de não segregar.
Agora, no Brasil, a nossa geração através dos poderes do Estado, resolve segregar direitos raciais, sob a falaciosa argumentação da utilização exemplar de afro-brasileiros para, pedagogicamente, modificarem o comportamento racista da sociedade: mas, a utilização da pessoa para determinados resultados ou fins, por mais nobres que o sejam, é vedado, por significar a violação do princípio da dignidade humana, inscrito no artigo 1º além dos citados artigos 5º e 19 da Carta Cidadã de 1988.
“Se os humanos não são iguais, não merecem coisas iguais”
A segregação de direitos raciais, também viola a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adota pela ONU em 1966, e internado do pelo Brasil em 1969. Diz a Convenção:
Artigo I
Nesta Convenção, a expressão discriminação racial significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anula ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.
Esta Convenção não se aplicará às distinções, exclusões, restrições e preferências feitas por um Estado parte nesta Convenção entre cidadãos.
Nada nesta Convenção poderá ser interpretado como afetando as disposições legais dos Estados Partes, relativas a nacionalidade, cidadania e naturalização, desde que tais disposições não discriminem contra qualquer nacionalidade particular.
Não serão consideradas discriminações raciais as medidas especiais tomadas como o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos (ver aqui).
Porém, há um óbice à vaidade e ao sonho de reconhecimento do senador Sarney de ser eternizado para a história como maior “defensor da raça negra” com seu desejo de nos impor direitos raciais, condição essa que há de ser intransponível: o artigo 19 da Constituição Cidadã, erigido conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos contém o imperativo dever estatal de abstenção e de repúdio a distinções dos brasileiros por direitos raciais segregados: o estado não tem o direito da pedagogia do ódio.
Caberá à presidenta Dilma ou ao Supremo Tribunal Federal, impedir a barbárie desse tipo de legislação racial.
Nelson Mandela, o ícone da luta contra a segregação de direitos raciais, num de seus famosos discursos, já no exercício da presidência na África do Sul, faz a apologia da pedagogia do amor à humanidade, nos oferecendo lição extraordinária: “Ninguém nasce odiando outra pessoa em razão da raça ou da religião. Eles foram ensinados a odiar. Se eles aprenderam a odiar, nós podemos lhes ensinar a amar.”
Nós, brasileiros, segundo Sérgio Buarque de Holanda em Raízes, não aprendemos a nos submeter à prisão do pertencimento racial, condição imutável, por isso somos livres e mutantes como “ser nacional”, portanto não temos o direito de, pelo estado, condenar as futuras gerações às algemas do pertencimento racial e ensinar-lhes o ódio e a apartação com direitos raciais segregados. Não podemos ensinar a classificação racial estatal tão desejada pelo racismo nos séculos 19 e 20. Não temos o direito de continuar recitando a tese de Aristóteles a base filosófica e ideológica do racismo, pois “tratar os desiguais com desigualdade, em razão de ‘raça’, jamais será a verdade igualdade”.
As centenas de milhões de vítimas dos maiores crimes de lesa-humanidade, foram decorrentes dessa crença da desigualdade humana nos últimos séculos e elas, em razão das futuras gerações, nos exigem a cobrança do homem público, da ética da responsabilidade exigente que o Estado não faça essa mesquinharia social que nos conduzirá a outras grandes tragédias.
A segregação de direitos raciais pelo estado condena as futuras gerações ao orgulho de pertencimentos raciais nocivos ao conceito da unicidade da espécie humana e a conviverem com racistas e com direitos raciais, detentores de um patrimônio de foro íntimo, intangível e imutável, o que viola a dignidade humana de todos. Parafraseando Joaquim Nabuco: “O racismo degrada a vítima e o opressor e, degrada também, a todos que estejam convivendo com os racistas.”
Ortega y Gasset, ensina que a geração atual tem o dever de entregar às futuras um ambiente social melhor do que recebeu. Nós não recebemos uma sociedade com ódio racial. Não recebemos a herança de pertencimentos raciais. Não temos o direito de condenar as futuras gerações a essa tragédia. Ao Estado somente cabe ensinar o amor. Não cabe ao Estado a adoção de leis que deformem a alma e prejudiquem a personalidade. Não cabe ao Estado a imposição da cultura de “raça” nem a convivência com o racista. Não cabe ao estado democrático, signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aliar-se à tese de Aristóteles: “Tratar desigualmente os desiguais seria a verdadeira igualdade, pois se os humanos não são iguais, não merecem coisas iguais.”
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[José Roberto F. Militão é advogado civilista, ativista contra o racismo e contra a “raça” estatal. Foi secretário-geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do estado de São Paulo e membro da Comissão de Assuntos AntiDiscriminatórios – OAB/SP]