1.
“Somos todos quem nos supusemos”, anuncia, em verso, Álvaro de Campos, heterônimo do poeta português, Fernando Pessoa, no poema “Pecado Original”, que assim começa: “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?/ Será essa, se alguém a escrever/A verdadeira história da Humanidade.” Se, parafraseando um verso do poema, somos quem falhamos ser, é preciso antes fazer duas singelas perguntas: por que estamos condenados a falhar? O que é falhar?
2.
À primeira pergunta, seria possível responder literalmente: estamos sim condenados a falhar e o estamos porque não podemos dilatar nossas potências expressivas em sociedades oligárquicas, limitadas pelo poder de soberanos. Estes, em diálogo com Schmitt, de Teologia Política (1922), assim podem ser definidos: “o soberano é aquele que decide o estado de exceção (SCHMITT, 2009, p.15)”, o que significa dizer que estamos condenados a falhar porque vivemos sob o signo de sociedades marcadas intrinsecamente pelo estado de exceção sobre o conjunto da humanidade, inclusive sobre os oligarcas ou mesmo sobre o soberano em pessoa, seja lá qual rosto assume numa época ou outra.
3.
Ainda que todos estejamos no interior de estados de exceção, independente se somos ricos ou pobres, brancos ou negros, homens ou mulheres,heterossexuais ou gays, ocidentais ou orientais, é necessário deixar claro: o estado de exceção sempre pesa antes de tudo nas costas das alteridades de classe, os pobres de modo geral; de gênero, as mulheres e as sexualidades não heterossexuais; étnicas, os negros, os pardos, os asiáticos, os latinos; as epistemológicas, as que não seguem o padrão de pensamento e o regime de valores do Ocidente e um sem número de outras.
4.
São, pois, as alteridades que estamos condenados a falhar, sendo quem nos supusemos, nunca o que somos ou poderemos ser, até a linha do horizonte. Não é preciso exercício algum de imaginação para saber o motivo pelo qual o estado de exceção, sendo para todos, o é antes de tudo para alteridades, pois são estas que sustentam as oligarquias, na relação inversa de suas diferenças inferiorizadas, razão suficiente para afirmar que o estado de exceção pesa sobre as mulheres, para que estas venham a garantir a mais-valia de gênero para os homens, assim como pesa sobre os negros, os índios, os asiáticos, os pardos para que estes e outros tantos inscrevam um poço sem fundo de uma mais-valia étnica para os brancos; assim igualmente valendo para os pobres que o são porque são literalmente roubados pelos os ricos.
5.
Existe, por outro lado, outro motivo, além do evidente acima expresso, para que o estado de exceção imponha o signo do fracasso ao conjunto da humanidade, e principalmente às alteridades. O psicanalista francês, Jacques Lacan, principalmente com o seu Seminário XX, mais, ainda (1972-1973), ofereceu-nos uma importante dica quando escreveu sobre a mulher: esta é, dizia Lacan, o não-todo em relação ao homem, que se apresenta como o próprio todo, logo como o soberano que decreta o estado de exceção sobre o não-todo ( as mulheres) porque a si mesmo se concebe como o todo.
6.
Aqui, portanto, emerge o perfil da figura do soberano e o motivo inconsciente por que se acha no direito divino de decretar o estado de exceção, impondo o fracasso como condição existencial e ontológica para as maiorias: o soberano sempre a si mesmo se concebe como o todo, o onipotente. A partir desse lugar fálico e despótico não apenas designa o lugar das alteridades como impotente e falhado, mas também impõe um jogo de cartas marcadas: o não-todo, as alteridades, deve buscar o todo, desejá-lo, reverenciá-lo, encarná-lo.
7.
Chega-se assim ao diálogo com a segunda pergunta deste ensaio: o que é falhar? Sob o ponto de vista do estado de exceção, falhar é não seguir o delírio do todo; é não buscá-lo, desejá-lo, reverenciá-lo, encarná-lo, teatralizá-lo, razão pela qual o êxito do estado de exceção dependerá sempre da coletiva busca pelo todo, principalmente considerando as alteridades. Estas alimentam o estado de exceção (antes de tudo sobre elas mesmas) quando buscam ser como o todo, o soberano.
8.
A partir desse último argumento, duas considerações emergem. A primeira é: o estado de exceção é geral e inclusive sobre as oligarquias simplesmente porque o delírio do todo é o que é, um delírio, porque não existe o todo. O ponto de vista do soberano, que é o do Todo, embora nos seja apresentado como o lugar do sucesso, constitui, na verdade, o lugar do fracasso inevitável, uma vez que nunca o alcançaremos. Quanto mais tentamos alcançá-lo mais nos condenamos ao fracasso coletivo. Mais nos matamos.
9.
A segunda consideração, por outro lado, é: falhar é buscar o Todo, desejá-lo, dramatizá-lo. A humanidade toda tem sido falhada porque tem buscado o Todo, que é o delírio do soberano: delírio de ser como Deus, o próprio Deus. Por isso mesmo, agora sob o ponto de vista do não-todo, (o ponto de vista das alteridades), é possível dizer: se não buscamos o Todo, não falhamos, o que equivale a dizer que, se não buscamos o Todo, seremos sim quem nos supusemos.
10.
E o que nos supusemos, sob o ponto de vista do não-todo? A resposta, por mais difícil que pareça, é simples: a eterna invenção de nós mesmos, fora de qualquer parâmetro baseado na figura do Todo, logo na figura do soberano, será o que nos supusemos.
11.
Para as alteridades, o pior dos mundos possíveis se inscreve na busca pelo Todo, pois tal busca alimenta o estado de exceção, que pesa antes de tudo sobre elas mesmas. Fora de qualquer lógica vitimária, querendo ou não, são as alteridades mesmas que alimentam o estado de exceção contra elas mesmas e o fazem sempre que buscam ser como o Todo, o soberano.
12.
É a partir desse último argumento que é possível definir a lógica do estado de exceção contemporâneo. Primeiro, ele é a própria civilização burguesa, que se apresenta como o Todo, o próprio fim da História. Segundo, o que define o estado de exceção da civilização burguesa ou esta como estado de exceção na atualidade é: colocar as alteridades do mundo sob a condição do fracasso coletivo de querer ser burguesa, ou como o burguês.
13.
Se o burguês, conforme Marx, pode ser definido como aquele que é proprietário dos meios de produção, este é seu lugar do Todo: a propriedade privada, razão pela qual o estado de exceção atual está intimamente relacionado à crença de que o indivíduo isolado ou a própria alteridade, isoladamente, possa ser a sua própria propriedade privada.
14.
E é precisamente disso que nos fala a publicidade do capital por todos os lados: seja você mesmo; seja diferente! O estado de exceção do contemporâneo realizou um giro curioso: ele funciona a partir, supostamente, do ponto de vista das alteridades isoladas ou divididas em grupos de identidade, o que significa dizer que ele dissimula recusar o Todo a partir da afirmação/reconhecimento do não-todo.
15.
A estratégia do estado de exceção do contemporâneo funciona como o personagem Senhor Smith do filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski. Não é circunstancial, a propósito, que o Senhor Smith seja o nome comum dado a todos os agentes do sistema, Matrix.
16.
Como é possível notar no próprio modo de vestir, terno e gravatas alinhados, óculos escuros, os senhores Smiths da série Matrix podem ser descritos como a encarnação do estado de exceção neoliberal. São os neocons, os agentes do sistema mundial rendido ao dólar, à especulação financeira, perfil que emergiu na era do presidente norte-americano, Ronald Reagan, razão suficiente para chamá-los de agentes da reaganomics, ou nova economia. São, pois, o próprio lugar do Todo a ser buscado, desejado, reverenciado, por todas as alteridades do mundo.
17.
O que importa, no entanto, no que diz respeito aos personagens senhores Smiths de Matrix não diz respeito apenas ao perfil deles, o todo encarnado, mas ao seguinte atributo: eles podem assumir qualquer perfil humano, tal como o diabo. O importante a assinalar, portanto, é: eles assumem sem cessar o perfil do não-todo, das alteridades.
18.
O atual estágio do estado de exceção planetário da civilização burguesa é este a partir do qual as alteridades do mundo estão capturadas pelos “senhores Smiths”, inscrevendo-se como seus principais agentes quanto mais se afirmam como alteridades isoladas, num contexto em que a civilização burguesa é a matrix, o Senhor Smith, o todo a decretar-nos o seguinte estado de exceção: alteridades do mundo, afirmem-se e se inventem dentro deste todo: a civilização burguesa. Seja a sua propriedade privada, um burguês, sendo você mesmo!
19.
Sem o controle das corporações midiática, inclusive da internet, a civilização burguesa atual não conseguiria impor o seu atual modelo de estado de exceção, que é este em que o soberano, o Senhor Smith, ocupa o lugar do não-todo: as alteridades de gênero, de classe, étnicas, linguísticas e um sem fim de outras. É por isso que o verdadeiro soberano do contemporâneo é a Indústria Cultural; são as corporações midiáticas; é também a Rede Mundial de Computadores, pois são o Todo, a própria civilização burguesa, dentro do qual produzimos a ilusão de expressar o horizonte sem fim de nosso não-todo, como acontece, por exemplo, nas redes sociais, nas quais nos expressamos “livremente”, como “não-todo” dentro do Todo, desejando ser reconhecido por esse Todo midiático, não sendo circunstancial, a propósito, que as redes sociais tenham se tornado um verdadeiro campo de batalha nas periferias do Brasil na atualidade, pois é através delas que os meninos e as meninas periféricos buscam fama realizando festas, disputando entre eles quem consegue mais reconhecimento, com números de seguidores, no Facebook.
20.
A criativa novela global Meu pedacinho do céu, de Benedito Ruy Barbosa, constitui uma demonstração interessante sobre o estado de exceção do Todo midiático, pois nela a alteridade linguística do interior do Brasil (se ainda existir) se expressa livremente em seu Todo, como literalmente um pedacinho de seu céu. Na verdade, de seu inferno.
21.
O jogo do estado de exceção contemporâneo é, pois, como sempre foi: entre o todo e o não-todo num contexto em que este deve seguir aquele. A diferença do atual, por outro lado, está na ilusão (fabricada ou editada) de que o Todo não existe (não existem os Senhores Smiths), de modo que podemos nos expressar livremente como não-todos, desde que, obviamente, dentro do Todo: a civilização burguesa.
22.
É esse cenário que explica o despotismo de um Joaquim Barbosa, como presidente do Supremo. O senhor Smith Joaquim Barbosa, o supremo, só impõe um estado de exceção covarde e impiedoso sobre José Dirceu e José Genoíno porque sabe que terá o apoio irrestrito do verdadeiro supremo soberano: o sistema midiático brasileiro e seu Senhor Smith-mor: a TV Globo.
23.
A propósito, como a questão tópica é a justiça, é possível pensá-la sempre sob dois pontos de vista: a justiça do Todo, sob o nome do estado de exceção sobre as alteridades; e a justiça do não-todo, a inventar-se fora do Todo. Tendo em vista essa descrição, o Poder Judiciário brasileiro (existem exceções), comparado com o Poder Legislativo e Executivo, é o mais rendido ao Todo midiático, à TV Globo, pois, agindo a partir do ponto de vista da justiça do Todo, sabe muito bem que o Todo é o Todo midiático, razão pela qual segue a pauta dele.
24.
O mesmo argumento serve para a Polícia Federal. Se o poder de polícia o é antes de tudo do e para o Todo e se este na atualidade é o Todo midiático da civilização burguesa, não é circunstancial que a Polícia Federal do Brasil, de modo geral, siga igualmente a pauta midiática da TV Globo.
25.
Para terminar, se o grande desafio de qualquer época histórica, para superar o estado de exceção imposto pelo Todo soberano se inscreve na invenção de outros mundos possíveis e impossíveis, fora do Todo soberano, só superaremos o estado de exceção atual se, com muita disciplina, seguirmos dois caminhos simultâneos: 1) expressar-nos como alteridades, logo como não-todo, inventando-nos fora do todo da civilização burguesa; 2) fora, portanto, da pauta das corporações midiáticas.
26.
Essa é razão pela qual não acredito nas manifestações de rua do Todo classe média (anticopa) no Brasil: elas seguem as pautas (Todo) midiáticas.
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Luís Eustáquio Soares é professor da Ufes, poeta, escritor e ensaísta