O que significa assumir todas as consequências do argumento de que somos, os humanos, seres que fazem a sua própria história?
Para uma primeira possibilidade de resposta para essa questão, recorro a Marx, o de 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852), no qual assim o autor de O capital (1867) se expressa a respeito: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob a circunstância de sua escolha, mas sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, a fim de representar, com essa venerável roupagem, as novas cenas da história mundial.”
Para o Marx de o 18 de Brumário de Luís Bonaparte, portanto, os homens produzem seu próprio devir, como sujeitos históricos, mas não de forma livre, uma vez que “vestem” o futuro com os estilos, pantomimas, o peso, enfim, da herança do que fizemos e principalmente do como fizemos o que está feito e pretende perseverar no presente a partir mesmo dos atores deste.
Uma séria questão emerge da leitura de Marx: a produção histórica do que não existe só será possível através de uma dialética com o passado, donde seja possível concluir que ou sim somos livres produtores de nossa história ou não somos: 1) livres se partimos da premissa de que o passado humano é múltiplo de modo que não estamos condenados a eleger, por exemplo, os acontecimentos trágicos de Roma Antiga; 2) não somos de fato livres porque não temos liberdade para eleger o passado que nos referenciará, no presente: aquele constitui um acúmulo de despojos que desemboca inevitavelmente neste.
Ficções presunçosas e autoritárias
É evidente que a leitura de Marx, ao menos no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, sobre as condições do devir histórico humano, é tributária de uma perspectiva ao mesmo tempo determinista e eurocêntrica porque pressupõe que a histórica humana constitui a história das grandes civilizações, incluindo obviamente a da Europa burguesa, na suposição de que esta é sequência e consequência daquela, de forma mnemonicamente (para não dizer belicamente ou culturalmente) determinada.
De minha parte, opto pela primeira opção: somos livres para produzir o futuro tendo em vista uma igual liberdade para eleger o passado que nos inspirará, num contexto em que essas duas eleições simultâneas se fazem fundamentais para a produção de um verdadeiro devir histórico, digno do seguinte nome tão desgastado em épocas atuais, a saber: acontecimento revolucionário, razão suficiente para assim defini-lo: um evento histórico revolucionário se constitui através da liberdade que a humanidade coletivamente tem para produzir seu próprio destino, tendo em vista a eleição solidária e inspiradora de acontecimentos igualmente revolucionários protagonizados por diferentes grupos humanos por todos os lados e rincões deste planeta.
Como um objetivo deste artigo é o de dotar de dignidade o termo revolução sem, no entanto, isolá-lo do mundo, abstraindo-o do cotidiano, penso que a melhor forma de fazê-lo será por meio da realização de um intenso diálogo com conceito de evento, desenvolvido pelo filósofo francês, Alain Badiou, na contramão do ceticismo e do niilismo de setores acadêmicos contemporâneos que destituíram de seus referenciais de pesquisa e reflexão categorias fundamentais como as de sujeito, de verdade e universalidade, alegando, na melhor das hipóteses, que tais termos são ficções presunçosas e autoritárias apropriadas para justificar a dominação de um grupo humano sobre os demais.
Os mortos do passado persistem nos vivos do presente
Embora verossímeis tais argumentos ignoram que categorias como as de sujeito, verdade e universalidade são extremamente importantes para coletividades humanas oprimidas, pela evidente razão de que elas não poderão articular nenhuma mudança histórica realmente coletiva se as abandonam em nome de particularidades identitárias ou subjetivas. Como tudo o mais, a verdade e a universalidade necessitam de um sujeito coletivo histórico que lute não apenas para destituir a apropriação étnica, de gênero de classe delas, mas também e antes de tudo para se inscrever nelas, como verdade e universalidade do gênero humano, sem prejuízo das particularidades. Imaginem a propósito se tivéssemos como referência de luta no atual presente histórico a constituição de uma cidadania planetária. Pois não é essa a cidadania que nos interessa? Não será ela mais importante do que nunca, principalmente considerando a catástrofe de uma hecatombe ecológica nas portas da falsa universalidade do progresso?
É para se contrapor ao niilismo contemporâneo que Alain Badiou desenvolveu uma filosofia em que coloca no centro de suas preocupações precisamente o sujeito, a verdade e a universalidade, pois sabe que é preciso evitar o pior: as universalidades (na verdade falsas universalidades) do dinheiro, do progresso, da mercadoria, da mais-valia, da concentração de poder, as quais convivem muito bem com as particularidades subjetivas do mundo contemporâneo, que tendem a se render a elas a fim de se afirmarem historicamente, perdendo com isso o horizonte da luta comum, universal, como precondição da liberdade coletiva humana.
Advém daí o esforço que Alain Badiou articulou e tem articulado para desenvolver, divulgar e contextualizar o conceito de evento, pedra de toque de sua filosofia. Em O ser e o evento (1996), Alain Badiou define evento como um sítio histórico que a si mesmo produz seu próprio devir, sendo fundamental, para tanto, que se constitua como um altra-um em relação à conta por um de uma estrutura, razão pela qual esta, uma estrutura, nada mais é que uma multiplicidade contada como um (1), portadora de uma causalidade própria. Como exemplo, voltemos à leitura que Marx propôs sobre a condição histórica do homem. A interpretação de Marx, fundada no argumento de que os mortos do passado persistem nos vivos do presente, só é possível tendo em vista a conta por um (1) de uma estrutura, qual seja: a da modernidade burguesa europeia entendida como herança progressiva (para não dizer fatal) das grandes civilizações do passado, principalmente a grega e a romana.
O evento é indecidível
Essa concepção eurocêntrica do devir histórico é um exemplo do que venha a ser uma estrutura, nesse caso contada por um (1) porque a multiplicidade que ela inscreve, a dos personagens, fatos históricos, avanços tecnológicos, línguas, saberes, culturas, tipos humanos, considerando a história da Grécia e Roma antigas, da Idade Média, Moderna, até chegar aos tempos atuais, é literalmente contada como um: o um (1) da modernidade eurocêntrica, sua estrutura interna implicada portanto com uma causalidade típica, descrita por Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, como causalidade de um passado específico, especialmente o de Roma antiga, que teria fornecido a roupagem cenográfica para o teatro dos acontecimentos da civilização burguesa ocidental, como, por exemplo, a Revolução Francesa de 1789, embora seja importante dar crédito a Marx argumentando que seu pensamento não era precisamente o da conta por um da civilização burguesa. Ele simplesmente, e de forma imanente, partiu dela, da civilização burguesa, de sua conta por um (1), para propor uma resposta revolucionária, um evento tal que, de forma universal, o mundo operário, uma vez consciente de seu protagonismo histórico, destituiria de vez a conta por um (1) das relações de poder da civilização burguesa, substituindo-a pela conta aberta de uma sociedade sem classes.
Diferentemente da conta por um de uma estrutura, o evento, na perspectiva de Alain Badiou, constitui-se como ultra-um seja porque não advém de uma causalidade estrutural, seja porque, fora de todo saber instituído, produz sua própria multiplicidade nunca contada por um e, portanto, supranumerária, precisamente porque não parte ou partiria dos termos da causalidade estrutural, de vez que cria seus próprios múltiplos, inscrevendo-se como verdade, entendida como a verdade do que não existe na estrutura (por exemplo, uma sociedade sem classes), mas que passaria a existir como evento cujo suporte, sempre histórico, dá-se através de quatro tipos de sujeito: o sujeito arte, o sujeito amor, o sujeito ciência, o sujeito político.
A arte, o amor, a ciência e a política, portanto, constituem-se como sujeitos de eventos, logo como ultra-uns de estruturas predeterminadas, contadas como um (1). Para Alain Badiou, a grande história não existe ou só existe como estrutura, múltiplos contados como um (1), razão pela qual o evento, sítio histórico, é sempre local.
Tendo em vista que um evento se constitui como um ultra-um de uma dada estrutura, esta jamais o admitirá ou o assinalará como relevante, possível, razão pela qual o desqualificará sempre que o evento emergir aqui e ali, num determinado sítio histórico. É por isso que não podemos dizer com garantia que um dado acontecimento arte, amor, político, científico sejam eventos. Sob o ponto de vista de uma estrutura, o evento é, pois, indecidível.
A metaestrutura imperialista
É precisamente porque não se constituíram como indecidíveis que as manifestações de junho último não podem ser consideradas um evento, argumento aparentemente facilmente desqualificável porque o que nos dizem normalmente sobre elas ( inclusive o próprio Alain Badiou) é que foram indecidíveis pois a estrutura petista de governança, contada como um (1) múltiplo político-administrativo pós-neoliberal ( pelo menos em termos), ainda que melhor que a estrutura doutrinariamente neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, constitui-se, ainda assim, como uma estrutura, razão pela qual, estruturados como estão, os petistas jamais admitirão que em junho de 2013 o Brasil produziu um evento político absolutamente indecidível.
Para me contrapor a esse último argumento, retomo o primeiro traço de um evento: o sítio histórico. Um evento é sempre local, embora tenha vocação universal. No entanto, ainda que seja a verdade de um sítio histórico, qualquer evento do mundo contemporâneo não pode ignorar a conta por um (1) estruturante e estrutural do imperialismo em sua versão americana, ocidental, pois esta, pelo menos desde à Segunda Guerra Mundial, desenvolveu e tem desenvolvido sem cessar uma intensa e incansável tecnologia de dominação da humanidade tendo como objetivo principal transformar em conta por um ( uma estrutura das estruturas, uma metaestrutura) todas as outras estruturas de poder do mundo, sejam as do passado, sejam as do presente, tornando-as simultâneas e onipresentes, tendo em vista interesses táticos e estratégicos específicos.
Sob esse ponto de vista, jamais podemos nos esquecer de que uma estrutura se define como a conta por um (1) de múltiplos e que, portanto, a metaestrutura imperialista americana-ocidental não negligenciaria ou negligenciará a multiplicidade revolucionária das ruas, protagonista de importantes transformações históricas no decorrer da modernidade, incluindo nosso atual presente histórico, se tivermos em conta (nunca por 1), por exemplo, os primeiros levantes populares antineoliberais latinoamericanos, em Venezuela, ainda na década de 90, que levou ao poder o inacreditável Hugo Chávez (fenômeno universal, um evento do mundo atual); de Bolívia e Equador, no início deste milênio; ou até mesmo a presidência de Lula, no Brasil.
Principalmente com o objetivo de acabar com a ex-União Soviética e os regimes comunistas do leste europeu, ainda no contexto da guerra fria, a partir da década de 80 (e mesmo antes), a metaestrutura imperialista americana-ocidental levou adiante como nunca atividades golpistas através do estímulo às manifestações de rua, transformando-as em conta por um (1), em, portanto, estruturas tecidas e entretecidas por multiplicidades em rebelião, as quais, querendo ou não, foram capturadas para cumprir o objetivo principal de combate ao socialismo e ao comunismo.
A tecnologia de guerra
Essas falsas revoluções, no geral protagonizadas por setores médios de suas respectivas populações, levaram, por exemplo, ao desmembramento da República Socialista Federativa da Iugoslávia, através de intensas manifestações de rua que levaram à renúncia de Slobodan Milosevic, preso em 2001 e transformado, no período, no maior ditador da humanidade, tendo inclusive sido condenado pelo Tribunal Penal Internacional.
Em plena era Clinton (1993 a 2001), como presidente dos Estados Unidos, a Otan invadiu a República Federativa da Iugoslávia, em 1999, usando inclusive como tropas de guerra, no terreno, fundamentalistas islâmicos treinados pela CIA, responsáveis diretamente por agressões inomináveis contra a população (como estupros de crianças, genocídios étnicos, tal como ocorre hoje, por exemplo, na Síria), atribuindo a responsabilidade delas a Milosevic, o qual, não obstante não fosse um santo, foi caricaturado e acusado por muitos crimes orquestrados pelo imperialismo americano-ocidental.
Foi nesse período, portanto, que a metaestrutura do imperialismo americano-ocidental desenvolveu, como nunca, a tecnologia das falsas revoluções, conhecidas comumente como revoluções das cores – aqui me lembro do estilo índio verde e amarelo nos rostos de muitos manifestantes.
Depois das acusações de Edward Snowden, só sendo muito ingênuo para não deduzir até que ponto chegou, na atualidade, a tecnologia de guerra que usa e abusa das manifestações de rua, transformando-as em conta por um (1) a serviço dos interesses dos oligarcas do Ocidente.
O destaque favorável às manifestações
Se, portanto, um evento é um sítio histórico, ele não pode ignorar de forma alguma que o nosso atual sítio histórico é esse em que a metaestrutura imperialista americana-ocidental detém um poder enorme sobre as manifestações de rua, transformando-as facilmente em conta por um (1) de seus interesses táticos e estratégicos, sempre econômicos, oligárquicos. Isso não significa que as manifestações de rua sejam inviáveis. Tampouco significa que não tenhamos nossos próprios motivos para nos rebelarmos, seja no Brasil, seja na ex-União Soviética, na ex-Iuguslávia, ou na atual Síria, em Líbia ou mesmo nos Estados Unidos.
O que quero dizer é muito objetivo. Para se constituir como evento, qualquer manifestação de rua da atualidade deve partir de um sitio histórico em que a metaestrutura do imperialismo americano-ocidental seja colocada em xeque, de modo que seu ultra-um o seja antes de tudo em relação à conta por um das oligarquias do ocidente e do mundo, sendo igualmente um ultra-um para as corporações midiáticas que impõem a versão que querem dos acontecimentos que afetam a humanidade no contemporâneo, razão pela qual estas inevitavelmente recusarão qualquer evento verdadeiro.
Sob esse ponto de vista, não nos enganemos. Não é verdade que o sistema midiático brasileiro, com sua metaestrutura ancorada nas Organizações Globo, tenha resistido às manifestações de junho último, seja no início ou no seu decorrer. É tolice supor que os gestos caricaturais de Arnaldo Jabor, acusando os manifestantes de serem bárbaros, foi uma evidência de que a TV Globo estaria contra as manifestações. Essa informação é no mínimo ridícula, primeiro porque antes do Jabor, a Globo mesma estava dando amplo destaque favorável à manifestações, sem contar os outros veículos de comunicação, sinalizando claramente que eles estavam muito mais bem informados que nós todos, detendo inconfessáveis segredos que nós mesmos não conhecíamos e não conhecemos.
Ou será que seja mera coincidência que, no período, os jornais todos destacassem favoravelmente as manifestações, assim como as TVs, que as apoiaram em blocos, através de um Datena, um Marcelo Resende, um Danilo Gentilli, esse vetusto novo bárbaro, um Jô Soares, um Galvão Bueno, uma Fátima Bernardes, um Faustão e tantos outros e outras a destacarem que finalmente o “gigante havia acordado”?
O coelho na cartola
Um evento jamais será televisionado ou informado pelas mídias corporativas, pois estas são as metaestruturas das contas por um dos grupos de identidade do contemporâneo. Jamais farão a mínima concessão a qualquer evento verdadeiro, seja político, seja científico, seja amoroso, seja artístico.
De qualquer forma, o mais relevante no momento se inscreve na seguinte pergunta: o que eles sabem que nós desconhecemos, no que diz respeito às manifestações que deverão ocorrer em junho/julho deste ano, durante a Copa do Mundo do Brasil? O que colunistas como Diogo Mainardi, Eliana Cantanhêde, Reinaldo Azeredo, Guilherme Fiúza sabem que nós não sabemos? O que os faz vaticinar a vitória de Dilma Rousseff antecipadamente? Querem que pensemos que apoiam o governo, assim como Arnaldo Jabor quis que pensássemos que a TV Globo era contra as manifestações de junho? O que sabe a revista The Economist?
Se um editorial constitui-se como a versão ideológica de um veículo de informação, o seu posicionamento político-informativo, talvez seja o caso de admitirmos que saiba também dizer o que queremos ouvir de modo que nem sempre o que dizem seja o que pensam ou defendem efetivamente. De qualquer forma, uma coisa é certa: eles são bem informados. Sabem mais do que qualquer um de nós, talvez mesmo mais que sistema de inteligência (ou contrainteligência) do governo federal, com seus agentes normalmente treinados pela metaestrutura-mor: o imperialismo americano-ocidental. Eles sabem e têm este coelho na cartola: o destino manifesto da metaestrutura imperialista. Por isso planejam (e são planejados) para tirá-lo da cartola no momento preciso: a Copa do Mundo de 2014.
“Denunciando o desigual”
Os meios corporativos têm, portanto, esta missão estruturante: transformar as estruturas do mundo, tão presentes quanto antigas, em satélites da metaestrutura do imperialismo americano-ocidental. Por isso se sentem como Joaquim Barbosa, além do bem e do mal, e sambam enquanto contam por um (1) tudo que respira, pois são os sanguessugas de nossas infinitas possibilidades eventurais, abortadas por suas mafiosas edições e reedições letais da universal verdade dos povos: a estrelar aposta num futuro livre de opressão de classe, de gênero, étnica.
Como mortos que enterram os vivos, é a morte do evento revolucionário que eles nos vendem, como se viva múmia fosse, amarrados e cobertos que estamos pelos panos/planos antigos da edição despótica que nos inviabiliza desde remotas eras: a edição da história segundo o ponto de vista dos civilizados bárbaros de ontem e de hoje.
Um evento verdadeiro deixaria as múmias midiáticas se enterrarem, juntamente com a metaestrutura. Jamais carregaria palavras de ordem editadas ao gosto do freguês com a esperança de aparecer no Jornal Nacional.
Pelo contrário, um evento, digno do nome, saltaria os vivos das estruturadas covas editoriais oligarcas – que nos prendem, mumificam – desestruturando-as e apostando no futuro incontável de tudo que viceja, sempre “denunciando o desigual”, banqueiros, multinacionais, ricos e famosos, a fim de salvar o singular: a vulnerável vida terráquea.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor na Ufes