Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O golpe suave planetário e a indústria cultural do imperialismo

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Trançar um texto com as seguintes cabeleiras. Uma de Nietzsche. O último cristão morreu na cruz. Outra de Marx. A dialética de Hegel constitui um puto método, mas está de cabeça para baixo. Outra de Wittgenstein. Não existe outro lugar para buscar o sentido seja lá do que for senão no estado civil das contradições e no seu estado no mundo civil. Qualquer outra dimensão, para entender qualquer fenômeno, tenderá a se tornar mera especulação ou simplesmente uma deletéria metafísica.

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Através de Nietzsche e de Marx, considerar os seguintes conceitos: um de Deleuze e Guattari. A palavra de ordem, assim definida em Mil Platôs: a unidade mínima da linguagem não é o fonema, mas a palavra de ordem, que funciona como o parasita da língua, sendo tanto mais presente quanto mais supomos ausente. Está, pois, nas conversações tranquilas de trabalhadores usufruindo o sagrado direito às férias. Está no carinho de um pai burguês ao filho. Está no “eu te amo” de um casal apaixonado.

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Em sua infinita variação, uma palavra de ordem carrega em si sempre uma sentença morte.

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Através de Nietzsche e de Marx, considerar o que algures Félix Guattari designou como política existencial molar e política existencial molecular. A primeira se constitui por tudo aquilo que é ou se tornou institucional, fixado, normatizado ou simplesmente apanhado ou desejoso de ser capturável pelo Estado. A luta feminina pelo direito ao voto seria, sob esse ponto de vista, uma luta no plano da política existencial molar, assim como o direito ao aborto. Ambas são legítimas demandas apresentadas ao Estado. São, pois, molares. Uma política existencial molecular, por outro lado, emerge das bordas, não é previsível nem reconhecível pelo saber institucional. Não se fixa, por exemplo, no âmbito binário das divisões de gênero, homem e mulher; nem das divisões étnicas estabelecidas: branco, negro, índio, amarelo. Ser brasileiro, espanhol, venezuelano, americano, mulçumano, judeu, trabalhador, burguês e tudo o mais que se constitui como identidade, sob esse ponto de vista, seria molar. O molecular é sempre outra coisa de outra coisa em outra coisa.

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Através de Nietzsche e de Marx, pensar o conceito de genérico de Alain Badiou, tendo em vista o conturbado mundo contemporâneo. Para Badiou, o genérico é a condição intrínseca do evento. Constitui um furo no saber. É aquilo que não é no lugar daquilo que é. O genérico dilui o que é até o limite absurdo a partir do qual somos todos absolutamente iguais, isto é, genéricos. Reside aí, pois, a condição universal do genérico. Um exemplo: se não somos negros, brancos, homens, mulheres, gays, brasileiros, venezuelanos, burgueses, revolucionários, somos simplesmente iguais em nossas paradoxais singularidades genéricas.

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Uma vez apresentado o quadro teórico-metodológico deste ensaio, considerar a seguinte premissa: com Marx e Wittgenstein: o imperialismo ocidental-americano ou americano-ocidental atua produzindo uma humanidade de cabeça para baixo das seguintes formas: 1) podemos e devemos ser moleculares, genéricos, revolucionários, indefiníveis desde que a palavra de ordem que nos agita seja: não dar a importância devida ao imperialismo ocidental-americano porque é ou seria molar;2) lutar tendo em vista uma agenda molar contra a qual o mundo molecular genérico de uma humanidade de cabeça para baixo deva agir e, agindo, conceber-se, sempre de cabeça para baixo, como mais e mais molecular, pelo simples motivo de que acredita estar sendo molecular porque combate o plano existencial molar;3) o plano molar apresentado pelo imperialismo americano-ocidental, para os criativos moleculares genéricos revolucionários do mundo atual combaterem, constitui-se como fundamentadas ou fundamentalistas identidades nacionais, estatais, étnicas, de classe, de gênero, ideológicas, principalmente tendo em vista a divisão entre o religioso e o secular, entre esquerda e direita, entre democracia e ditadura, entre revolucionários e reformistas – desde que o plano molar ( profundamente molecular) do imperialismo americano-ocidental seja ou venha a ser colocado num plano secundário.

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Esse é o estado civil de nossas contradições e seu estado no mundo civil, na atualidade: uma humanidade molecular, de cabeça para baixo, combatendo a si mesma através da sentença de morte do imperialismo ocidental-americano, que parasitariamente, dita: seja revolucionário, seja genérico, seja secular, seja religioso, seja esquerda, seja direita, cacem ditadores ou ímpios, mas jamais perguntem ou centrem suas atenções em mim porque, se assim o fizerem se tornarão maniqueístas, anacrônicos, molares e, portanto, não serão o que devem ser, eternamente, orgulhosamente – de cabeça para baixo.

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Essa humanidade falsamente genérica, molecular, revolucionária, criativa, de cabeça para baixo, em relação ao imperialismo americano-ocidental, é produzida pela indústria cultural, tal como definida por Adorno e Horkheimer, em Dialética do esclarecimento: a indústria cultural é planetária e produz a cultura de um mundo que submete sem cessar o trabalho coletivo e a natureza.

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A indústria cultural molecular, revolucionária e genérica de cabeça para baixo, em relação ao imperialismo ocidental-americano, está esclarecida para impor-se sobre o trabalho coletivo e sobre a natureza acreditando, paradoxalmente, que libera a ambos, o trabalho e a natureza, das malhas ditatoriais do plano molar agendado pelo imperialismo ocidental-americano como o lugar da luta libertária, razão pela qual ocorre a partir de um cenário, sempre planetário, em que o teatro de guerra está ancorado em identidades molares, por mais que estas se veem como moleculares, principalmente considerando o embate entre esquerda e direita, fundamentalistas religiosos e subjetividades laicas, ditadores e democratas.

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Embora, pois, a indústria cultural se encarne em suportes midiático-tecnológicos do mundo da comunicação de massa, incluindo rádio, televisão, internet, cinema, suportes de papel, principalmente tendo em vista as corporações ou os conglomerados empresariais midiáticos, ela na verdade captura a humanidade molecular, genérica e revolucionária toda, colocando-a de cabeça para baixo ao apresentar-nos como reais sujeitos ficcionais de um mundo tramado pelo imperialismo americano-ocidental sem que coloquemos este como o foco principal – porque é assim que nos fazemos mais do que nunca “de cabeça para baixo”.

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Não é à-toa que o rentismo seja o nome comum dessa humanidade esclarecida para ser a palavra de ordem da trama do imperialismo ocidental-americano de uma humanidade que vive e luta para libertar-se dos planos molares nos quais e através dos quais o imperialismo americano-ocidental nunca tem a relevância que deve ter, sendo, quando muito, um plano entre outros.

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O domínio das finanças, no contemporâneo, é consequência direta de uma humanidade esclarecida para ficar de cabeça para baixo acreditando estar em pé, contra os molares planos estabelecidos pelo imperialismo ocidental-americano, pois é contra tudo que é produtivo, ou pode ser, que o imperialismo americano-ocidental atua, captura, toma, põe de cabeça para baixo.

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Assim como o mundo das finanças é o parasitismo por excelência do mundo da produção real, o imperialismo americano-ocidental constitui o parasita-mor do mundo produtivo das pessoas de carne e osso.

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Esse é o cenário, pois, do que temos designado como golpe suave, tendo em vista, por exemplo, o livro Da ditadura à democracia (1993) de Gene Sharp, que se tornou o cínico teórico medíocre das táticas e estratégias que o imperialismo americano-ocidental deve seguir para derrubar “suavemente” governos que não se submetem integralmente ao golpe da democracia dos bancos e dos oligarcas.

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O manual de “golpes suaves” de Gene Sharp constitui, se o lermos como é proposto, um desvio de atenção. Querem, através dele, que desloquemos nossa atenção para países que estão sob a mira do imperialismo americano-ocidental – para criticá-los, antes de tudo. Com isso, tendemos a não perceber algo que precede a tudo, que é: o “golpe suave” já vem sendo aplicado há algum tempo contra a humanidade toda e se dá colocando-nos de cabeça para baixo de tal maneira a nos tornarmos “esclarecidos” para lutar contra planos molares agendados pelo imperialismo americano-ocidental.

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O mundo atual é este em que a humanidade está tramada para aplicar “suaves golpes” contra si mesma, a partir do plano molecular falsamente genérico em que existimos – de cabeça para baixo.

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Assim como o parasitismo financeiro constitui uma variável fascista de nossa condição tramada como suave golpe de cabeça para baixo contra nós mesmos, a indústria cultural, agora entendida literalmente, constitui a pedra de toque para a realização do golpe suave, do qual somos ao mesmo tempo agentes e pacientes, contra a humanidade em seu conjunto.

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Uma radical democracia das corporações midiáticas internacionais nunca foi tão necessária. Só teremos condições de visualizá-la, de pé, a partir da constituição de uma cidadania planetária, pois o objetivo da ditadura midiática que captura a humanidade, sendo igualmente planetário, é este: colocar-nos em guerra contra nós mesmos deixando de lado o imperialismo americano-ocidental – sempre partindo da agenda estabelecida por este como um “suave golpe” em que nos metemos, odiando-nos, combatendo-nos, matando-nos.

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Ir às ruas, no contemporâneo, nunca foi tão urgente. Mas não nos iludamos. Por mais que nossas demandas sejam justas, elas não podem de forma alguma se tornar reféns da ditadura midiática internacional.

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Estamos na obrigação histórica de separar o joio do trigo, num mundo que nos confunde por todos os lados, tal que o trigo se torna o joio e este se torna o trigo. Para sair dessa confusão em que nos metemos, três premissas são fundamentais e devem estar nas ruas, sempre: 1) o imperialismo ocidental-americano é sim o principal inimigo da humanidade; 2) entender com clareza qual a sua agenda e como esta nos coloca de cabeça para baixo é a condição principal de nossas políticas existenciais molares e moleculares; 3) não são os governos, independente de seus perfis, que devem ser objetos táticos e estratégicos de nossas lutas, mas as corporações midiáticas nacionais e internacionais.

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Para título de exemplo, uma greve de professores não conseguirá nada (ou quase nada, que pode ser pior que nada) se estabelece uma interlocução direta com o prefeito, o governador ou o presidente da ocasião. Sua interlocução deve ser com a corporação midiática mais poderosa de seu entorno social.

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Ela é o verdadeiro prefeito, governador e presidente, porque fala em nome do imperialismo ocidental-americano e está na linha de frente para cobrar dos prefeitos, dos governadores e do presidente a seguinte subserviência: a humanidade rendida à financeirização da vida, via submissão integral ao imperialismo americano-ocidental.

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Esse é, pois, o estado civil de nossas contradições, no contemporâneo. Se não produzimos sentidos revolucionários a partir dele, seremos, quando muito, os últimos cristãos.

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Não sem muitas braçadas, morreremos nas cruzes das ondas marítimas dos altares do imperialismo ocidental-americano, como seus agentes laicos ou religiosos, se não sairmos desse mar de lama em que nos metemos e fomos metidos por nossos próprios desejos tr(amados).

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Nada menos adequado, para entender o contemporâneo, que os pós-modernos entusiasmados defensores das teorias de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Foucault, Alain Badiou. Como religiosos, estão sempre encontrando multiplicidades rizomáticas, subjetividades singulares, eventos e que tais nas tramas do imperialismo ocidental-americano – midiático rentista manto mortal sob o qual nos sufocamos nas ruas do mundo enquanto a oligarquia ocidental-americana comemora. Tim-Tim!

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Ufes