Estamos diante da perda da amizade e da experiência da vida política e dos valores éticos, morais e humanos. Os laços afetivos que unem os homens e uma sociedade têm importância fundamental na constituição e na harmonia da vida em comunidade. A perda destes valores tem como consequências a barbárie. Gostei das ideias expostas pela filósofa Olgária Matos em um Café Filosófico. Esta reflete sobre os valores humanos ligados á sociabilidade humana, e como a perca e o rompimento dos valores destes valores na atual sociedade de consumo, onde tudo é objeto de troca, inclusive a vida humana impactam a vida em sociedade.
Numa análise filosófica é possível vislumbrarmos que retrocedemos dos valores da amizade e com isso, o retrocedemos no campo político. A ética, a morada humana enquanto espaço mais que físico, mas um espaço relacional ligado á política, à direitos e a responsabilidades. A palavra ética foi utilizada pela primeira vez na tradição ocidental, por Homero, e este aplicava-lhe o sentido de morada humana, lócus do habitat e do modus operandis do homem. Daí a ideia de ética enquanto caráter adquirido. Aristóteles vai tratar da questão da propensão do homem para o bem e para o mal. A propensão poderá ser natural e social. No caso do espetáculo da violência praticadas por praticantes de UFC é, em parte um instinto humano, que já está na natureza humana, e em parte é um reforço da mídia. A filia é a responsável pela formação do caráter humano, formação do caráter moderado do homem grego e deveria ser o formador do homem em qualquer espaço e tempo. Formando um caráter moderado do homem, não seria de praxes acontecer atos de selvageria num estádio de futebol. Pela amizade, a polis se reuniria e se extroverteria num espaço comum constituindo o direito de todos a usufruir do espaço comum com o direito às suas opções pessoais de forma racional e harmonioso. Em um espaços pautados por valores éticos, as pessoas se entretêm; nos espaços carentes de ética, as pessoas se entretemem. Porque o que marca um espaço aético é a razão da força, não a força da razão. Numa sociedade onde a mídia exalta a selvageria, as pessoas se entretemem, não se entretêm. O que tem me chamado a atenção é ver a Rede Globo condenar aquilo que ela expõe efusivamente como objeto de consumo de massa, como o UFC.
Transvaloração de valores
Para que haja paz em uma sociedade, não pode haver apologia da razão da força em detrimento da força da razão. Para que haja paz em uma sociedade é necessário uma educação que forme o homem de forma coletiva, é necessário que haja leis justas, é necessário que haja homens virtuosos munidos de sapiência, O mais elevado conhecimento das coisas mais elevadas. O grau mais alto do conhecimento, isto é, o mais seguro e o mais completo; tem por objetivo as coisas mais altas e sublimes, isto é, as coisas divinas. Assim, a concórdia reinará na cidade e a harmonia entre os pares e o homem consegue estar bem com o outro e consigo mesmo. Quando isto não acontece, ainda estamos ou regressamos aos instintos mais primitivos e selvagens. Ou seja, voltamos a viver como os porcos.
A ideia de amizade é indissociável da ideia de liberdade. Uma sociedade pautada pela ideia do consumo e da troca é uma sociedade cuja ideia de amizade deu lugar à ideia de inimizade. Que experiência temos de um tempo pautado pelo medo e pela violência e perca da amizade?
O que estamos vivendo hoje é o tempo sem experiência da amizade e da política. O tempo sem a experiência da amizade, do amor, da solidariedade e da justiça é um tempo de barbárie total. Infelizmente estamos vivendo o tempo enquanto ausência de convivência na construção de um projeto político comum. Perdemos a noção de tempo enquanto algo que prepara o homem para a cidade. Na sociedade do consumo e da troca, do fetiche e da ideologia da razão da força em detrimento da força da razão, a noção que se tem é que não temos tempo para a vivência e para a militância política e intelectual. Daí o silêncio dos intelectuais. Estamos vivendo a noção de um devir vazio, de uma desvalorização da vida. Estamos vivendo na contramão do que Nietzsche propunha, uma transvaloração dos valores. Estamos vivendo a desvalorização dos valores. Há um vazio humano no ar, há um mal estar, há o medo, a insegurança frente à barbárie; nas ruas, nas casas de shows, nos estádios de futebol, no lar diante da violência doméstica.
Desvalor e a barbárie
A experiência nas grandes metrópoles são despersonalizadas e despersonalizantes. Nunca estivemos tão avançados tecnologicamente e vivendo um status quo, presos à condição instintiva e tecno-humano. Perdemos o sentido da vida enquanto experiência, a condição de ser metafísico e de transcendência. A experiência humana deve transcender ao nicho do mero consumidor e biológico.
Sofremos um impacto da sociedade do sem valor, ou do valor de troca. Nesta sociedade, os atos mais brutais são exibidos midiaticamente como objeto de consumo e de troca, onde o que mais interessa é o lucro e o ibope de determinado canal de televisão e de tabloides sensacionalistas. Estamos absorvendo o sensacionalismo provocado nos octógonos, nos lares e nas ruas. É o preenchimento de um tempo vazio de sentido, um niilismo profundo que afeta a sociedade em geral e tem reflexo nos estádios de futebol.
Tenho acompanhado perplexo a mídia brasileira exaltar uma marca que exibe selvageria. O que eu classifico como selvageria, a mídia chama de esporte. Estou me referindo a uma nova modalidade de lutas medieva, o redito do gládio romano, o UFC. Fato é que, após superexposição desta modalidade na mídia, a violência em saídas de casas noturnas, nas escolas, em estádios e nas ruas de maneira geral aumentou muito. Se olharmos bem para os movimentos dos agressores no estádio em Joinville-SC, eles repetem ipsis litteris todos os movimentos e ações feitos pelos lutadores de UFC. Recentemente presenciei uma briga de duas garotas na escola, e as mesmas também agiam tal qual os lutadores de UFC. Mas a mídia tornou a brutalidade e a violência uma marca e um marketing que dá muito lucro. Eu estava vendo a chamada publicitária anunciando uma rinha de UFC, e um lutador erguia o outro de cabeça para baixo e arremessava o adversário com sua cabeça contra o solo. É muita violência! Até quando vamos viver o desvalor e a barbárie? O que estamos vivenciando é uma questão de princípios.
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José Valmir Dantas de Andrade é filósofo e educador; atualmente á professor de filosofia na Seduc-AM