Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

José Dirceu e os midiáticos bastidores do poder

Como professor, trabalhei durante dez anos numa escola da periferia de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Nela fiz amigos com os quais desenvolvemos projetos político-pedagógicos marcados pela seguinte premissa: se um aluno pobre não sabe, com clareza, os motivos históricos concretos que condenaram ao abandono a vida de suas famílias e, portanto, deles mesmos, não terá condições de produzir aprendizagem significativa e libertária, apta para desmistificar a trama ideológica de uma civilização que faz de tudo para naturalizar a pobreza, como se fosse ou uma questão de fatalidade, ou de castigo, ou de preguiça, falta de inteligência, de sub-raça.

Se as camadas médias de uma população, na ordem do capital, podem ser comparadas a um pêndulo que, em conformidade com as circunstâncias históricas, ora pende para o povo simples, ora para a oligarquia, deveríamos saber que o principal objetivo da ditadura militar brasileira (1964-1985), meticulosamente planejado por Estados Unidos, era o seguinte: produzir um “casamento feliz” entre as classes médias e a oligarquia nacional, sócia devota e subserviente da ordem imperialista.

Objetivo quase que plenamente cumprido.

Deveríamos saber também que a palavra de ordem do neoliberalismo, privatização, era e é ao mesmo tempo econômica, social, epistêmica, estética, individual. Deveríamos saber que, após o regime militar, estávamos mais do que nunca vulneráveis à tara neoliberal de governos como o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Agregados de agregados dos donos do mundo

Deveríamos saber que estávamos, em maior e menor medida, divorciados uns dos outros.

Deveríamos saber que o divórcio de tudo com tudo, levávamos a privatizar-nos ainda mais quanto mais buscávamos refúgio na imagem narcísica de nós mesmos na família, no trabalho, na arte, no amor.

Deveríamos saber que, em nome desses refúgios, abandonávamos a escola pública, colocando nossos iguais refugiados em escolas privadas. Deveríamos saber que a mesma situação ocorria no âmbito da saúde, da previdência, da habitação, do transporte.

Deveríamos saber que o reforço neoliberal do refúgio supostamente protegido de nossos iguais em classe e em sangue era sim, por mais que disséssemos que não, para nos proteger da multidão de refugiados sem proteção, sem cuidado, abandonada á própria sorte, porque sem dinheiro para comprar saúde, saber institucional, habitação digna, cuidados.

Deveríamos saber que as maiorias não privatizáveis, porque sem dinheiro, eram e são os terroristas de nosso supostamente sagrado direito ao autoexílio protegido por muros, cercas elétricas, sistemas diversos de vigilância, pela indiferença, essa eficiente arma cínica da hegemonia neoliberal.

Deveríamos saber, por sua vez, que, com tudo isso, tínhamos e temos a ilusão de que éramos cosmopolitas, cidadãos do mundo, sem saber que voltávamos aos piores aspectos do Brasil colônia, com sua seguinte estrutura de classe: proprietários, agregados e escravos.

Deveríamos saber que a única diferença do Brasil neoliberal em relação ao “liberal-colonial” de ontem é: hoje todos somos agregados de agregados de agregados dos verdadeiros donos do mundo, os banqueiros, as multinacionais e seus armados estados protetores.

Esdrúxulas associações

Deveríamos saber que a dominante cultura de agregados de agregados de agregados (proprietários, camadas medianas e escravos) servia antes de tudo para escamotear ideologicamente o caráter de classe (igualmente racista e sexista) da cultura neoliberal ainda dominante no Brasil – e no mundo.

Deveríamos saber, por fim, que estávamos no miolo do furacão de uma planetária guerra entre classes e que, nele, a tarefa das corporações midiáticas era e é antes de tudo a de nos vender o peixe de que a luta de classes acabou, porque, como agregados de agregados de agregados, somos irmãos em Cristo no desejo de comprar, inseridos que estamos no capitalismo mundial integrado e na sua igual máquina planetária de carnavalizar os povos do planeta, a saber: a cultura de massa, esse deboche de nós todos que nos transforma culturalmente em espetaculosos seres replicantes do Coliseu romano da sociedade do espetáculo.

A dimensão neoliberal de agregados de agregados de agregados, pressupondo a não existência de classes em disputa no contexto produtivo de uma guerra civil planetária, rendeu-nos à religiosa lógica da ascendência econômica, na suposição de que esta seja o destino natural de todos; a única universalidade que nos interessa, relegando tudo o mais ao plano do ressentimento, do anacrônico, da ignorância.

A transformação do mundo em disputa por ascendência econômica entre agregados de agregados de agregados produziu duas consequências comportamentais igualmente nefastas: 1) uma primeira fundada na lógica de que o agregado da ponta, por seu o mais rico, é o que devemos seguir e imitar, referenciando-nos nele; 2) uma segunda marcada pela generalização da tríade agregado de agregado de agregado, em todos os planos da vida e também do poder, de tal maneira a, por exemplo, formar esdrúxulas associações táticas e estratégicas entre agregados, em conformidade com a correlação de forças desse ou daquele contexto histórico.

Discurso hipócrita da inclusão

Assim o poder judiciário poderia ser ao mesmo tempo agregado do poder midiático, que seria, por sua vez, agregado do poder corporativo, a fim de somar forças para derrotar qualquer perigo de sairmos do eixo agregado de agregado de agregado, tendo precisamente o poder corporativo como a ponta desse suicidário processo. Foi precisamente nesse cenário marcado por um cinismo difuso, de igualdade ancorada no desejo de ascensão social, que o Partido dos Trabalhadores, o PT, começou a ganhar eleições municipais e estaduais, nos inícios da década de 90 do passado século, até chegar à presidência da República, com Lula, no final de 2002.

Nessa época, morava ainda em Belo Horizonte, cidade que há mais de 10 anos estava sendo administrada pelo PT. Os projetos político-pedagógicos que desenvolvíamos na periferia da cidade eram totalmente ignorados pela administração petista que não tinha já naquela época a mínima condição de entender propostas pedagógicas baseadas na laica confirmação da existência de luta de classes, rendida que estava à percepção neoliberal fundada na lógica dos agregados de agregados de agregados.

É por isso que a proposta pedagógica da administração petista, ao invés de assumir politicamente o motivo histórico da exclusão social, preferiu o hipócrita discurso da inclusão, termo perfeitamente condizente com a lógica geral de ascensão econômica que havia nos capturado, pois incluir significava e significa exatamente isto: o direito universal à ascensão, direito, como o sabemos, que jamais poderia ou poderá ser universal, residindo aí sua inserção numa lógica cínica, hipócrita, ainda que bem intencionada, muitas vezes.

Um comício ao lado

Ainda assim, mesmo ignorados, continuávamos a desenvolver nossos projetos na escola, sempre no período noturno, donde seja possível concluir que nosso público alvo era constituído por trabalhadores subempregados, desempregados, jovens, adultos e também idosos.

Assim prosseguimos, no miolo das contradições, até que a prefeitura petista decidiu fechar o período noturno de nossa escola, alegando que existiam muitos professores para poucos alunos, sem considerar a realidade do período noturno a partir mesmo do perfil socioeconômico dos alunos, os quais, em função da dificuldade de sobrevivência, ora apareciam, ora desapareciam da escola. Com isso, a equipe sofreu uma dispersão total. Cada professor foi remanejado para escolas diferentes, em turnos diferentes. Cansado disso tudo, fiz um concurso para a Universidade Federal do Espírito Santo, onde ainda hoje atuo como professor.

Eis que chegamos à encruzilhada deste artigo tanto mais pessoal como absolutamente impessoal. Estávamos eu, minha ex-mulher e minha filha, em novembro de 2004, num bar de um bairro de Vitória, capital do Espírito Santo. Numa praça ao lado do bar ocorria o último comício do PT para prefeitura de Vitória. O candidato petista era o João Coser. Toda a cúpula federal do PT estava no comício, inclusive o próprio Lula. No nosso exílio de Minas Gerais, talvez por causa de nossa timidez de mineiros, compensávamos a solidão com essas saídas nos finais de semana. Não estávamos, pois, participando do comício. Não nos interessava. Fazíamos o que vínhamos fazendo, com a coincidência de um comício ao lado de onde estávamos.

“Nós vamos consertar…”

Bêbado igual a um gambá, saí trocando os pés do bar onde estávamos, com o objetivo de irmos para casa. Eis que olho para o lado e vejo o então todo poderoso José Dirceu, ministro da Casa Civil do governo Lula, dentro de um carro, num banco de trás. Não perdi tempo, bati no vidro do carro. O motorista insinuou que sairia às pressas do local. José Dirceu, de forma muito simpática, fez sinal para o motorista esperar. Abriu o vidro do carro (não tinha vidro elétrico). Nos demos a mão e em seguida lhe disse, bêbado: “Zé, o PSDB é uma peste neoliberal…” José Dirceu concordou. Completei: “Mas o PT está se tornando uma praga”.

Relatei então a experiência que tive como professor na prefeitura de Belo Horizonte, sob a administração do PT. Destaquei a fortuna que estavam gastando com as campanhas eleitorais, referindo-me especialmente a do então candidato à prefeitura de Vitória, João Coser. Disse que isso sim era uma praga e perguntei-lhe em seguida: “Zé, você acha que a elite econômico-midiática, sócia minoritária do imperialismo americano, vai bajular vocês apenas porque estão cada vez mais parecidos com eles? Eles jamais aceitarão vocês na Casa Grande. Na primeira encruzilhada, como abutres, devorarão, sem piedade, a vocês todos.”

José Dirceu muito educadamente respondeu: “Nós vamos consertar…” O motorista finalmente acelerou o carro. Alguns meses depois as denúncias de compra de parlamentares pelo governo Lula, para apoiar uma reforma neoliberal da Previdência Social, estourou no mundo midiático brasileiro, sempre protagonizadas pela TV Globo, essa filial agregada do imperialismo americano no coração das classes médias brasileiras.

Os bastidores são o próprio poder

O todo poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, mais que o próprio Lula, era o centro das denúncias. Usando a tática do ministro da Propaganda do Reich alemão, Joseph Goebbel, as corporações midiáticas brasileiras transformaram as denúncias no assunto do dia, das semanas, dos meses, dos anos, até chegar à atual condenação, nove anos depois, pelo Supremo Tribunal Federal, do próprio José Dirceu, de José Genoíno, então presidente do PT, e dos demais representantes da cúpula petista nacional, além de parlamentares da base aliada, dentre outros.

Voltemos à descrição da cena anterior. Final de 2004. Um comício para prefeito de Vitória, capital do Espírito Santo. Lula e demais líderes petistas, além do próprio candidato a prefeito, João Coser, no palanque. José Dirceu, por sua vez, aguardando tudo, pacientemente, nos bastidores. Uma verdadeira eminência parda. Abordo-o escondido no banco de trás de um carro. Questiono-o. Ele responde: “Vamos consertar.” O que significa estar nos bastidores, nesse caso? O que significa “Vamos consertar, como resposta de um homem especializado nos bastidores do poder?” O que, num contexto neoliberal, pode ser definido como bastidores do poder?

De minha parte, acredito na boa-fé de José Dirceu, quando disse “vamos consertar”. Claro que esse “vamos consertar” não tinha conteúdo revolucionário algum. No entanto, tinha uma intenção objetiva que dizia e diz respeito ao próprio lugar ocupado então pelo José Dirceu, no primeiro mandato de Lula: os bastidores do poder. Estes, os bastidores do poder, são o próprio poder. Se um partido ganha uma eleição para presidência de um país, isso não significa, como bem o sabemos, tomar o poder. O poder não é algo que se toma e ponto final, pela evidente razão de que é sempre plural. Existem poderes, forças em disputa pela riqueza nacional.

Derrotar Dirceu era derrotar o PT

Os banqueiros ainda hoje são, também objetivamente, a principal força político-econômica dos bastidores. Eles roubam quase a metade do PIB brasileiro. Em torno dos banqueiros, portanto, outras forças estão agregadas, como as da oligarquia midiática, a serviço, em primeira instância, como fiel agregada, dos banqueiros, especialmente de Wall Street. De qualquer forma, o importante aqui é: José Dirceu foi o alvo principal das denúncias do Mensalão e está na cadeia neste momento porque era o homens das forças ocultas do poder no primeiro mandado de Lula.

A intenção, por mínima que seja, de modificar o arranjo interno dos bastidores do poder brasileiro, representado antes de tudo pelo poder dos bancos, das corporações midiáticas, das multinacionais, principalmente das americanas, da plutocracia, enfim, na relação com os interesses dos trabalhadores, pôs em risco o próprio poder dessas forças. Derrotar logo José Dirceu, nesse contexto, foi uma forma de continuar com o poder mesmo através de um partido que emergiu como oposição em relação a essas forças todas, as mais racionarias, as mais direitistas, motivo pelo qual a questão delas naquela época e hoje é uma só: como não estar diretamente no poder, sob o ponto de vista da representação, e continuar com o poder de fato, abocanhando efetivamente o PIB nacional?

José Dirceu encarnou e encarna como nenhum outro (talvez apenas como o próprio Lula) a ala do PT conhecida como articulação. Ele foi e é um articulador de forças de bastidores, o verdadeiro inconsciente do poder. José Dirceu e Lula são como a cara e a coroa de uma moeda. Lula tornou-se um exímio articulador de forças no movimento sindical, como negociador direto entre os interesses dos trabalhadores, principalmente os da indústria automotriz, e os interesses dos patrões. José Dirceu, por sua vez, uma vez criado o Partido dos Trabalhadores, tornou-se o articulador do PT com os bastidores dos poderes do mundo do trabalho, do mundo empresarial, do mundo midiático, agrário, corporativo. Derrotá-lo era uma questão de, estrategicamente, derrotar o próprio PT por dentro, articulando os bastidores do PT no lugar do próprio PT.

Onde o PT está perdendo a batalha

É aí que o PT, para permanecer no poder, tem obtido as mais fragorosas derrotas, já com José Dirceu e principalmente após sua saída de cena através de sua criminalização, a partir da junção golpista do poder judiciário com o poder midiático, a serviço antes de tudo do imperialismo americano, que não admite nenhuma articulação de bastidores que não seja a sua própria, uma vez que os Estados Unidos são a verdadeira eminência parda, ainda, do capitalismo mundial – logo do Brasil.

Quando, portanto, José Dirceu me respondeu, “vamos consertar”, imagino que tenha querido dizer: “Serei de fato o articulador que sempre fui, doravante, uma vez que outras forças têm articulado em meu lugar. Tenho a intenção de assumir realmente o remo dos bastidores do poder”, razão suficiente para destituí-lo.

É nesse sentido que a criminalização de José Dirceu e companhia pode ser entendida como uma luta implacável pelos bastidores do poder no Brasil, uma forma das forças de direita continuar pressionando o governo federal, mesmo através de um partido que não os representa diretamente, por princípio absoluto. Se a luta pelos bastidores do poder é também a luta pelo comando do poder judiciário, do poder bancário, do poder midiático, produtivo, e mesmo do poder militar e de polícia, é aí que o PT está perdendo a batalha. Com o objetivo de continuar no comando do poder executivo, não assumiu como poderia a gestão política desses setores fundamentais da sociedade.

Experiência acumulada

Nada fez para democratizar o criminoso monopólio midiático.

Nada fez para formar um quadro jurídico mais comprometido com o país no plano do Ministério Público, formado por procuradores, no geral, que atuam como verdadeiros agregados do poder midiático e do imperialismo americano.

Nada fez para mudar radicalmente o perfil dos juízes do Supremo Tribunal Federal, tendo indicado juízes, a exemplo de Joaquim Barbosa, nitidamente comprometidos com o que tem de pior nos bastidores do poder nacional e internacional, não sendo circunstancial que Joaquim Barbosa, indicado por Lula para ocupar o Supremo Tribunal Federal, tenha comprado, em 2012, através de uma operação em tudo ilegal, um apartamento em Miami no valor de um milhão de reais, embora tenha efetivamente pago apenas 10 mil reais. Seria necessário perguntar, a respeito: o apartamento comprado é parte da recompensa pelo papel que tem desempenhado no Mensalão, outro nome para e pela a luta pelos bastidores do poder no Brasil?

De igual forma, o PT nada ou pouquíssimo tem feito para mudar o perfil dos militares brasileiros, que seguem ainda orientações do Tio Sam. A mesma situação ocorre com a polícia Federal, treinada pelo FBI, não sendo circunstancial que numa recente greve por melhores salários, os policiais federais, em Brasília, tenham se apresentado fantasiados de Halloween, evidenciando caricaturalmente uma nítida alienação em relação a questões geopolíticas fundamentais para a soberania do Brasil.

Isso não significa que a dimensão articuladora do PT tenha acabado. O Partido dos Trabalhadores não sabe fazer política sem articular. O lado bom disso tudo, que ainda distingue o PT de seus concorrentes diretos, Aécio Neves, pelo PSDB, Eduardo Campos e Marina Silva, pelo PSB, tem paradoxalmente relação direta com a experiência articuladora que o PT acumulou nos sindicatos e como partido no poder.

Agregador por natureza

Embora fora de qualquer pretensão pós-capitalista, é através dessa experiência articuladora que o PT mantém relações tanto com a Venezuela, com Cuba, com Irã, China, Rússia, Bolívia, Equador, Argentina, países da África, mas também com Colômbia, com Peru, com México e Estados Unidos.

No plano interno, por sua vez, é igualmente por meio de sua plasticidade articuladora que o PT, nos mandatos de Lula e no atual, de Dilma Rousseff, tem efetivamente realizado uma distribuição de renda, ainda que mínima (não nos esqueçamos, os ladrões do PIB brasileiro são os banqueiros), a favor dos mais pobres do Brasil, ainda que sem colaborar minimamente para a pedagógica politização desse segmento majoritário da sociedade brasileira – outro dos erros crassos do PT.

De qualquer forma, tudo isso é suficientemente herético para atiçar a fúria de nossa extrema direita, agregada direta de banqueiros locais e estrangeiros, das corporações midiáticas e do imperialismo americano.

Tudo isso faz emergir o desejo de sangue contra o PT; desejo levado efetivamente a cabo através do golpe jurídico-midiático que prendeu em regime fechado (foram condenados em regime semiaberto), em pleno feriado do dia da República, 15 de novembro último, José Dirceu e especialmente o doente José Genoíno, que precisa, para continuar vivo, de cuidados médicos especiais que uma cadeia, principalmente de regime fechado, não tem condições de fornecer – claro sem esquecer dos demais que também foram presos.

É essa pretensão de articular afirmativamente dentro do sistema de agregados do regime neoliberal, que supõe o fim da luta de classes, que paradoxalmente torna o PT um avanço em relação a outras forças políticas que disputam majoritariamente o poder do Estado brasileiro. O lado articulador do PT, é necessário dizer, é agregador por natureza e, assim sendo, multiplica forças agregadas, o que é menos mal que reduzi-las. É assim que o PT diminuiu a onipresença do poder americano no Brasil. É assim que articulou com Hugo Chávez, com as forças mais à esquerda, portanto, da América Latina, com Evo Morales, Rafael Correa.

Ideal racista

É assim que o Brasil está no Brics.

É claro que isso não basta. É claro que temos que ir além do PT. É claro que Dilma Rousseff, com seu perfil classe mediano, é ainda mais ingênua que Lula em relação à luta pela hegemonia do Estado, partindo mesmo pela formação de quadros comprometidos com a soberania nacional nos poderes judiciários, legislativos, militares, midiáticos, culturais, assim como no plano da educação, tomado, como na era de Fernando Henrique Cardoso, por perfis que, no geral, não têm relação alguma com o destino do povo brasileiro, bastando ver como funcionam as agências de fomento como a Capes e o CNPq, as quais, não obstante estarem obtendo um aporte de recurso como nunca visto, por absoluta falta de relação de destino com o povo simples, repassam esses recursos, na prática, para professores e pesquisadores que acreditam que a luta de classes nunca existiu, sendo coisa de anacrônicos esquerdistas; professores e pesquisadores que não têm relação real com o público, bastando ver, para confirmar tal informação, onde colocam seus filhos para estudar: na rede privada mais cara e mais americanizada.

Diante desse quadro, qual a posição das chamadas esquerdas radicais? Antes de responder a essa questão, é preciso dizer com todas as letras que elas também não estão fora do sistema de captura da cultura neoliberal que tomou o Brasil. Elas também fazem parte do país dos agregados de agregados de agregados, mesmo que retoricamente ainda afirmem a atualidade da luta de classes.

A esse respeito, é sempre bom dialogar com a concepção de ideologia de Louis Althusser. Dialogando com o conceito de imaginário de Jacques Lacan, Althusser assim definiu ideologia: “A ideologia é a representação da relação imaginária do indivíduo com as suas condições reais de existência (ALTHUSSER, 1980, p.79)”. No contexto neoliberal em que vivemos, fundado na lógica dominante do agregado de agregado de agregado, cada vez mais nossa representação da relação imaginária supõe não nossas condições reais de existência, mas nossa difusa relação real de existência, no que acima chamei de classe social cinicamente difusa.

Tudo funciona como se não tivéssemos mais relações reais de existência, como se tudo pudesse ser de imaginário para imaginário: do imaginário de nossas autorrepresentações difusas de classe ao imaginário de nossas não menos difusas relações reais de existência. Pura tautologia baseada num ideal, bem entendido, tecnológico de pureza – ideal nazista e, portanto, profundamente racista.

Esforço concentrado

Esse ideal tem nome: o corporativo sistema midiático planetário. Seu principal objetivo é um só: ocupar a linha de frente na produção de uma humanidade que funcione de imaginário a imaginário, que não tem relação alguma com o simbólico e muito menos com o real, em termos lacanianos. Em termos freudianos, o sistema midiático corporativo, investido do desafio de produzir uma humanidade que vive de imaginários, destitui de vez da face da terra qualquer princípio de realidade tendo em vista a unidimensionalidade absoluta de uma realidade apenas: a do dinheiro, esse Deus da forma-mercadoria que, sendo a mercadoria-mor, rende-nos a um único imaginário: ao imaginário de compra/venda no qual e através toda realidade possível é a infernal realidade em que vivemos: a de quem pode e quem não pode comprar, embora, no plano imaginário do sistema midiático internacional, todos sim podemos – you can!

O colonial Brasil, portanto, dos agregados dos agregados dos agregados constitui o verdadeiro projeto neoliberal para o mundo todo, nosso principal produto exportador. O papel das corporações midiáticas nesse cenário é um só, nesse sentido: produzir uma humanidade de agregados de agregados de agregados, de imaginário para imaginário, tal que o que tenderemos a desejar (basta ser sincero e desejar profundo) nada mais é ou será que o agregado-mor, o agregado agregante: o dinheiro.

É nesse cenário que podemos dizer que o racismo acabou, assim como é nele ou a partir dele que podemos dizer que as favelas não são condições degradantes de moradia, absolutamente inaceitáveis, mas estilizadas ou imaginárias mercadorias destinadas a desejar com mansões, fora de qualquer projeto de justiça coletiva. É por isso que na atualidade nosso esforço teórico e prático deve se concentrar na tarefa de sair do imaginário; de sair da representação e autorrepresentação que o sistema midiático internacional nos tem condenado.

Invasões imperialistas

Uma forma talvez de realizar esse difícil exercício é fazendo perguntas que tenham como referência as condições reais de existência do povo brasileiro, do mais abandonado deles, sem direito a, por exemplo, uma escola pública de qualidade, porque, essa é uma das nossas grandes hipocrisias, o Estado brasileiro, com o apoio das classes médias, financia a educação privada através de duas pontas orçamentárias, a saber: 1. A ponta do contribuinte que ao colocar seu filho ou seu tutelado numa escola privada (a mesma situação vale para o campo da saúde), tem direito de 15% de restituição de imposto de renda; 2. A ponta do empresário da educação, que inventa toda sorte de estratégia para não pagar impostos.

Se somarmos uma ponta com a outra, entenderemos porque e como o Estado brasileiro financia a exclusão a partir de dentro. Sob esse ponto de vista, parece ser uma pergunta moralista, mas é necessário que seja feita: onde a esquerda, com condições financeiras mínimas, coloca seus filhos, na rede privada, distanciando-se do povo comum, ou na rede pública, aproximando-os da população abandonada à própria sorte?

Na minha experiência pessoal, inclusive de professor do Ensino Fundamental, raramente vi setores medianos da esquerda, inclusive de professores, assumir a partir da própria carne, a dimensão comum, por exemplo, colocando seus filhos em escolas públicas. Igualmente desconfio muito de uma esquerda, como é o caso do PSTU e do PSOL absolutamente míope sob o ponto de vista geopolítico e que vociferou abertamente contra Hugo Chávez, acusando-o de populista e traidor, a ponto de uma de suas candidatas à Presidência da República, Heloísa Helena, berrar diante das câmeras da TV Globo: “Se ganhar, combaterei pessoalmente Hugo Chávez!”

Essa mesma esquerda, sempre purista, como se não estivesse igualmente no miolo das contradições da atualidade, é a que tem apoiado a invasão imperialista à Líbia e mais recentemente a da Síria e certamente apoiaria ou apoiará a do Irã ou a de qualquer país que as mídias corporativas decretarem a existência de um ditador e de magnânimos revolucionários que o combatem.

Instante nazista

Por todo isso, temos sim que ir além do PT, mas antes temos que ir além de nossos neoliberais interesses e imaginários míopes equívocos ideológicos, porque, com todo o seu insuportável pragmatismo, o PT, principalmente no âmbito federal, tem mantido um fundamental distanciamento dos Estados Unidos, compartilhado expectativas comuns com países mais insubordinados da América Latina, além de ter trabalhado diretamente para a produção de uma humanidade multipolar, ainda que no interior do capitalismo e ainda que a serviço de uma não menos imaginária, porque inexistente, classe empresarial genuinamente brasileira – outro de seus erros crassos que Dilma Rousseff insiste em praticar.

É preciso sim ir além do PT, mas nunca aquém. Temos que ser suficientemente responsáveis para continuar caminhando rumo a uma sociedade socialista tendo clareza que estaremos mais distantes dela se retrocedermos, com ressentimentos, com posições revolucionárias midiaticamente imaginárias, colaborando para colocar no poder agentes políticos absolutamente submetidos aos Estados Unidos e, portanto, à agenda imperialista de um mundo unipolar.

Nessa altura do campeonato, a luta para um mundo multipolar é a única a partir da qual poderemos (através de melhores condições de correlações de força nacionais e internacionais), aproveitando as brechas, construir efetivamente uma sociedade pós-capitalista e pós-burguesa.

Todo delírio que não tem clareza em relação aos reais perigos que nos cercam, não passa de representação imaginária e romântica de uma orgânica e homogênea classe revolucionária absolutamente inexistente na atualidade.

Com a exceção da experiência política de Venezuela, que tem preparado, dos bastidores de suas contradições internas, como em nenhum lugar do mundo, essa revolucionária classe – assim como, fora de qualquer imaginário midiático alheio a qualquer princípio de realidade, com exceção também de Cuba e, pasmem, de Coreia do Norte e ainda com exceção de todos os que não reduzimos nossos imaginários ao imaginário sem classes de um mundo de fantasias baseadas, magicamente, num puro nazista instante de pli-pli.

Tão nazista que, pli-pli, fingindo não ser racista, seduz, induz, conduz um despótico juiz negro a condenar e a prender não os atuais “brancos” guerrilheiros José Dirceu e José Genoíno, mas aos imaginários guerrilheiros que podem, como suspeitos por terem sido, continuar sendo, como se tivesse realizando antes de tudo justiça étnica, sem saber, mas sabendo, como um bom traidor da causa negra, que o verdadeiro nazismo atual, o mais racista que se possa imaginar, inscreve-se na pureza tecnológica de um sistema midiático sem mundos porque oligárquicos, porque absolutamente isento de o real do povo.

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo