Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pós-modernidade e golpes midiáticos

1.

Em diálogo com Deleuze e Guattari, assumo o argumento de que o capitalismo vive de fluxos, com fluxos, pelos fluxos, de forma hiperpragmática. Estes, por sua vez, simplesmente podem ser traduzidos como forças terráqueas, sociais, tecnológicas, artísticas, identitárias, cosmológicas, como, enfim, quaisquer forças, independente de suas qualidades intrínsecas, razão por que, na fábrica mundial que é o capitalismo, tanto faz se as forças em questão forem, sob o ponto de vista das sociedades, democráticas, despóticas, terroristas, esquerdistas, patriarcais, femininas, racistas, liberadoras, fundamentalistas, revolucionárias, sexuais, criativas, operárias, narcísicas, solidárias.

2.

O capitalismo, sobretudo o contemporâneo, atua no planeta como um todo, transformando inclusive as fronteiras nacionais em forças a serem manipuladas, aqui e ali, assim e assado, em conformidade com os desafios desse ou daquele contexto histórico. É por isso que, de antemão, a expressão relação de forças, sob o ponto de vista do capitalismo, é vivida literalmente, como desafio: o capitalismo sempre atua nas relações entre as forças, independente delas mesmas; independente, pois, do que as forças pensam sobre si mesmas, razão por que, sob o ponto de vista do capitalismo, o relevante é que, mesmo pensando em si mesmas, as forças possam produzir riquezas, movimentando sem cessar o valor em mais valor, o lucro em mais lucro.

3.

Jamais, para o capitalismo, uma questão tão comum para o campo das esquerdas se coloca como impedimento, a questão de análise das relações de forças, a fim de observar se tal ou qual conjuntura é favorável ou desfavorável. O capitalismo não atua ou deixa de atuar em função das circunstâncias históricas das relações de forças. Ele simplesmente atua através delas, independente delas. Quer admitamos ou não, o capitalismo vive de desafios e seu principal desafio é o de superar os limites impostos pelas relações entre as forças, transformando-se em sujeito absoluto delas ou simplesmente as colocando em condições de, independente delas, insisto, produzir mais-valia.

3.

É igualmente por isso que a questão fundamental para o capitalismo é: como orquestrar as forças, todas elas, combinando-as e/ou confrontando-as a fim de que, em conjunto – mesmo que seja um conjunto belicoso –, tais forças possam concentrar renda, produzir riquezas, mover, enfim, como combustível, os dínamos do capital?

4.

As forças são, pois, o combustível do capitalismo. Eis porque ele as processa e reprocessa tendo em vista ao mesmo tempo as resistências e as demandas colocadas por elas. Resistências e demandas de forças nunca estão separadas, para o capitalismo, razão pela qual seu principal desafio é o de antecipar suas demandas, a fim de contê-las, domesticá-las, cooptá-las e orquestrá-las produtivamente, vencendo assim suas resistências, ou simplesmente as transformando igualmente em forças produtivas.

5.

Para o capitalismo, a esfíngica questão de sua sobrevivência é: diante de tais e quais resistências das forças existentes, para além de qualquer idealismo, como domesticá-las, driblá-las e orquestrá-las? Historicamente a resposta para essa questão, sob o ponto de vista do capitalismo, tem sido uma e apenas uma: só é possível vencer as resistências das forças sociais, se conseguimos êxito na manipulação de suas demandas, inclusive inventando demandas para as forças – ou, eventualmente ou não, inventando também suas resistências.

6.

Eis por que, para analisar se o capitalismo está tendo ou não êxito na orquestração das forças sociais, conseguindo dobrar produtivamente suas resistências, é preciso antes entender, tendo em vista tal ou qual circunstância histórica, como se dá a resistência delas e quais são, por consequência, suas demandas.

7.

Se dividimos a história do capitalismo em duas metades, uma primeira a que podemos chamar de, simplesmente, modernidade industrial e uma segunda à qual chamaremos de pós-modernidade, podemos finalmente perguntar: quais eram as resistências colocadas pelas forças sociais na primeira modernidade e quais suas demandas?

8.

Para responder a essa pergunta é preciso fazer outra: quais eram os desafios colocados pelas tecnologias de produção do capitalismo na modernidade industrial? Se o que marcou a modernidade industrial, como epicentro de um processo histórico, foi a expansão colonizadora, em busca de capital primitivo, de alguns países europeus, com o objetivo de colonizar outros povos, então podemos entender que a principal demanda das forças sociais da primeira modernidade era: liberar e descolonizar os corpos colonizados por forças patriarcais, aristocráticas, étnicas, epistemológicas, comportamentais e religiosas do capitalismo europeu, em expansão.

9.

Aos povos colonizados pelas forças sociais do capitalismo europeu em expansão, durante a primeira modernidade, a questão da resistência passava necessariamente, portanto, pela resistência em relação às forças patriarcais, aristocráticas, étnicas, epistemológicas, comportamentais e religiosas do capitalismo europeu, em expansão.

10.

No fundo e no raso, o melhor da arte, da política, da ciência e do amor, para dialogar com Alain Badiou, durante a primeira modernidade, foi profundamente marcado pela resposta criativa em relação às forças dominantes do capitalismo europeu expandido e em expansão, de vez que o capitalismo nunca deixa de se expandir sobre as forças, através delas.

11.

Quando a expansão das forças dominantes do capitalismo europeu entrou em crise em seu próprio terreno, produzindo forças de emancipação internas ao contexto europeu, através de seus próprios movimentos operários, intelectuais, movimentos artísticos, gerando um intenso e revolucionário diálogo liberador com as forças sociais colonizadas, o epicentro do capitalismo, localizado em território europeu, foi sendo gradativamente sobrepujado pelo modelo norte-americano, que finalmente se tornou o novo epicentro do capital a partir da Segunda Guerra Mundial.

12.

Com o deslocamento do epicentro do capitalismo da Europa para os Estados Unidos, saímos da primeira modernidade e entramos na pós-modernidade. Esta, sob o domínio do capitalismo americano, constituiu-se e se constitui (ainda) como uma criativa resposta às forças do capitalismo sobre as forças de resistência e emancipação produzidas no interior da primeira modernidade capitalista.

13.

Se as forças de emancipação da primeira modernidade resistiam às linhas de força da dominação do capitalismo europeu, significa dizer que elas resistiam às forças produtivas (vinculadas ao mundo laboral típico da Segunda Revolução Industrial), étnicas, epistemológicas, aristocráticas, religiosas, patriarcais em jogo, como paradigma, no modelo expansionista europeu, razão pela qual as demandas das forças resistentes eram fundamentalmente produtivas (liberar-se da opressão das fábricas industriais), étnicas (liberar-se da opressão do perfil étnico europeu), epistemológicas (liberar-se da forma dominante de pensar da aristocracia europeia), religiosas (liberar-se dos dogmas dominantes do cristianismo e judaísmo esquadrinhados, como modelo, no interior da Europa), patriarcais (liberar-se do patriarcado historicamente produzido, como modelo, pela expansão colonizadora europeia).

14.

Os Estados Unidos conseguiram sobrepujar a Europa como epicentro do capitalismo porque produziram um modelo de capitalismo que orquestrou, domesticou e pôs a serviço do capital as forças de liberação da primeira modernidade, através da velha forma relacionada com a não menos vetusta tática implicada com o desafio de mudar tudo para não mudar absolutamente nada.

15.

A pós-modernidade é dominantemente o capitalismo ao estilo americano, marcado pela orquestração produtiva das demandas de emancipação laborais, étnicas, não patriarcais, epistemológicas, comportamentais da primeira modernidade. Como, no regime capitalista, essas demandas não podem, coletivamente, realmente ocorrer, a pós-modernidade do capitalismo americano é nada mais e nada menos do que a mentira (e o engodo) mundial de uma primeira modernidade opressora, finalmente publicitariamente liberada.

16.

Os Estados Unidos conseguiram realizar essa façanha, produzir um capitalismo publicitariamente emancipado em relação às demandas liberadoras da primeira modernidade, porque dominaram não apenas as novas tecnologias bélicas, mas também e talvez até antes de tudo (na verdade tudo é arma de guerra) porque dominaram as tecnologias de comunicação: o rádio, o cinema, a televisão e integração disso tudo nas novas tecnologias cibernéticas.

17.

Foi e é através do domínio e estrito controle das tecnologias de comunicação que os Estados Unidos literalmente inventaram um mundo no qual e a partir do qual o que nunca existiu e nem pode existir, sob o domínio do capital, num passo de mágica passou existir: um mundo pós-moderno publicitariamente emancipado das antes de tudo opressões de classe, éticas e de gênero típicas da primeira modernidade.

18.

A pós-modernidade capitalista americana, portanto, é uma escandalosa mentira ecoada sem cessar pelas tecnologias de comunicação sob o controle dominante dos Estados Unidos da América. Sua versão hegemônica é profundamente mentirosa, publicitária, hipócrita, razão pela qual nos vende por todos os lados gatos por lebres. A lebre do fim da opressão de classes, como mentira orquestrada do fim da luta de classes, não passa, portanto, do gato da velha opressão de classes que produz miseráveis aos bilhões por todo o planeta. A lebre da liberação de gênero (a liberação feminina, homoerótica) é o gato do patriarcado heterossexual de sempre. A lebre da liberação étnica (negra, indígena, mestiça, amarela) é o gato do mais restrito rosto modelar consagrado, religiosamente, pela expansão europeia. A lebre das multiplicações de expressões religiosas não passa do gato (no sentido metafórico) dos velhos dogmas do cristianismo medieval, adaptados.

19.

As tecnologias de comunicação sob o domínio estadunidense são o reino das fantasias liberadoras da pós-modernidade: mentiras, mentiras e mentiras, de modo que, quanto mais mentem que não existe dominação de classe (que isso é coisa de maniqueístas anacrônicos e ressentidos) mais a miséria dos trabalhadores se espalha, como nunca, por todo o planeta. Quanto mais mentem que não existe dominação de gênero, mais esta é a cruel realidade da massacrante maioria das mulheres e sexualidades não heterossexuais por todo o mundo. Quanto mais mentem que a dominação étnica é coisa do passado mais o genocídio indígena intensifica; mais o continente africano é implacavelmente explorado, colonizado, atacado por drones invisíveis – e abandonado à fome e às incessantes e provocadas guerras étnicas e religiosas.

20.

Não existe outro meio de compreender a pós-modernidade americana, hoje planetária, senão através da constatação de que tudo que vem dela, em sua esfera dominante, capitalística, é falso, é mentira, é engodo, seja no cinema, seja no jornalismo, seja na arte, seja nas publicitárias e estilizadas vidas étnicas, de gênero e de classes cosmeticamente liberadas.

21.

Como as tecnologias de comunicação servem no geral para reduplicação da vida e do mundo, a que podemos simplesmente dar o nome de representação, a pós-modernidade americana tem como principal objetivo o seguinte: fazer a mentirosa emancipada representação da vida e do mundo ocupar o lugar da vida e do mundo tal como efetivamente são, fora dos cosméticos publicitários, das representações enganosas. Esse processo de substituição, da representação no lugar da apresentação, é tão vitorioso na atualidade que se tornou o próprio lugar das resistências e das demandas das liberações sociais, o que significa dizer que estas últimas partem da representação mentirosa de suas publicitárias emancipações para geralmente pesquisarem, pensarem, desejarem, professarem, noticiarem, criarem, enfim, as suas respectivas demandas e publicitárias conquistas de liberações.

22.

Consideremos, a propósito, duas situações recentes em que a representação ocupou ou pretendeu ocupar o lugar da apresentação. O primeiro se deu na Venezuela. Os meios privados de comunicação da Venezuela, colados, de forma colonizada, na crença dominante do capitalismo pós-moderno de que a representação da realidade é a própria realidade, tentaram implantar um golpe midiático elegendo como presidente o candidato de sua preferência. Para tal, anunciaram, pelos quatro cantos, fraude eleitoral, com a esperança de que a representação da fraude eleitoral, com seu simples e incessante anúncio, se transformasse na própria inexistente fraude, provocando uma comoção nacional a partir da qual um golpe de estado midiático se transformasse em golpe de estado de fato. A segunda situação ocorreu com a transmissão planetária das explosões durante a maratona de Boston, Estados Unidos. A representação midiática de tais explosões, fundada na crença da maldade natural, ocupou totalmente a realidade das explosões, de tal maneira a que o motivo real das explosões, uma sociedade americana cada vez mais fraturada e violenta, não fosse colocado em causa.

23.

Como o principal objetivo do mundo das tecnologias de comunicação manietados pelo pós-moderno capitalismo americano é o de fazer a versão, divertidamente, se transformar em conversão dos interesses do próprio capital, inventando um mundo à parte, deixando-nos cegos ou, o que é pior, fazendo-nos enxergar a partir do espelho da tela publicitária, sem ver efetivamente o mundo, a única forma de resolver essa situação é com o próprio mundo, tal como é, e não tal como a representação midiática dele diz-nos que ele é, sendo essa a diferença fundamental da mentirosa versão midiática venezuelana em relação à americana: a primeira não foi convertida em golpe porque o povo encheu as ruas, inclusive defendendo a apresentação real da vida, contra a golpista representação midiática, com a própria morte (sete pessoas reais morreram); a segunda, por sua vez, como está tomada por um povo convertido à publicitária religião midiática, como é o povo americano, fez valer a sua golpista fraude: as explosões ou foram causadas por um terrorista externo, inimigo da representação, ou por um doente de re-apresentação interno, tão doente que, ao protestar, só consegue fazê-lo explodindo, ao revés, não a maratona sem fim da corrida sem fim da representação da liberdade sem fim para o seu lugar sem fim, o lucro oligárquico sem fim, mas uma publicitária (embora composta por pessoas reais) maratona disso tudo.

24.

Desrepresentar as linhas de força da pós-modernidade americana, denunciando sua fraude eleitoral planetária e ao mesmo tempo enchendo o mundo com as verdadeiras demandas de emancipação da primeira modernidade, fora de qualquer forma de publicidade e cosméticas representações, é a única saída para a conversão à versão planetária ao capital, que tomou todo mundo.

25.

Com todas as suas contradições, inclusive muitas vezes encenando bufânicos choques entre representações e apresentações, a Venezuela está, no mundo inteiro, na linha de frente da desrepresentação da mentirosa e publicitária pós-modernidade americana.

26.

Sua fórmula é simples: povo no povo, povo na rua.

27.

Eis porque o que realmente esta(va) em jogo na disputa eleitoral na Venezuela era, é e será: a disputa política entre a representação midiática e pós-moderna da vida e do mundo, fundamentalmente cosmética e mentirosa; e a apresentação a um tempo das resistências e demandas populares, basicamente ainda modernas. Se o chavismo perdeu espaço, através de uma vitória apertada, é porque a midiática publicitária representação pós-moderna, americanamente determinada, avançou sobre os desafios reais da vida concreta do povo venezuelano, o que significa dizer que o eleito presidente Maduro tem inevitavelmente o seguinte desafio: destronar de vez o fraudulento oligopólio midiático que ainda domina mais de 80% do espectro radioelétrico venezuelano.

28.

A luta pela liberdade e pela justiça dos povos no contemporâneo está diretamente relacionada com a desrepresentação pós-moderna estadunidense da vida e do mundo, razão pela qual estamos desafiados a olhar, a ouvir, a sentir, a ser, enfim, o lado de fora da telinha.

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo