Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte(1852), Marx produziu esse argumento lapidar: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia e a segunda como farsa.”
Podemos descolar esse conhecido argumento de Marx de seu contexto para alçá-la à seguinte perspectiva: 1)a história é trágica porque, num mundo de opressores e oprimidos, tudo é trágico; 2) a história é uma farsa porque, num mundo de opressores e oprimidos, tudo se repete sem cessar como história de opressores e de oprimidos, de forma absolutamente farsesca; 3) a história de opressores e oprimidos é ao mesmo tempo trágica e farsante.
Como história trágica e farsante, ao humano restam duas saídas: 1) repetir a farsa sem fim de sua tragédia fundada na relação entre opressor e oprimido, tornando-se eterno refém da dimensão a priori, do passado trágico da dominação de homens sobre homens; 2) ou afirmar coletivamente outra história, fora da relação entre opressor e oprimido, logo fora da tragédia e da farsa; logo fora da dimensão a priori, logo através da afirmação da dimensão a posteriori.
Tudo vira farsa
Em cada época histórica, portanto, o que está em jogo é a vitória do antes, do a priori , produzindo o presente como eterna farsa trágica do que tem sido ou a luta para se safar da farsa de seu próprio presente histórico através da afirmação coletiva do devir, da dimensão a posteriori, do que não existe, o que não é nada fácil precisamente porque sempre partirmos do que existe, a dimensão a priori, a tragédia, para medir o que não existe, sendo que o que não existe só é reconhecido a priori se for a farsa do que existiu, no contexto em que tudo o mais será desqualificado, desacreditado, impossibilitado.
Produzir história afirmando o que não existe, portanto, é apostar no impossível, assim considerado sob o ponto de vista daquilo que cada época elege como farsa credível, logo como tragédia aceitável, naturalizada. Cada presente histórico, compreendido como a tragédia da relação entre opressor e oprimido, possui a sua própria farsa, a saber: sua dimensão a priori, que nada mais é que a ideologia da classe dominante a se impor, como referência absoluta, em todos os planos da vida, inviabilizando a dimensão a posteriori; o futuro.
Curiosamente, a nossa época pode ser definida através do jogo inverso que realiza com a relação entre a tragédia e a farsa, pois o nosso presente histórico transformou o passado humano numa farsa e com ele produz um presente absolutamente trágico. Para realizar esse prodígio, as tecnologias de poder de nosso presente histórico realizam o seguinte procedimento: transforma o trágico passado em farsa, de modo que tudo vira farsa, para em seguida produzir um presente que é a própria farsa como tragédia ou a tragédia como farsa.
O burguês era a tragédia encarnada
Tudo funciona como uma dialética às avessas: a tese (a tragédia de um passado de opressores e oprimidos), no confronto com a sua antítese (um presente como farsa do passado trágico), produz a seguinte síntese: um presente trágico porque só consegue reproduzir o passado como farsa, inviabilizando o futuro, a dimensão a posteriori fundada numa verdadeira dialética: aquela a partir da qual o presente seja a antítese para o passado de tal maneira a tornar-se uma futura síntese de uma civilização sem opressores e sem oprimidos.
Com isso quero dizer que vivemos num presente que é todo o passado humano como farsa, como a priori farsesco, razão pela qual a nossa tragédia é: nada de novo é possível, a civilização burguesa é eterna e tudo é um imenso ao mesmo tempo agora do que foi como tragédia “do não existe nada a fazer senão repetir-nos tragicamente como farsa de nós mesmos.”
Se a tragédia, nos termos do teórico Raymond Williams (1921-1988), constitui-se como um arranjo de instituições e convenções, a principal instituição trágica da civilização burguesa é: a propriedade privada, sendo esta que produz as convenções farsescas nas quais e das quais vivemos. É precisamente aí que encontramos um sutil deslocamento farsesco na atualidade neoliberal em que vivemos, como estratégia de dominação planetária dos detentores dos meios de produção, qual seja: os burgueses somos todos nós. Se, pois, o burguês, como o rosto da classe dominante do capitalismo, era a própria tragédia encarnada, hoje por sua vez ele foi transformado em farsa através da seguinte crença: o oprimido, aquele que não detém o meio de produção, também é burguês. Eis a farsa.
Simples assim!
Um casamento feliz e golpista
Para manter essa farsa que é a própria tragédia só existe um meio: o controle planetário dos meios de comunicação, esse lugar sagrado da religião da propriedade privada de nossa atual época, não sendo circunstancial que qualquer país que queira, com soberania, produzir um sistema midiático sem controle oligárquico será inevitavelmente acusado de autoritário, de despótico, de populista.
Essa premissa, a de que os meios de comunicação devem ser a propriedade privada de oligarcas, constitui a farsesca tragédia de nossa época e não admite qualquer democratização a posteriori precisamente porque ela é principal tecnologia de poder da civilização burguesa na atualidade.
É, pois, através do sistema midiático oligárquico que a tragédia da história humana vira uma infinita farsa no presente de tal modo que a farsa se torna a própria tragédia: a tragédia de uma humanidade em que tudo vira farsa, inclusive a luta que a humanidade travou para sair de sua condenação à dimensão a priori a fim de alcançar a dimensão a posteriori de uma humanidade sem opressor e sem oprimido. Através do controle oligárquico dos meios de comunicação, tudo vira farsa que é a própria tragédia. A justiça vira farsa, sendo a própria tragédia. A política vira farsa sendo a própria tragédia. O burguês vira farsa e nós somos a sua própria tragédia. O casamento feliz e golpista, portanto, entre o poder judiciário brasileiro e o poder midiático nada mais é que uma farsa, que é antes de tudo o lugar de nossa tragédia.
Uma rendição ignominiosa ao plim-plim
Joaquim Barbosa não realiza justiça, não é o seu papel: ele realiza farsa de justiça a fim de colaborar com a seguinte tragédia: a miséria eterna do povo brasileiro, condenado a priori a estar submetido ao colonizador de plantão – Portugal, quanto éramos colônia dos portugueses; Inglaterra, quando éramos colônia dos ingleses; Estados Unidos, porque somos colônia dos americanos. Joaquim Barbosa, portanto, em conluio com o sistema midiático oligárquico (cujo nome próprio são as Organizações Globo) não passa de uma farsa a serviço da tragédia da dominação americana no Brasil, na América Latina, no mundo.
Nesse contexto, o julgamento do mensalão só poderia mesmo ser uma tragédia, tornada farsa pelos meios de comunicação oligárquicos, para novamente se transformar numa tragédia: a cadeia para os petistas, embora, é bom que se diga com todas as letras: a tragédia é a dos petistas, que vivenciaram a farsa de um julgamento de exceção, mas é também e antes de tudo a tragédia dos brasileiros pobres, condenados a um mundo inóspito no qual ao pobre só cabem dois destinos: a farsa de sua humilhação ou a tragédia de sua prisão infecta, absolutamente inumana.
A principal farsesca lição da tragédia que se abateu sobre José Genuíno, José Dirceu e Delúbio Soares (claro que sobre os demais condenados, embora estes tenham sido condenados apenas para imprimir um mínimo de verossimilhança à farsa do julgamento do mensalão) é: “Dilma, não ouse realizar política verdadeira, que é a política não como farsa a serviço da tragédia, mas a política como afirmação da dimensão a posteriori. Logo a serviço de um Brasil não colonizado, digno, altivo, apto para produzir seu próprio futuro.” A punição trágica de José Genuíno, de José Dirceu e Delúbio Soares, a trindade petista, é pois um recado para o que existe de dimensão a posteriori no PT. Sua palavra de ordem é: “PT, renda-se à dimensão a priori. Entregue o Brasil aos colonizadores!”
Não tenhamos dúvidas, portanto: o oligárquico sistema midiático brasileiro, sócio subserviente do sistema midiático oligárquico americano, é o nosso principal inimigo porque sem exceção nos transforma em farsa, independente de quem somos ou sejamos. Ou democratizamos o oligárquico sistema midiático brasileiro, retirando o estatuto de sua oligárquica propriedade privada (é uma concessão pública) ou reproduziremos sem cessar a nossa trágica história de povo submetido, escravizado, colonizado, ainda que, de forma farsesca, como sempre, acreditemos que somos livres. A propósito, não nos esqueçamos jamais, este é o papel da mídia corporativa: transformar a nossa tentativa, como povos, de sair da tragédia colonizada, em farsa de nossa rendição ignominiosa ao plim-plim, sorrindo como idiotas, quando muito, com o nosso não menos farsesco desejo trágico de um minuto de fama.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo