Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sorrisos que escravizam e prostituem

O príncipe Grigorij Alexandrovitch Potemkin (1739-1791) foi um marechal-de-campo russo, além de conselheiro e amante da csarina Catarina II (1729-1796). Durante boa parte de sua vida, envolveu-se com um projeto de colonização das selvagens estepes do sul da Ucrânia. Era considerado um sonhador e tornou-se conhecido como o fundador de cidades como Kherson, Nikolaev, Sebastopol.

Conta a lenda que Catarina II, em 1787, resolveu realizar uma longa viagem pela Ucrânia com o objetivo de inspecionar os povoamentos supostamente levados a cabo por seu amante, o príncipe Potemkin, embora, daí o motivo da expressão inicial, ainda que invertida, deste parágrafo, “não conta a lenda”, quisesse mesmo é inspecionar o próprio Potemkin, certamente o único motivo que a levaria realizar uma viagem tão longa e demorada: o distante corpo do amante e não o corpo inóspito de longínquas terras.

Como seus projetos mirabolantes de colonização estavam ainda numa situação deplorável, o engenhoso príncipe, querendo impressionar Catarina II, mandou construir cenários de povoados, conhecidos como “aldeias de Potemkin”. Considerando que Catarina II não fosse tão idiota a ponto de acreditar em tais subterfúgios (teatros de povoados ao invés de povoados de verdade), o que ocorreu de fato foi a simples constatação de que Catarina II preferiu fazer vistas grossas, fingindo que acreditava, agradando assim seu dileto amante, do que denunciar e punir implacavelmente a farsa.

Princípio de esperança

Em 1898, um navio de guerra da frota do mar negro da Rússia (talvez porque tivesse uma couraça inspirada no couraçado britânico HMS Majestic) foi inaugurado com o nome de encouraçado Potemkin, uma homenagem ao não menos encouraçado príncipe russo construtor de não menos encouraçadas cidades cenográficas à moda majestic ou csarina.

Em 28 de junho de 1905, por sua vez, o navio de guerra russo encouraçado Potemkin foi o cenário real de uma rebelião de marinheiros que se opuseram ao mandonismo de seus oficiais. Talvez motivados pela revolução popular que dominava todo continente russo no mesmo período histórico, 1905, os marinheiros do encouraçado Potemkin, de motivação a motivação, iriam inspirar e motivar o que tinha de mais instigante na Revolução Russa de 1917, seu devir revolucionário, a saber: voltar-se contra as formas oficiais de opressão que produzem encouraçados despotismos a fim de abrir as janelas do tempo histórico à produção de povoamentos fundados na igualdade real, e não encouraçada, de todos, entre todos, fora de qualquer projeto megalômano de cidades de fachada, com seus oficiais cães de guarda prontos a vigiar e a punir qualquer um que queira ou deseje povoar as fachadas das civilizações, enchendo-as de povos, de liberdades, de justiças, de porvires, no coração do vivo presente histórico, marcado, quando revolucionário, de inspiração a inspiração, por coletivas respirações.

Em 1925, sempre de motivação para motivação, de presente vivo para presente vivo ou de revolução a revolução, o cineasta russo, Serguei Eisenstein, dá a conhecer ao público o seu não menos revolucionário filme, O encouraçado Potemkin, inspirado precisamente na revolta dos marinheiros russos de 1905 e cujo principal mérito, inclusive singularmente inscrito em sua técnica de montagem, foi o de ter produzido um experimental filme sobre as sempre experimentais revoluções populares, sempre solidárias e motivadas por outras, como um fio de justiça que puxa outro, formando um inacabado e renovável princípio de esperança, de populares esperanças que se atam a novos atos nascentes fundados na não menos esperança num mundo sem encouraçadas mentiras de povoados encenados de Potemkin – os quais sempre são, independentemente da época histórica, os encouraçados infernos dos povos sem povoados.

A versão Potemkin

Em 1993, o ensaísta alemão, Robert Kurz, publica O retorno de Potemkin, obra que apresenta o seguinte argumento:

“O caráter um tanto duvidoso da fama de Potemkin, contudo, não apaga o fato de que ele fez época com sua invenção. Sobrevive até hoje como exemplo secreto para modernos ideólogos, ditadores, políticos democratas e, por último, mas não menos importante, repartições de estatísticas. Mesmo que não se tenda a conceber a modernidade como uma grande aldeia de Potemkin, é forçoso que a invenção potemkiniana vem sobrevivendo através dos último dois séculos da história da modernização como uma espécie de modelo ou esboço para as interpretações oficiais” (Kurz, 1993, p.9-10).

Após a bárbara e genocida invasão do Iraque, liderada pelo encouraçado regime ditatorial-democrático americano, e como parte de um não menos encouraçado plano de reconstrução do país invadido,em 2009, o Departamento de Estado americano gastou uma fortuna para construir, no leste de Iraque, uma fábrica de processamento de frangos com o “magnânimo” objetivo de distribuí-los, devidamente cortados e embalados, para os destruídos supermercados do Iraque invadido. A opulenta fábrica, como um cenário de um filme hollywoodiano, nunca funcionou de verdade, tendo sido ironicamente apelidada de Fábrica de Frangos Potemkin pelos encouraçados generais americanos.

A americana Fábrica de Francos Potemkin tornou-se uma experiência piloto do lado Potemkin humanitário da guerra humanitária, tendo sido devidamente usada como Potemkin cenário de propaganda da reconstrução humanitária do Iraque, após o holocausto da Potemkin humanitária invasão. Jornalistas do mundo inteiro foram convidados a conhecê-la, transmitindo a boa nova pelos quatro cantos do planeta, fazendo valer a máxima de que o que importa é a versão Potemkin, versão de versão, como um editorial Potemkin, sobre um povo tomado por irradiações de proteínas, de fósforos brancos e plutônios empobrecidos, em frangalhos, comendo editados frangos Potemkin no compasso com as edições midiáticas Potemkins.

Rebeliões e revoluções

Considerando que o argumento de Robert Kurz, em seu livro O retorno de Potemkin, tem a tendência de generalizar demais, por defender que o mercado capitalista mundial é o verdadeiro encouraçado Potemkin do sistema-mundo, penso, contra essa generalização, que produz confusão e desencanto, que, para sermos consequentes, é preciso dizer com todas as letras o seguinte: na modernidade, o verdadeiro cenário Potemkin, é o povoado encenado e encenando-se a que damos o nome (encouraçado) de Ocidente.

O Ocidente é o encouraçado Potemkin cujo cenário fantasioso inscreve em sua fachada os seguintes enfeites discursivos, além de outros: 1) somos civilizados, os outros não; 2) somos democráticos, os outros não; 3) somos humanistas, os outros não; 4) somos inteligentes, os outros não; 5) somos livres, os outros não; 6) somos justos, os outros não; 7) somos bonitos, os outros não; 8) somos educados, os outros não; 9) somos sutis e plásticos, os outros não; 10) somos semi-deuses, além do bem e do mal, nem opressores e nem oprimidos; os outros são infra-humanos, nem inteiramente humanos e nem inteiramente animais, podendo ser o pior de ambos; 11) somos os contemporâneos e os outros os anacrônicos; 12) somos a liberdade de expressão, os outros não.

O encouraçado Potemkin da invenção ocidental, sua presunçosa fachada, é o principal obstáculo para a construção de um mundo habitável por justiças sem fim, tendo em vista as pessoas de carne e osso, razão pela qual é o maior inimigo da vida na Terra, pois sempre esgrime as mesmas armas a fim de se opor às necessidades de transformar, para melhor, o mundo, a saber: 1) O Ocidente, principalmente a sua versão estadunidense e europeia, é o cenário oficial à priori de uma humanidade plenamente realizável, onde o homem novo se realiza sem cessar, razão pela qual o máximo que podemos fazer, os não plenamente ocidentais, é repeti-los, os divinos e rigorosos ocidentais; 2) o Ocidente é a demanda realizada da luta por um mundo justo, democrático e livre, se considerarmos, por exemplo, a Revolução Francesa, a independência americana, maio de 68, entre outros acontecimentos, claro que ignorando ou simplesmente apagando do mapa das representações tudo que outras insubmissões humanas protagonizou, inclusive a Revolução Russa de 1905 e 1917, mas nunca apenas, pela evidente razão de que existiu, existe e existirá, de motivação para motivação, uma sem fim de outras rebeliões e revoluções, como a que resultou na criação do Zumbi de Palmares e na Independência de Haiti, eventos tão importantes quanto os que ocorrerem no interior do Ocidente oficial, razão pela qual, porque não ocorreram no encouraçado Ocidente, nos são apresentados como periféricos e de relevância secundária para a humanidade.

O fim da alteridade

Tendo em vista a conhecida tese de Francis Fukuyama (1952), a de que, com o capitalismo neoliberal, chegamos finalmente ao fim hegeliano da História, o Ocidente, desde pelo menos à Revolução Burguesa de 1789, considera-se o próprio fim da história, no duplo sentido de ser o seu ponto máximo e de ser o fim da história, quer dizer, o objetivo supostamente irrecusável de todos os povos que ainda não alcançaram a evolução terminada do verdadeiro homem ocidental.

A questão de base, portanto, é a da oficialidade: o Ocidente é o fim oficial da História, sendo a própria História oficial, em todos os âmbitos da vida humana, razão suficiente, tendo como referência o ponto de vista dos encouraçados oficiais do Ocidente, para desqualificarmos, recusarmos e inferiorizamos todas e quaisquer perspectivas sociais, culturais e político-econômicas que não têm como evidente, porque rigoroso, objetivo o fim oficial da História, representado pelo magnânimo Ocidente.

É assim que o fim oficial da História, encarnado metafisicamente na figura exotérica do Ocidente, inventou e continua inventando alteridades, pela razão simples de que será alteridade ou tanto mais alteridade todo humano que não for a encarnação ou o rosto encouraçado da realização humana apresentada e representada pelo encouraçado fim da História ocidental. Eis porque, sob esse oficial e encouraçado ponto de vista, o fim de toda alteridade, as de classe (logo as não burguesas, ocidentais), as étnicas (logo as não brancas, ocidentais), as de gênero (logo as não heterossexuais e masculinas, ocidentais), é um e apenas um só: tornar-ser ocidentais, alcançando esse fim.

Fórmulas mágicas

No fundo e no raso, toda oficial política de inclusão, seja educacional, seja econômica, seja cultural, seja étnica, seja de gênero, está implicada com este desafio: incluir os excluídos, vale dizer, as alteridades não oficiais, a fim e no fim do encouraçado Ocidente, embora possamos dizer que, com todas as letras, para as alteridades, o fim do Ocidente é não ter fim; é buscá-lo sem cessar e nunca alcançá-lo, porque, não sendo oficialmente ocidental, as alteridades nunca poderão se tornar plenamente o fim do Ocidente.

Como exemplo, consideremos as políticas implementadas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Para a periferia do sistema-mundo, esse poço sem fundo não plenamente ocidental, as diretrizes impostas pelo FMI e BM são inspiradas em encouraçadas premissas exotéricas cuja palavra de ordem oficial é a seguinte: os países não plenamente ocidentais só conseguirão sair da condição inferior de pobres e endividados quando, fielmente, conseguirem cumprir uma cartilha encouraçada de exigências baseadas na não menos encouraçada metafísica dos fins econômicos e sociais do centro oficial do Ocidente, embora, diga-se de passagem, faça parte do roteiro a impossibilidade de alcançar esse inalcançável fim oficial.

Considerem, sob esse ponto de vista, a situação especialmente dramática dos países não plenamente ocidentais, pertencentes à União Europeia, como Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Chipre, entre outros. Para esses países não oficialmente ocidentais, a única saída para se tornarem legítimos e encouraçados europeus, está inevitavelmente predeterminada pelas encouraçadas exigências impostas pela troika, oficialmente representada pelo Banco Central Europeu, a União Europeia e o FMI. É precisamente por isso (e a América Latina esteve no miolo deste inferno na década de 90) que a receita para os que não conseguem se tornar plenamente europeus (e os não oficialmente europeus nunca conseguirão) é sempre a mesma: mais outro oficial pacote de receitas ou mágicas fórmulas de como se tornar um encouraçado Ocidental.

A liberdade de expressão do Ocidente

Por todo lado o que vemos é este dogma: a defesa intransigente da oficialidade Ocidental, acusando a todos não oficialmente ocidentais de não sê-lo porque não conseguem cumprir os exotéricos roteiros do encouraçado mundo ocidental. É assim, que, na academia, qualquer pesquisa que não estiver orientada pelos parâmetros oficiais dos magnânimos fins do Ocidente, será acusada de sem rigor, de simplista, de anacrônica, de equivocada, ingênua e assim por diante. E é aqui que eu acuso, sem hesitar, o CNPq e a Capes, as duas principais agências de fomento das Universidades brasileiras, de serem, elas mesmas, duas couraças oficiais do mundo das não menos encouraçadas pesquisas oficiais do Ocidente, sendo por isso, e nenhum outro motivo, que ambas as agências costumam recusar, com todo encouraçado rigor, as pesquisas que não se ajustem aos padrões ou fins estabelecidos pelo encouraçado Ocidente.

Se, por outro lado, viramos os olhos para as políticas não orientadas pelos metafísicos fins políticos do Ocidente, constataremos (claro, aqueles que têm olhos não totalmente eurocêntricos para ver) que o Potemkin sistema de bens da civilização ocidental sem hesitar as acusa de ou terroristas, ou populistas, ou autoritárias ou bárbaras ou anacrônicas ou tudo isso junto, num encouraçado contexto em que a única saída para essas não oficiais e não ocidentais políticas é a de se ajustarem aos inalcançáveis padrões ocidentais, o que significa, bem entendido, precisamente o fim da política. A mesma lógica toma o campo dos poderes oficias no mundo todo, do executivo, do legislativo e do judiciário: só serão sérios, legítimos e verdadeiramente justos se forem uns encourados Potemkins dos exotéricos mundos dos poderes executivos, legislativos e jurídicos do não menos encouraçado Ocidente.

Este é também o oficial parâmetro dos considerados oficiais encouraçados meios de comunicação do mundo todo, afinal: só serão considerados o reino exotérico da liberdade de expressão se estiverem orientados pelas encouraçadas exotéricas ideias de liberdade de expressão preconizadas pelo oficial Ocidente. Do contrário, como ocorre em alguns casos, por exemplo, na Venezuela (alguns casos, bem entendido, porque mais de 80% do espectro radioelétrico venezuelano são encouraçados, oligárquicos, oficiais), o oficial veredicto será o seguinte: se recusam a oficialidade encouraçada da exotérica liberdade de expressão do Ocidente, serão implacavelmente condenados pelo crime imperdoável de atentado contra a metafísica oligárquica ideia privada de liberdade de expressão do encouraçado Ocidente.

Sorrio para a foto

Além desse oficial desígnio exotérico, as encouraçadas mídias do mundo cumprem um importante e não menos encouraçado e estratégico destino Potemkin, civilizatório, a saber: serem elas mesmas, por elas mesmas, os meios globais de produção da oficialidade, cujo principal objetivo encouraçado é o de realizar incessantes propagandas confeitadas do encourado Potemkin da verdadeira troika do oficial Ocidente, a saber: seus oficiais Estados policialescos – armados até os dentes –, suas oficiais corporações (incluindo as fundamentalmente encouraçadas, como as do sistema financeiro) e suas oficiais religiões, divididas, num mesmo encouraçado e confeitado bolo, entre as cristãs (católica e protestante) e o ultraoficial judaísmo.

Este é, pois, o lugar estratégico dos oficiais meios de comunicação do mundo, na atualidade: serem o literalmente encouraçado epicentro editorial do não menos encouraçado Potemkin planetário, da verdadeira encouraçada troika ocidental, encarnada, pelo encouraçado tridente da metafísica de seus oficiais Estados militares, de seus oficiais mundos corporativos e de suas oficiais religiões, o que equivale, em conjunto, ao que Frantz Fanon, em Os condenados da Terra (1961), chamou de sistemas de bens do colonizador: um encouraçado Cavalo de Troia que herdamos como um magnânimo presente civilizatório, o único possível, sendo simplesmente um verdadeiro presente de grego a nos saquear do lado de dentro quanto mais civilizados nos tornamos ou desejamos ser – saqueadores.

No Brasil, é preciso dizê-lo com todas as letras, a TV Globo é o nosso Cavalo de Troia a serviço da troika das oficialidades ocidentais. O chamado padrão globo de qualidade não passa de um encouraçado Potemkin publicitário dos sistemas de bens oficiais da bélica e genocida expansão colonizadora do Ocidente – sua religião midiática. Aparecer na telinha global equivale, sob esse ponto de vista, a estas palavras de ordem: sou civilizado, sou a encarnação dos sistemas de bens do encouraçado Ocidente, sou o rosto da civilidade, sou oficialmente o fim da história, o escolhido a compor o sistema de disfarce do encouraçado Ocidente; sou o desejo civilizatório encarnado, o objeto de todos os oficiais desejos, em oposição ao fracassado limbo lixo da História (a não encouraçada humanidade inteira); sou o mais talentoso, o mais inteligente, o mais inventivo, o mais bonito, o verdadeiro herdeiro dos sistemas de bens do encouraçado Ocidente – por isso sorrio para a foto, confiante, com minha cara ungida pelos deuses. Sou, enfim, (como um oficial Faustão, Ana Maria Braga, Fátima Bernardes, ator tal, atriz tal, Jô Soares) um Cavalo de Troia ambulante dentro de sua casa. Por isso sorrio simpático, civilizado, para que não percebam o que virá após mim e mesmo através de mim, comigo, dentro de meu encouraçado Potemkin global: roubo, pilhagem, pobreza, humilhação, barbárie, sofrimento, servidão por dívidas econômicas, subjetivas, civilizacionais.

A escravidão eterna

Claro que, para evitar este bombástico publicitário Cavalo de Troia, a saída é simples: trocar de canal fora do Ocidente global (onde?) ou desligar a televisão, embora prefira o desafio de fazer o que estou fazendo agora: procurar mostrar como funciona a Globo Potemkin das oficialidades ocidentais, sabendo que o objetivo maior é este: desligar o encouraçado Ocidente, desinflá-lo de seu fim na História, como condição fundamental para repovoarmos o mundo de novos atos nascentes, fora das oficialidades, com suas máscaras civilizadas, que são as máscaras da vergonha, razão por que, mais que orgulho, por aparecer na TV Globo como o cantor tal, a atriz tal, o jornalista tal, o animador de auditório tal, o repórter tal, o entrevistado tal, mais enfim que orgulho por ser o rosto oficial do sucesso global, aparecer na telinha dos encouraçados Marinhos é motivo de uma profunda vergonha; é absolutamente vergonhoso – é uma vergonha escandalosa, lamentável.

Eu tenho vergonha por eles – os encouraçados astros globais; vergonha e asco deles, por eles. Minha vergonha, no entanto, não é passiva ou intransitiva: vergonha e ponto!Tenho vergonha e explicito o motivo: vocês são os encouraçados globais e estão aí para esconder e ao mesmo tempo dissimular o que realmente existe, insiste e persiste fora de suas couraças: barbárie, barbárie, barbárie; o Ocidente bárbaro, humilhando, saqueando, impondo inomináveis sofrimentos aos povos do mundo. Vocês não são os bons, em oposição aos maus; não são os civilizados, em oposição aos bárbaros; não são os vencedores em oposição aos fracassados e, se quiserem (se é que não sabem) conhecer a encouraçada empresa de comunicação para a qual vocês trabalham e pela qual são muito bem remunerados, então basta observarem os personagens maus das novelas globais, principalmente os dissimulados malvados das encouraçadas oficiais novelas das 9. Observem bem o comportamento desses personagens: eles são a enésima parte da perversão ocidental – são, pois, seus não encouraçados rostos.

Querem, insisto, conhecer a TV Globo fora de suas couraças? Reparem então nos personagens maus de Salve Jorge. Eles, sim, encarnam a verdadeira TV Globo: prometem sucesso e riqueza, se apresentam como altruístas, dissimulam-se, com bondosos sorrisos, apresentam-se como os bonzinhos, oferecendo civilizadas ajudas aos pobres e desvalidos, embora, fora dos focos encouraçados, escravizam e prostituem.

Este é, pois, fora do encouraçado Potemkin oficial, fora e dentro de seu padrão de qualidade, a verdadeira razão de ser da TV Globo: contribuir ativamente com a escravidão eterna do povo brasileiro, a fim de que continuemos a ser o prostíbulo do Ocidente.

Tenho vergonha do padrão Globo de qualidade!

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo