Quando vemos um jornalismo que está descolado da cidade, mas pode surfar na falta de informação e organização da população e confundi-la, podemos nos indignar. Creio na boa intenção do colunista ao defender investimentos na periferia: mas olhando de perto, é calar a sociedade e cair no vácuo do “um dia” (ver aqui). Algo que resume um debate de um ano em meia dúzia de palavras pseudocríticas. Todos querem ser “críticos”, mas isso significa ser “vanguarda” a qualquer custo? (Muito efeito de nossa sociedade que aparta e exclui – que nos separa em guetos, em classes, em pequenos interesses; pode não ser por mal, mas o feito é uma cidade inerte.) Chega-se à lógica terrível: para ajudar aos pobres, é preciso não fazer nada (também para os pobres); não se pode ajudar quem precisa porque outros também precisam etc. A omissão é justificativa da omissão.
Assusta pensar que nós, que não estamos entre os mais ricos (e sabemos quanto mudou nossa vida cultural) e defendemos arduamente a causa da democratização, inclusive com armas que desconhecíamos, como audiências e MP, sejamos tratados novamente como ingênuos e “elitistas”. Nós que vivemos nessas ruas e sentimos no bolso a diferença, somos “os ricos”.
A retomada da cidade
Um comentário de leitor da coluna diz: “dinheiro público para poucos”… Quanto é “poucos” em São Paulo? Quase duas mil pessoas por dia de promoção é pouco? Vamos jogar bairro contra bairro, centenas contra centenas, problema contra problema? É evidente que, depois da catastrófica administração Gilberto Kassab a cidade está repleta de problemas urgentes: a solução disso é atuação do governo nos focos, e não idealismo suspeito.
Ser “crítico” é querer a presença do poder público no mundo pós-Friedman onde é salve-se quem puder (o grande capital, claro). Desde o início, quando percebemos que a solução se desenhava pela compra, soubemos que haveria viúvas de um liberalismo engessado, defensores da moribunda ausência completa do Estado que levou à duas grandes crises mundiais; e, sabemos que, quando o neoliberalismo não se sustenta mais ideologicamente, vende-se um “socialismo à la arte”, ou seja, sempre uma urgência de falta de recursos aliada a uma escolha entre (duas) necessidades básicas. Vale a pena lembrar que chegamos a essa situação porque o patrocínio de um banco mudou: será que sempre coisas voláteis do privado podem regular coisas perenes da cultura? Não se pensa assim na Argentina e na França, por exemplo, como já destacamos. O fato de sempre pegarmos o pior lado do capitalismo ajudou a tornar essa cidade tão desumanizada: por exemplo, aqui se pode construir grandes condomínios na várzea de rios, e no “capitalismo de primeiro mundo”, não. Pensar a melhor solução, ainda que fora do “liberalismo” da moda, é uma revolução para uma cidade acostumada ao baronato.
Se não há mais cinemas na periferia é também porque a comunidade ainda não pode se organizar para exigir isso – e nós sabemos o quanto é difícil mesmo na região central. Infelizmente, a classe média (caso se simplifique e se aceite que é um caso da classe média) consegue mobilizar mais recursos e tem acesso a mais formadores de opinião (mas estamos tão dispersos…); e talvez, assim, os problemas possam ser debatidos, numa cidade tão sem debate. Justamente esse foi um início de retomada da cidade em defesa de seus espaços. Antes de tudo, devemos perguntar: por que a prefeitura gastou 620 milhões de reais em projetos e consultorias e 420 milhões de reais em incentivo ao Corinthians e tantas obras absurdas, como o projeto mais caro da história, de 50 milhões de reais? Aliás, o orçamento dobrou em termos reais…
Paulista está se periferizando
O movimento em São Paulo é de 450 bilhões de reais ao ano, o poder público tem obrigação de cuidar de todas as áreas – e já não faz, mesmo sem jornalistas para questionar equivocadamente… Além de lutarmos contra conselhos, políticos e proprietários egoístas, temos de enfrentar uma mídia muitas vezes sem tempo ou sem pesquisa, o cidadão que mora em outro país e dá sua opinião com toda contundência. (E ele praticamente ridiculariza o movimento todo com essa pérola do “minimalismo” de visão: “A multidão que faz barulho nas redes sociais poderia estar visitando mais as salas para que a sina do Belas não se repita com seus vizinhos”. Essa “multidão”, claro, engloba senadores, deputados urbanistas, antropólogos e outros mil jornalistas, a começar por colegas do jornal, além dos muitos cidadãos que, sim, importam e deveriam definir prioridades de acordo com o Estatuto da Cidade.)
E podemos cair também no erro segundo o qual sempre que algo vai para a cultura é considerado um “desperdício”… Mais: deixar morrer o que funciona, por algo que um dia se vai fazer (ou não). Desconhecer que é um dos lazeres mais baratos e de fácil acesso da cidade o corredor cultural da Paulista é deplorável. (Note-se que mesmo a prefeitura usou esse argumento pseudossocial para fechar a Biblioteca Anne Frank e mais mil outros equipamentos: seriam feitas creches Deus sabe quando na periferia; já se ouviu até de movimento social “comprado” e troca de votos por “cartilha de reciclagem”…)
Precisamos, sim, de bibliotecas em cada bairro e cinemas públicos por toda a cidade. Só que o Belas cumpria sua função no centro e foi também uma perda imensa para os mais pobres. (Justamente: sem aparelhos culturais na periferia – um trabalho de vários mandatos – todo mundo vai para a lá.) Não apenas não se investe na periferia, como a região da Paulista está se periferizando, com a elite indo para condomínios fechados fora da cidade, cada vez mais insalubre e inviável.
O ótimo é inimigo do bom
Falando de uma forma abstrata como que olhando de cima, sempre podemos tomar posições mais “revolucionárias”: para que gastar em bibliotecas, se tem gente morrendo de fome? Para que gastar em educação, se a saúde está um caos, etc… Um dos argumentos do colunista é de que existem outras salas na região e “vazias”; falta de atenção: o Cinesesc tem um perfil mais voltado a festivais (ou um filme por vez) e as outras têm os preços muito além e a diversidade aquém do antigo cinema. E, levando em conta que tantas famílias vêm ali para seu lazer, oferta não é problema. Converso com muita gente e para todos a quantidade e qualidade baixou: o Reserva têm ingressos entre 19,50 e 24,00 reais.
A miséria da cidade é usada para que nada de novo aconteça. Ao invés de se pensar que a classe média acaba sendo também vítima hoje da imensa concentração de capital, como ocorreu em tantos casos de desapropriação, por exemplo, na Nova Luz, uma ação urgente é abafada por um humanitarismo abstrato e descontextualizado. Quem de fato é elite defende antes que “os shoppings dominaram tudo…” e devemos viver no nosso “condomínio”.
Seria um ab-reação? O poder público está sempre ausente; isso causa revolta; quando ele atua, essa revolta surge sem foco e querendo “tudo-agora”? Já me disseram que a CPI do Belas Artes não devia existir porque haviam outras mais importantes; se não se conseguiu força popular para mobilizar as outras, isso não significa que o certo está errado – o ótimo é inimigo do bom.
Estigma da ditadura
Conhecemos esse discurso. O que está em sua mão para ser assinado não pode, e vamos lutar pelo resto. Quem? Quando? Vamos conseguir? Uma professora disse: “Vocês deveriam pedir…” Vocês, não: nós! Na Cidade Tiradentes, por exemplo, um centro cultural foi feito, mas nenhuma verba foi destinada. Qual é a solução? Lançar “pobres” contra “ricos”, “centro” contra “periferia”? Não, usar o dinheiro de forma correta – sem obras faraônicas.
Além disso, já é muito difícil mobilizar os paulistanos, cansados, exaustos (mas veja, quando o poder público acena dizendo que há uma réstia de democracia, a resposta é entusiástica!); uma matéria da Folha, logo no início, fez muitos grupos desistirem porque “era impossível tombar”. (Acabou tombado; o que foi um sinal de que não é a terra dos gigantes. Lembre-se a notável pesquisa do promotor Washington Assis, que afirmou não ter sido observado o valor cultural do local nos processos e pediu a presença do Estado para preservar o interesse público. É isso, defender o “patrimônio” ou destruir manifestações da comunidade é fácil; difícil é defender o direito coletivo, as futuras gerações e empoderar a comunidade quando ela se manifesta.)
Sem querer, prevalece um estigma da ditadura: as autoridades falam e a população é “desinformada”, está mal orientada etc… Quando o jornalista diz que “estatizar cinema extinto é inacreditável”, fica claro seu posicionamento, que generaliza o caso, vendo um centro formador de 68 anos como um comércio qualquer (igual a uma pizzaria, né?), além de desconhecer o quanto o sistema de salas de cinema de arte está ameaçado. Diz André Sturm, na Folha:
“Mas o capitalismo prevê mecanismos para evitar excessos. No mercado de cinema, não se vê isso. (…) Urge que os órgãos tomem uma atitude” (ver aqui).
Investigação esquecida
A população quer com toda a força, e não apenas meia dúzia de cinéfilos “elitistas”, mas jovens da periferia e estudantes que não podem pagar o cinema de arte caro ou no shopping… Como se comenta, o MIS e a Cinemateca são de acesso difícil e esta última acaba privilegiando quem tem carro. De segunda a sexta, no Cineclube do Belas Artes se entrava sem pagar nada; segunda, toda carteira de trabalho dava meia (um amigo do Movimento, que mora longe do centro, foi quem postou isso no FB recentemente, nos lembrando).
Nossa sociedade precisa de muito mais justiça – não é estigmatizando um grupo que isso vai ocorrer – ainda mais um público tão eclético. O jogo político não funciona assim: não é que amanhã haverá a escolha de Sofia e vai se assinar um papel com “um cinema por bairro” ou o Belas Artes de novo; funciona, como aprendemos, juntando pessoas, buscando políticos, pedindo assinaturas para casos específicos. Não se pode cair na lógica do “não se faz nada porque tem de se fazer tudo”.
Isso mostra a fragmentação da cidade: cada um no seu escaninho, sem ampliar as racionalidades parciais (esse é um belo exemplo: na aparência, se justifica, mas em confronto com o todo, é tolo); enfrentamos muitos “cabeções” de elite (com que interesses, não se sabe), todo mundo sabendo muito sem sair do escritório, todos são contra tudo sem o devido debate, há sempre um “especialista” contra algo que, no fundo, desconhece, isso gera uma paralisação e vence o conservadorismo.
Deixar fechar esse cinema e desamparar tantos aposentados e jovens não vai ajudar a periferia, mas lutas por metas reais para ela; e podemos começar agora, quando levantamos a necessidade de cinema bom e barato. O que ocorreu foi que, neste caso, achamos vereadores e deputados decentes e que fizeram seu trabalho (até uma investigação que parece ser esquecida pelo colunista), mostrando por A mais B a necessidade. Espero que nenhum preconceito atrapalhe.
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[Afonso Junior Ferreira de Lima é historiador e escritor, São Paulo, SP