1. – Em História da sexualidade (1976), Michel Foucault (1926-1984) chamou de dispositivo de sexualidade o uso que a civilização burguesa fez e faz do sexo com o objetivo de produzir perfis humanos adaptados ao modelo produtivo do capitalismo. O dispositivo da sexualidade é responsável pela confecção da norma, que pode ser definida como a alma do negócio do lucro, da concentração de renda, dos donos do mundo. A alma do capital.
2. – O dispositivo da sexualidade não pressupõe a repressão sexual. Antes pelo contrário, ele estimula a afirmação das sexualidades, principalmente aquelas vistas e concebidas, ainda hoje, como desvios pelo padrão heterossexual, patriarcal, monogâmico. Ele é como a parábola do filho pródigo: interessa-se não exatamente pelo filho que fica com o pai, o normal, mas por aquele que vai para o mundo, que foge do padrão, que tem coragem de se aventurar e está disposto a enfrentar as intempéries da vida para produzir o seu futuro longe da norma paterna.
3. – O dispositivo da sexualidade, portanto, tem, antes que pelo crente (os que são considerados normais, previsíveis, aceitáveis, adaptados), interesse pelo insubordinado, o insubmisso, o diferente, a alteridade. Sua aplicação social, portanto, tem o seguinte objetivo: estabelecer a norma dos diferentes, domesticando-os.
4. – É um engano, pois, pensar que a norma se inscreva sempre no padrão heterossexual, branco, plutocrata, adulto, logocêntrico, patriarcal. Perante o dispositivo da sexualidade, as diferenças devem ser normatizadas, esquadrinhadas, capturadas. Para tanto, faz uso de tecnologias de poder/saber especializadas em estimular a confissão. Através desta, a diferença (em relação ao padrão sexual, étnico, de classe, epistemológico, geográfico) se diz e se afirma como diferença positiva, de tal modo que, se confessando como gay, mulher, negro, índio, favelado passe a se inscrever na norma da linguagem, da cultura, da economia, da sociedade, padronizando-se capitalisticamente.
5. – Um bom exemplo da armadilha confessional destinada aos diferentes, às alteridades, encontrei recentemente na inscrição de uma camisa de um instigante aluno do curso de História, um rapaz muito vivo, que viaja pelo mundo afora, de forma alternativa. Nela era possível ler: “L’Etat c’est moi”, conhecida frase atribuída ao rei absolutista francês Luis XIV (1638-1715). No contemporâneo, o dispositivo da sexualidade, para produzir a norma, tem exatamente este objetivo: tornar o alternativo um isolado sujeito-Estado individualizado, absolutista, normatizado. Uma feliz subjetividade estilizada que viaja o mundo todo carregando consigo a norma do Estado, orgulhoso de encarná-lo em si mesmo.
6. – As matrizes da indústria mundial de produção de subjetividades despojadas, alegres, afirmativas se encontram nas não menos autoconfessadas democracias ocidentais, principalmente tendo em vista os Estados Unidos, num primeiro plano produtivo; e alguns países europeus como filiais: Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, entre outros, até se estender pelas oligarquias e classes medias de todo o planeta. Essa indústria ilusionista fabrica narcísicos estilizados indivíduos alternativos, confiantes, alegres, coloridos, os quais, além de suas diferenças, confessam antes de tudo o seguinte: “O estado burguês das chamadas democracias ocidentais são eu, por isso me aventuro pelo mundo afora, seja fazendo turismo, seja fazendo guerra, usurpando riquezas, porque sou o senhor dos anéis, o colonizador performático e metamórfico do atual presente histórico.
7. – O dispositivo da sexualidade, ao produzir a norma da/na diferença, o faz de forma metonímica. O diferente confessado incorpora o espírito do Estado burguês oligárquico e, em nome deste, torna-se um absolutista estilizado e performático que carrega da diferença um ou alguns traços metonímicos, a parte pelo todo, como se fora apenas uma publicidade ambulante de alteridades capturadas, domesticadas. Obama, por exemplo, como estilizada normatizada alteridade negra, carrega desta o gingado, a dança dos passos, a plasticidade, o estilo jazzístico nas palavras, no discurso. À parte isso, é totalmente branco, ocidental e em si mesmo é possível ler: “L’Etat c’est moi”, advindo daí seu excesso de confiança, digamos, imperialista. A mesma situação ocorre com o presidente do STF, Joaquim Barbosa, o qual, da alteridade negra, estiliza-se na cor, porque em tudo o mais é branco, até mesmo e antes de tudo na performática seriedade.
8. – Toda essa digressão tem como finalidade descrever o perfil de um bufão, um capataz do imperialismo: Arnaldo Jabor, que se vale da sua biografia de cineasta, de homem do pensamento, da arte, como traços metonímicos da alteridade da cultura e da cultura como alteridade, tendo em vista antes de tudo as estilizadas democracias absolutistas do Ocidente, as quais transformaram a dimensão cultural em metonímia da liberdade de criação, num contexto em que se encarna em isolados sujeitos performáticos que se apresentam como livres para falar o que pensam, em nome do L’Etat c’est moi do imperialismo ocidental.
9. – A razão metonímica de Arnaldo Jabor se expressa pelo tom da voz, sempre desafiador, a enfrentar a câmara que o focaliza e pelos gestos operísticos de um rebelde, um performático revolucionário de esquerda, com suas mãos mexendo para lá e para cá, como se comandasse uma orquestra dodecafônica. Ele é pois um típico traidor: apropria-se das gestualidades estilizadas das esquerdas culturais, como as da Geração de 68, para se colocar no polo oposto: ser de direita, ultraconservador, a serviço das causas mais funestas do imperialismo ocidental. Ele afinal faz parte, na mídia brasileira, assim como um Lobão, um Faustão, um Luciano Huck, de um perfil humano normatizado pelo dispositivo da sexualidade e que, para além das gestualidades espalhafatosas, do jogo de cintura, das performances, não passam disto: de porra loucas reacionários.
10. – Esses perfis humanos no geral são o contrário do que aparentem ser, mesmo que o não saibam – o que faz parte do inconsciente fascista do jogo. Quanto mais perfumadamente femininos, mais machistas; quanto mais estilizados negros, mais brancos, no sentido etnocêntrico do termo; quanto mais teatralizam a emancipação corporal-sexual das esquerdas de maio de 68, mais são odiosamente antiesquerda, mais são bufões operísticos da extrema-direita, do imperialismo; quanto mais gentis, aristocráticos, civilizados, na forma, mais são bárbaros no conteúdo, nas escolhas efetivas que fazem; quanto mais leves e soltos, mais pesados, como bombas caindo do céu nas periferias do mundo; quanto mais ocidentalmente democráticos, mais são os verdadeiros terroristas, despóticos, genocidas; quanto mais divinizados, mais infernais.
11. – Arnaldo Jabor, em pessoa, funciona como um alto-golpe subjetivo: decretou o estado de sítio contra o corpo de sua diferença para ao fim e ao cabo apropriar-se de sua própria morte como emancipado, como esquerda, como livre, como libertário, como democrático, como artista, como alteridade, expressando-se como um zumbi rendido à norma do monumento à barbárie da sociedade burguesa, a saber: o dinheiro. Ele é simplesmente, pois, um vendido. Fez-se mercadoria. Embrulhou-se de livre-pensador, de despojado, de herdeiro horizontal da geração de 68, opondo-se a toda hierarquia, para ao fim e ao cabo ser simplesmente isto: um bufão de sua imagem global, um capataz do dólar, pronto para deitar o chicote contra as alteridades que ainda mantém, ainda que minimante, o desejo de liberar-se do jugo das ditaduras falsamente democráticas do Ocidente.
12. – Não é circunstancial que dele não poderíamos ouvir-ver senão isto: a exaltação/incitamento ao golpe militar no Brasil. Foi o que ele propôs no Jornal da Globo do último dia 16 de janeiro. Analisando o recente referendo constitucional no Egito, anuncia, gesticulando, aos quatro cantos: “Vitória dos militares contra a irmandade mulçumana”. Vitória, sigamos seu sinistro raciocínio, dos “laicos militares egípcios” contra os fanáticos. Conclusão a que chega: para o Ocidente democrático, perplexo em relação ao fanatismo supostamente endógeno dos muçulmanos, a melhor saída é: o golpe militar contra os fundamentalistas.
13. – Nenhuma palavra sobre a mais que provável hipótese de que Al Qaida foi planejada, treinada e financiada clandestinamente pela CIA. Nenhuma palavra em relação ao fato de que são os Estados Unidos e seus aliados que recrutam mercenários yihadistas e os utiliza laicamente para desestabilizar países soberanos, no geral os mais laicos daquela região, como Síria e Líbia, por exemplo. Nenhuma palavra para o fato de que, em 1979, a CIA, juntamente com o ISI, serviço de inteligência de Paquistão, realizou a maior operação clandestina de sua história, objetivando o seguinte: estimular o fundamentalismo religioso, a partir da yihad islâmica, a atacar com todas as armas, as laicas tropas soviéticas que no período se encontravam no Afeganistão com o objetivo de garantir a governabilidade laica do presidente Babrak Kamal contra golpes de estado financiados precisamente por Estados Unidos, que nunca respeitam decisão laicamente soberana de povo algum.
14. – Nenhuma palavra, portanto, para a seguinte informação: assim como o dispositivo de sexualidade serve, no Ocidente, para normatizar alteridades, com o objetivo de domesticá-las e vaciná-las contra a dimensão laica da vida; no Oriente o fundamentalismo islâmico se constitui como uma espécie de dispositivo religioso contra qualquer vestígio de perspectiva ou opção laica para o povo daquela região. Existe e é estimulado, pois, para atacar qualquer governo laico, acusando-o de atentar contra a Sharia, conjunto de leis do Corão, livro que narra a vida de profeta Maomé.
16. – O que Arnaldo Jabor não sabe e prefere não saber é que o fundamentalismo islâmico é taticamente apoiado, financiado e treinado pelas democracias oligárquicas do Ocidente com o objetivo exclusivo de atacar impiedosamente qualquer decisão laica do povo daquela região. O que Arnaldo Jabor não sabe e prefere não saber é que os Estados Unidos têm o exército egípcio em suas mãos, financiando-o, treinando-o e equipando-o militarmente para combater qualquer perspectiva laica do povo egípcio. O que Arnaldo Jabor não sabe e não quer saber é que a relação entre a perspectiva laica e oligárquica é uma contradição em si: não é possível ser laico e oligárquico ao mesmo tempo, razão pela qual, no Ocidente e no Oriente, lugares tomados por oligarquias, não existe verdadeiro poder laico.
17. – Voltemos para o outro lado da fala religiosamente laica de Arnaldo Jabor, esse yihadista da família Marinho. Não nos enganemos, a propósito. Tudo que ele disse sobre o exército egípcio não passa de um subterfúgio para dar o seu recado às forças armadas do Brasil. É, pois, para os milicos brasileiros que ele fala e conclama: “As democráticas plutocracias ocidentais preferem ver vocês no poder do que o risco de o começo de uma história laica no Brasil, neste momento protagonizado e domesticado pelo PT, podendo desandar com o tempo para a autoinvenção, no país, de um povo realmente laico, que ao fim e ao cabo terá condições de retirar o PT do poder para se colocar no poder, como o poder, democraticamente.
18. – É nesse contexto que se deve analisar a paranoia oligárquica em relação aos rolezinhos. Mais que negros e pardos, o que os define, como alteridades, é a marca de Caim de pobreza, de pobre, que eles trazem estampados no rosto, no corpo, no jeito, na roupa. O que assusta a plutocracia e as classes médias brasileiras, pois, é o futuro laico que neles se inscreve como possibilidade, num risco de um país em que eles poderão frequentar todos os espaços, todas as instituições, todos os poderes, situação a partir da qual não existirão mais oligarquias e através da qual seremos realmente um país democrático, digno exemplo multicultural para todo o planeta.
19. – O que fez alguns juízes de São Paulo e de Minas decretarem despoticamente a proibição dos rolezinhos nos shoppings, além de evidente defesa despótica a favor das oligarquias brasileiras e contra a democracia de um povo todo laico, a realizar o rolé que quiserem, inclusive no poder judiciário, é também o que habitualmente realiza a oligarquia midiática brasileira desde sempre: interditar o rolezinho do povo brasileiro, procurando de todas as formas evitar que venha para ficar, para se instalar no poder, para se empoderar.
20. – É por isso que, igualmente a todo custo, o que eles noticiam, comentam, editam, com relação ao PT, tem um único e exclusivo objetivo: fazer com o que o PT seja um mero poder rolezinho, de passagem, síndrome que tem sido o seu calcanhar Aquiles, não sendo circunstancial que ainda não tenha realizado uma mínima democratização da ditadura midiática brasileira, que ainda não tenha tido a coragem de dizer não aos banqueiros e que ainda não tenha verdadeiramente se empenhado para realizar uma verdadeira revolução no sistema de ensino, no acesso à moradia, à saúde, à justiça.
21. – O que, pois, eles querem do PT é que aja como rolezinho da Casa Grande, que por esta transite sem destroná-la, destituí-la, reverenciando-a como um bobo da corte, pois essa é a maneira mais fácil de enxotá-lo do poder, seja por decisão golpista do judiciário, seja por intervenção não menos golpista dos milicos das forças armadas, do poder parlamentar, midiático.
22. – A condenação dos petistas na Ação Penal 470, assim como os espetaculares golpes jurídico-midiáticos de Joaquim Barbosa contra a constituição brasileira, devem ser assim compreendidos: petistas, ousem se transformar em mais que rolezinhos abismados da Casa Grande e então eis o que os aguarda, como norma: cadeia, humilhação pública, cassetete.
23. – Da mesma forma que o dispositivo da sexualidade transforma tudo em norma, principalmente as diferenças, talvez não seja circunstancial que estejam sendo interditados e incriminados precisamente nos dois estados brasileiros de maior densidade eleitoral governados precisamente pelo PSDB.
24. – Assim como a repressão policial começou em São Paulo contra o Movimento Passe Livre, assim como o aumento da passagem de ônibus em São Paulo fora adiado para o mês da Copa das Confederações, em junho do ano passado, para provavelmente configurar-se como o estopim de tudo, talvez estejam empurrando os rolezinhos para as ruas com o seguinte objetivo: em junho deste ano, durante a Copa do Mundo, o que faltava nas manifestações do ano passado, pobres nas ruas do Brasil, precisa encontrar a sua normatização.
25. – Ao menos para o período da Copa do Mundo, eis a norma: pobres brasileiros expulsos dos shoppings, realizem seus rolezinhos nas ruas.
26. – Uma coisa é certa, se isso ocorrer, desta vez Arnaldo Jabor produzirá rolezinhos de comentários conclamando, exigindo, sem subterfúgios (de forma democraticamente fundamentalista), o seguinte: “Milicos do Brasil é a hora do golpe, pois os pobres não podem realizar rolezinhos de protestos nas ruas. O limite foi ultrapassado! Salvem-nos dos bárbaros laicos comunistas pobres antes que o PT ganhe mais uma eleição!”
27. Plim-plim!