Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os golpes contra a democracia sempre serão televisionados

No final de Condição Pós-Moderna (1993), o geógrafo marxista britânico David Harvey (1935-) argumentou que a atual época que nos cabe viver se tornou adepta intransigente da diversidade, em nome da qual se inviabiliza e desqualifica qualquer possibilidade de parâmetros comuns para os povos do mundo, os quais se tornaram, por isso mesmo, reféns do tumulto sem fim das divisões religiosas, étnicas, de gênero, de segmentações de classe, subjetivas e um sem fim de outras.

Estamos tão tomados e tramados pela diversidade de visões, de posições, identidades e comportamentos que minimamente não conseguimos nos orientar em proveito de nossos desafios comuns, como os que dizem respeito ao direito à moradia digna, à alimentação, à produção de conhecimentos livres, à saúde, à livre expressão de nossas diferenças sexuais, comportamentais, culturais, étnicas, as quais, a propósito, jamais serão livres se coletivamente não possuírem as condições básicas para tanto.

Como não é fácil sugerir parâmetros comuns, precisamente porque cultivamos a ideia de diversidade, proponho, neste artigo, um método, para a produção de referências norteadoras comuns, baseado em dois princípios, a saber:

Um princípio de igualdade inegociável de tal sorte que possamos dizer igualmente não às forças de opressão que igualmente afetam a todos os povos do mundo. Tal princípio não pode ser estendido indiferentemente a todos as forças de opressão do mundo ao mesmo tempo, porque elas atuam hierarquicamente, umas com maior poder de destruição e opressão que outras. É, portanto, importante escolhê-las hierarquicamente, razão pela qual se faz necessário um segundo principio, o de urgência hierárquica.

O princípio de urgência e de hierarquia

O princípio de urgência hierárquica assim é chamado porque está relacionado com a necessidade crucial de dizermos não antes de tudo, sem concessões, às forças que, na urgência de justiça de nosso presente histórico, hierarquicamente mais nos põe em risco e que efetivamente são as que estão atuando mundialmente de forma mais agressiva, bélica, criminosa, sempre em processo, de modo que, superando um risco iminente, inscrito, por tal ou qual força de opressão, possamos escolher outra força que também nos põe em risco e assim ao infinito, nunca disparando contra a utopia da produção coletiva de uma civilização terráquea fundada na igualdade absoluta, sem que precisemos de cadeias, de neuroses, de prostituição ou qualquer outra forma de tutela que nos rebaixe enquanto coletividade, diminuindo-nos.

Parto da premissa de que a civilização burguesa, que atua em todo o planeta, é a principal inimiga da vida na Terra. Trata-se de um modelo social impraticável, em perigoso e inevitável estágio de decadência generalizada, pela evidente razão de que chegamos ao limite dos limites: a própria Terra, nossa mãe comum, tem um corpo que não pode sustentar uma multidão de humanos buscando bem-estar privado, em conformidade com uma lógica baseada na concentração de renda e que, por isso mesmo, não vive sem colocar no epicentro de sua dinâmica interna valores econômicos, simbólicos, culturais e sociais essencialmente dispendiosos, narcísicos e parasitas.

Por outro lado, dentro da civilização burguesa, múltiplas forças atuam em graus hierárquicos diferentes de agressão, parasitismo, concentração de poder – inclusive bélico – e de renda, razão pela qual é preciso usar, para produzirmos referências comuns, o método do princípio de urgência e de hierarquia, a fim de saber quais forças, em bloco, fazem estrago maior ao conjunto das vidas da Terra. Sob esse ponto de vista, pergunto: quais são as forças que efetivamente têm invadido outros países, matando principalmente crianças, mulheres, homossexuais, negros, trabalhadores, alteridades? Quais são as forças de opressão que, no atual presente histórico, patrocinam golpes de Estado pelo mundo afora, desconsiderando totalmente a Carta da ONU, principalmente no que diz respeito ao direito dos povos de escolher seu próprio destino, com dignidade, autonomia, em conformidade com o princípio de soberania? Quais forças controlam e concentram os maiores interesses da civilização burguesa: os industriais, financeiros, bélicos, midiáticos, étnicos, aristocráticos?

Uma teoria da conspiração

É evidente que para todas essas perguntas uma única resposta emerge, claramente: são as forças ligadas à expansão ocidental, epicentro histórico da civilização burguesa e que, na atualidade, concentram-se objetivamente nos interesses econômicos da oligarquia estadunidense, associada, em bloco, com outras oligarquias, sobretudo as europeias, apoiadas pela máquina de matar chamada Otan, mas também as dos países árabes produtores de petróleo, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Catar, Kuwait, além de Israel e Turquia. Essas são as forças mais reacionárias, violentas, destruidoras e agressivas da atualidade – e que ocupam a linha de frente na defesa do que existe de pior na civilização burguesa: racismo, concentração de renda, exibicionismo, desperdício, presunção, arrogância, hipocrisia, cinismo, patriarcado. São forças que atuam em bloco, de forma coesa e planejada, interferindo em todos os países ou grupos que, por uma razão ou outra, funcionam, no presente, como obstáculo para seus interesses vorazes, bárbaros.

É claro que o imperialismo americano, a serviço antes de tudo de sua oligarquia empresarial, militar, financeira, midiática, constitui o epicentro do conjunto dessas forças reacionárias, muito embora seja manietado pela oligarquia sionista. Isso é tão verdadeiro que é possível dizer sem medo de errar que ele atua em todo o mundo patrocinando divisões étnicas, religiosas, ideológicas, assim como treinando e efetivamente atuando, com suas próprias forças bélicas, em qualquer lugar do mundo onde existam guerras, conflitos de classes, étnicos, religiosos, ideológicos (logo em todos os lugares do mundo), com o propósito de usar a seu favor esses conflitos e divisões todas.

Tais argumentos pretendem ser, sim (embora não fale novidade alguma), uma evidente teoria da conspiração, necessária porque a conspiração efetivamente existe e, não tenhamos dúvidas, os Estados Unidos da América são os principais conspiradores do mundo atual, razão por que me parece prudente ampliar a constatação de Evo Morales, presidente da Bolívia, de que cada embaixada americana funciona como um encrave golpista contra o país que a abriga. Não apenas as embaixadas americanas são golpistas, mas todas as instituições de peso, privadas e estatais, dos Estados Unidos. Sob esse ponto de vista, o Departamento de Estado, a propósito, é golpista, assim como o são igualmente o FBI, a CIA, o Pentágono, as suas grandes redes de comunicação, suas corporações empresariais e financeiras; suas forças armadas e mesmo a instituição Presidência da República, tenha o rosto que tiver para representá-la, Clinton, Bush, Obama.

O mensalão e a teledramaturgia do JN

Tudo que venha ou fale em nome dos Estados Unidos, direta e indiretamente, consciente e inconscientemente, existe para golpear toda possibilidade de justiça, liberdade e soberania para todos os povos do mundo e atua efetivamente para evitar, fazendo uso de todos os recursos, o tempo todo, sem cessar, para que um país ou outro ou um país e outro decidam seus próprios destinos, sobretudo se incorporarem uma agenda de contestação aos pilares da civilização burguesa. É por isso que proponho novamente ampliar outra recente afirmação de Evo Morales, a de que, no contexto da Bolívia, as ONGs têm funcionado como “a quinta instância da espionagem”, a serviço de estratégias golpistas de interesses dos Estados Unidos.

Caro Evo Morales, como bem sabe, não são apenas as ONGs que funcionam como a quinta instância da espionagem a serviço de estratégias golpistas que interessam ao imperialismo americano. As instituições nacionais, de qualquer país do mundo afinal, que mantêm contato rotineiro e de formação com qualquer golpista instituição americana (sejam as do âmbito jurídico, midiático, militar, empresarial, policial, educacional, governamental, cultural), no geral funcionam, parcial ou completamente, como se fossem a quinta instância da espionagem de seus próprios concidadãos, principalmente se estes, por uma imperialista razão golpista qualquer, não forem totalmente da confiança dos golpistas interesses corporativos dos Estados Unidos da América.

Se, pois, a argumentação precedente vale para qualquer país do mundo, obviamente vale para o Brasil, razão pela qual pergunto: sabendo que as corporações midiáticas funcionam como a quinta instância de espionagem e de propaganda a serviço dos interesses corporativos americanos, será delírio de minha parte a suspeita de que a novela Mensalão foi colocada no ar pela teledramaturgia noticiosa do Jornal Nacional, para cumprir uma agenda golpista de interesse dos Estados Unidos da América? Se a pergunta precedente é no mínimo possível, estará a Polícia Federal do Brasil investigando tão grave tentativa de golpe à soberania brasileira, de seu já golpeado povo?

Os golpes contra a soberania dos povos

O que está em jogo, a propósito, na postura do Supremo Tribunal Federal, com sua jurisprudência golpista baseada no domínio do fato, no que diz respeito aos previamente personagens da novela real, midiaticamente chamada de Mensalão? Será absurdo pensar que existe mais mistério no céu e na terra que supõe nossa vã filosofia jurídica? O domínio do fato não poderá ser simplesmente ou literalmente um golpista domínio dos fatos jurídicos e midiáticos brasileiros pelo imperialismo americano? Não estaremos presenciando, no Brasil, um detalhado plano golpista, com seus lances de dados enfeixados pelas quintas instâncias do poder judiciário, policial, midiático, militar, classe mediano, como se fôramos os voluntários e cooptados agentes de espionagem e de efetivos golpes contra o direito do povo brasileiro de poder, livremente, escolher seu próprio caminho de justiça e emancipação.

Se o que tem marcado a diferença entre o governo do PT, no que diz respeito ao do PSDB, é a relação com os Estados Unidos, num contexto em que este funcionou e funciona como a quinta instância da submissão arbitrária aos interesses golpistas americanos e, por sua vez, aquele procurou diminuir esta submissão, investindo no intercâmbio econômico e político com outros países da civilização burguesa, para além do eixo da expansão colonial do Ocidente, não seria o caso do governo da presidenta Dilma Rousseff contribuir decididamente para que nossos juízes, nossos policiais federais, nossos pesquisadores, militares, profissionais de comunicação não mais “dialogassem” apenas com seus respectivos pares estadunidenses e europeus, mas também com os seus igualmente respectivos pares chineses, venezuelanos, bolivianos, argentinos, russos, iranianos, indianos, sul-africanos, cubanos?

Quem sabe assim não formaríamos uma geração de juízes, policiais federais, pesquisadores, procuradores, educadores, administradores não mais submetidos à primeira coluna colonizadora da civilização burguesa, a saber, a do eixo estadunidense/europeu, com seu domínio dos fatos simbólicos, epistemológicos, midiáticos, prosódicos, econômicos, étnicos, patriarcais, bélicos, jurídicos, pedagógicos, publicitários, tecnológicos sobre nossas doutrinadas posições alegremente subservientes, colonizadas.

No entanto, nada disso será minimamente possível se não tivermos clareza absoluta de que o principal bastião contra a emancipação do povo brasileiro é a concentração de poder midiático, com sua escandalosa e criminosa liberdade de expressão a serviço integral do imperialismo americano, como sua golpista instância-mor, pois funciona, tal concentração, como caixa de ressonância das demais, as político-partidárias, as empresariais, as financeiras, educacionais, culturais, subjetivas, ocupando ousadamente o lugar de todas.

Se é verdade a assertiva de que as revoluções jamais serão televisionadas, não menos verdade é a afirmação de que os golpes contra a soberania dos povos sempre serão televisionados. O Jornal Nacional é o veículo escolhido (pelo tio Sam?) para nos mostrar, capítulo por capitulo, o golpe contra a democracia brasileira, o qual não apenas está sendo engendrado, mas, efetivamente, realiza-se.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]