Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A função fálica do dinheiro e a polícia midiática

No livro Kafka, por uma literatura menor (1975) de Gilles Deleuze e Félix Guattari, existe um capítulo que merece ser retomado especialmente porque nele é possível ler a proposta de uma estrutura edípica que recocheteia na triangular família patriarcal, com mamãe, papai e filhinho, precisamente para nos mostrar que esta pode ser gradativamente dilatada até chegar à humanidade toda.

A humanidade inteira como Complexo de Édipo de si mesma pode ser melhor visualizada com uma simples troca de posição simbólica, a saber: o pai do triângulo edípico familiar pode ser, no plano social, o patrão, que pode ser uma autoridade qualquer, que pode ser o poder corporativo ou o Ocidente, a ordem, a força, a polícia, as hierarquias ou, ainda, Deus, este conjunto vazio disputado por todos os poderes constituídos, mesmo aqueles que se apresentam como laicos e que tomam, no interior do capitalismo, a forma geral do dinheiro.

O dinheiro é, sob esse ponto de vista, o Deus conjunto vazio que torna tudo familiar e que, portanto, torna a humanidade familiar a si mesma de uma forma ao mesmo tempo patriarcal, oligarca, divina, policial. O dinheiro é a polícia do mundo, o que quer dizer que ele se constitui, na civilização burguesa planetária, como um superpai, o verdadeiro soberano.

Premissas básicas

Se, por sua vez, admitirmos que o dinheiro é o verdadeiro soberano do sistema mundo e se, conforme Carl Schmitt (1922), “o soberano é aquele que decide o estado de exceção”, é perfeitamente possível deduzir que o dinheiro é o soberano que decide o estado de exceção da civilização burguesa planetária, o que significa dizer que é ele que decide o perfil da humanidade como familiar a si mesma, tendo em vista a seguinte premissa: ser familiar a si mesma é estar submetida à ordem simbólica mundial do dinheiro; é viver o dinheiro como a linguagem por excelência, a que devemos desejar para, através dela, aprendermos a falar.

Se, em conformidade com a psicanálise lacaniana, aprender a falar constitui ao mesmo tempo um ritual de iniciação ao mundo simbólico, o dinheiro é a ordem simbólica por excelência, a verdadeira língua do mundo; lugar a partir do qual, portanto, alcançamos o imaginário, produzindo a nossa imagem de nós mesmos como seres que devemos nos mirar no espelho do dinheiro, doravante o verdadeiro suporte de nossa autoimagem, o espelho d’água onde, como Narciso, nos vemos e nos imaginamos, vivendo, no mundo.

Tendo em vista os argumentos explicitados, proponho as seguintes premissas para este artigo:

1. O dinheiro, como o soberano da civilização burguesa planetária, decide sobre a ordem simbólica igualmente planetária;

2. No atual estágio parasitário/bárbaro da civilização burguesa, no qual a forma dinheiro corresponde a mais de 20 vezes a economia real, como nunca a verdadeira dicotomia que atravessa e sequestra a humanidade se inscreve na relação entre o abstrato/transcendental e o concreto/imanente;

3. O polo abstrato/transcendente dessa dicotomia constitui-se como um sistema familiarista planetário de tal modo que só faz parte da família humana quem se encontra nele;

4. A maioria esmagadora da humanidade (e também dos outros seres vivos do planeta) se encontra condenada à dimensão concreta desse polo, motivo pelo qual não existe;

5. A relação de não existência da maioria da humanidade (sempre considerando os não humanos) é inversamente proporcional à relação dinheiro/economia real: quanto mais aquela se sobrepõe a esta, mais a humanidade é/será refém da barbárie edípica/ familiarista dos endinheirados.

O povo não existe

É nesse sentido que é possível, em convergência com Deleuze/Guattari, engordar Édipo. A família edípica humana é a da abstração/transcendência do dinheiro e sua estrutura triangular, em equivalência à do papai/mamãe/filhinho, é: dinheiro (pai simbólico), parasitismo sem lastro na vida concreta (celeste mãe imaginária) e vida de todo o mundo, cotidiana, aviltada, humilhada e assassinada pelo significante absoluto, total: o dinheiro.

Se, para Lacan, no Seminário 7, (1959) “A Coisa é aquilo que, do Real”, padece do significante”, ela é antes de tudo os condenados da Terra, a própria Terra como concreta dimensão coisificada que sem padecer, é padecida, sem estar doente, é adoentada, capturada; é parasitada pelo significante da forma dinheiro e seu micrológico e reificado falo: as mercadorias que circulam o planeta todo. Assim como, no Seminário XX (1975), o significante, sendo homem, decreta, como soberano, a não existência da mulher, assim o significante dinheiro soberanamente declara em todos os lugares do mundo realmente existente sua sentença fálica: o mundo Real da Coisa-povo não existe quanto mais o povo-Coisa for o Real fora do significante dinheiro.

Na era neoliberal em que vivemos, o povo existente é aquele que é capturado pela função fálica do dinheiro, no dinheiro, motivo suficiente para sustentar o argumento de que o povo efetivamente não existe, uma vez que, no capitalismo, o povo é sempre sem dinheiro. É por isso que é possível dizer que o povo existente, tal como a mulher na psicanálise de Lacan, é povo policiado pela função fálica, condenado, portanto, a ser eternamente não existente quanto mais aceite ser capturado pelo dinheiro.

Um arranjo de dois déspotas

A função fálica por excelência, portanto, é a do dinheiro. Embora todo e qualquer dinheiro se inscreva, em cada lugar do mundo, como significante de referência, soberano a decidir, de forma imanente, nosso destino, sua expressão mundial é esta: petrodólar: a verdadeira polícia do mundo.

E, por falar em polícia, em O desentendimento (1995), o filósofo francês, Jacques Rancière, colocou em polos opostos a política e a polícia, num contexto em esta se constitui como aquilo que impede aquela. É por isso que em tudo há política ou polícia, no saber, no amor, na arte, na ciência, no cotidiano, na relação entre países, na amizade, na informação. A função fálica que “permite” a existência do povo, sob esse ponto de vista, pode ser definida com função policial e tem como principal objetivo fazer com que o povo não seja um povo político, capaz de se inventar e autoinventar, sem cessar, despoliciando o mundo e, nesse sentido, a si mesmo e a tudo.

No Brasil e na maior parte da América Latina, o principal bastião policial contra o povo-coisa, povo despoliciando-se, ocorre a partir do arranjo golpista entre o sistema midiático corporativo e o poder judiciário. Ambos se articularam com um único e unidimensional objetivo: evitar que o povo se politize e, se politizando, abandone, em devir, a função despótica do falo dinheiro, a partir mesmo do abandono do petrodólar.

Sob esse ponto de vista, mesmo que fosse verdade, é absolutamente ridícula a alegação de que o chamado Mensalão foi um julgamento contra a corrupção na política, a não ser se levarmos em conta a ambiguidade inscrita no coração da expressão, “corrupção política”, pois, sob o ponto de vista da função fálica do dinheiro, a política sim é e será sempre corrupta. Por mais que o PT tenha errado, por mais que tenha se endireitado, por mais que tenha se corrompido, o julgamento do Mensalão se constitui como um arranjo de dois déspotas, a serviço do petrodólar, principalmente na América Latina: o poder judiciário e o midiático.

Aumento dos juros e fim da PEC 37

Sob a liderança despótica do sistema midiático corporativo, o poder judiciário, na América Latina, está sendo convocado a criminalizar qualquer mínimo vestígio ou risco de um povo coisa política. É aqui precisamente que as forças de esquerda estão perdendo de braçada, pois acreditam ainda ingenuamente em praças públicas, num contexto tecnológico de uma humanidade midiática no qual a verdadeira praça pública tornou-se virtual e está totalmente sendo editada por oligarquias a serviço do dinheiro, do falo petrodólar, de tal sorte (ou azar) a fabricar um povo policiado, autopoliciado.

Acreditar no romantismo das ruas nos tem tornado muito vulneráveis por dois motivos básicos e intercambiáveis: 1) o poder midiático nacional e internacional impo(em) a versão que quer(em) das manifestações de rua. É precisamente essa versão editada em conformidade com um projeto fascista de policiamento geral do povo que tem prevalecido e prevalece, bastando que observemos os clichês que circulam em torno da chamada Primavera Árabe e também os efetivos resultados das manifestações de junho em Brasil; 2) se enchemos as ruas com cem, duzentos, um milhão de pessoas, o poder midiático imporá a versão que quer e multiplicará a sua versão editada do povo na rua por milhões e até por bilhões, se tivermos como referência o sistema midiático internacional.

No caso do Brasil, qual foi o resultado efetivo das manifestações junho? Aumento dos juros e fim da chamada PEC 37, proposta de emenda constitucional que tinha como objetivo diminuir o poder de decisão policial do Ministério Público brasileiro, basicamente constituído por procuradores que diligentemente tem atuado como polícia da política. O fim da PEC 37, defendida pelos manifestantes nas ruas do Brasil, foi o que prevaleceu como agenda das manifestações precisamente porque o sistema midiático brasileiro capturou essa agenda pressionando em seguida o parlamento para que decretasse o seu arquivamento.

A política no lugar da polícia

Outro aspecto também que pode ser visto como resultado efetivo das manifestações de junho foi o aumento dos juros, que sanguessuga a economia brasileira de forma absolutamente parasitária, uma vez que quase a metade de nosso PIB é destinada ao sistema financeiro. A presidente Dilma, antes das manifestações de junho, estava peitando a chamada autonomia do Banco Central, impondo a agenda de diminuição processual dos juros. Após junho, não casualmente os juros começaram a subir novamente, sem cessar.

Duas forças policiais, portanto, estavam nas ruas do Brasil, como fantasmas, assombrando os manifestantes: o sistema midiático e os banqueiros e foram elas que impuseram seus interesses objetivos vinculados ao poder de polícia sobre o povo. O grande desafio revolucionário da liberdade de expressão da atualidade é este: ocupar as praças midiáticas, inclusive a internet, exigindo que o povo coisa, o povo política seja mundialmente editado tendo em vista versões comunicativas que se oponham radicalmente às versões comprometidas com o policiamento do povo.

A batalha pela liberação dos povos, portanto, dá-se no campo das versões. Existe uma versão política das demandas populares que está não apenas sendo sequestrada pelo policiamento midiático nacional e mundial, mas carnavalizada, parodiada, ridicularizada. Estamos na obrigação de ter consciência de que a luta de classes hoje ocorre no campo das versões de povo que o povo recebe goela abaixo, num contexto planetário em que a versão policial se impõe de forma monumental.

Como sempre, trata-se de luta de classes. Sua singularidade contemporânea se deve ao seu deslocamento para o campo midiático das versões de povo. Tragicamente, as esquerdas, que deviam se comprometer com a política do povo, no povo, contra toda polícia contra o povo ou no povo, parece não ter clareza desse cenário, pois, quando muito, transforma a luta midiática das versões de povo em batalha secundária, tecida na superestrutura e/ ou dimensão imaginária. Ou ocupamos o sistema midiático mundial, politizando-o contra todo poder de polícia, ou perderemos todas as batalhas, sucessivamente, rumo a uma civilização toda política porque tecida e entretecida pelo povo todo político.

Essa civilização toda política é o verdadeiro lugar do Real lacaniano e seu realmente revolucionário devir coisa tem o seguinte nome não simbolizável: comunismo. É contra o Real comunista do povo coisa que as forças de polícia da atualidade, com clareza, atuam. Estamos, pois, condenados a sermos atuais, se quisermos ser a política no lugar da polícia!

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo