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O português Pedro Fernandes Sardinha, nascido em Évora em 1496, tornou-se, em 1551, o primeiro bispo brasileiro. Em 1556, foi capturado e, num ritual antropofágico, devorado pelos Caetés, que ignoraram suas ameaças de castigo eterno e o saborearam com alegria, ritualisticamente.
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374 anos depois, o banquete canibal dos índios Caetés inspirou o poeta e escritor modernista brasileiro, Oswald de Andrade (1890-1954), a escrever o Manifesto Antropófago (1928), no qual se encontra a proposição de uma fome antropofágica como uma espécie de conjunto vazio a partir do qual a formação do povo brasileiro se daria, sem cessar, a partir da ruminação antropofágica de tudo que a humanidade produziu, em todos os quadrantes. O brasileiro seria, sob esse ponto de vista, um estômago sem fundo que devoraria outros povos, outras culturas, formando-se ou deformando-se a partir da interação canibal com o mundo exterior.
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Essa interação canibal com os outros povos, como condição iconoclástica para a híbrida formação multicultural do povo brasileiro, deveria, no Manifesto Antropófago, assumir três configurações simultâneas: a saber: 1) ser pré-adâmica; 2) pré-escrita; 3) pré-cabral, donde seja possível deduzir que nossa fome antropofágica de povos e de cosmos se daria sob o signo da antecedência ao que comumente chamamos de civilizado, de histórico, de registrado, de legalizado, de instituído.
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Sob o ponto vista utópico de Oswald de Andrade, como eternos novos bárbaros, deveríamos ser antropofagicamente “contra as histórias do homem que começam no Cabo de Finisterra”, partindo sempre do “mundo não datado, não rubricado, sem Napoleão, sem César”, além de marcados pela “alegria como a prova dos nove”, transformando sem cessar os tabus em totem – isto é, as proibições civilizadas em transgressões adoradas.
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Antecipando às civilizações, devoraríamos a história dos homens, razão suficiente para nos colocarmos “contra a realidade social vestida e opressora, cadastrada por Freud”, inscrevendo, no seu lugar, “a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do Matriarcado de Pindorama”, pois “já tínhamos o comunismo” e, portanto, éramos, desde antes da História, o que esta deveria se propor, no melhor dos casos: ser a história dos iguais, através dos iguais, para os iguais, sempre igualmente.
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Com essa digressão antropofágica, com o objetivo de descrever o perfil das oligarquias do contemporâneo, este ensaio assume três premissas. A primeira é: Para os oprimidos de todos os matizes não existe erro mais atroz que o de supor que os poderes constituídos ou simplesmente que as forças de opressão oligárquicas sejam ou tenham o rosto do passado. Erramos de forma fatal quando partirmos da hipótese de que o perfil oligárquico seja a caricatura do que foi num tempo anterior. Os poderes dominantes estão no futuro a partir do presente, apropriando-se de todos os passados. O rosto oligárquico não se esboça no antes ou mesmo no agora, mas no amanhã. É o rosto que colonizou o futuro que desejamos, antecipando o que poderíamos ser se não estivéssemos impedidos por imposições oligárquicas.
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As oligarquias nos roubam antes de tudo o futuro e é assim que nos coloca na posição de desejá-las, pois, embora de forma farsante e mesmo caricatural, encarnam, no presente, o futuro que seríamos.
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A segunda premissa é: no contemporâneo, as oligarquias que dominam o planeta o fazem de forma antropofágica, devorando-nos em tempo real, midiaticamente, como se fossem anteriores à história. Para tanto, nos termos de Marx, valem-se daquilo que as define como classes dominantes da civilização burguesa: a propriedade dos meios de produção, dilatando os limites de tudo que pode ser possuído, até chegar ao mundo atual. Através das tecnologias de comunicação, as oligarquias contemporâneas ditam e editam e reeditam sem cessar a história dos povos, devorando-os, ruminando-os, culturalmente, economicamente, filosoficamente, etnicamente.
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É precisamente aqui que as oligarquias tendem a se fazer iguais a si mesmas em todos os países do planeta, tal como propôs, embora em outro contexto, Oswald de Andrade, no início do Manifesto Antropófago: “Só a antropofagia nos une, socialmente, economicamente, filosoficamente”, num contexto em que o que as une, insiste-se, é a propriedade dos meios de produção, a partir ou tendo em vista o contrato de posse a tudo que seja “meios de produção” filosóficos, sociológicos, econômicos.
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Tal como hoje se fala em metadados, para se referir aos usos que o governo americano tem feito das comunicações eletrônicas de todos os humanos, selecionando-as e classificando-as, em conformidade com seus traços imanentes, seus conteúdos intrínsecos, o que une as oligarquias contemporâneas é a propriedade privada dos meios de produção da história, através da seleção, classificação e orquestração planetária da meta-história da humanidade ou, por outro lado, da transformação da história humana em meta-história.
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Não obstante a atualidade da e na proposta antropofágica de Oswald de Andrade, como projeto utópico para os oprimidos do mundo, um bom exemplo para descrever a propriedade oligárquica dos meios de produção da história humana, transformando-a em meta-história, pode ser pincelado a partir de um erro de previsão do futuro inscrito no seguinte trecho do Manifesto Antropófago: “O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará”.
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Esse erro de previsão do futuro de Oswald de Andrade é mais comum do que parece e deriva de nosso desejo de ser como o oligarca, o colonizador do futuro – desejo que tende a fazer-nos associar o poder, em seu aspecto opressor, ao passado, exaltando, ignorando ou desejando a sua manifestação ou atualização opressiva no presente.
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A civilização burguesa (e raramente nos detemos como devíamos nisto) define-se pela linha ininterrupta do progresso, razão pela qual ela é movimento e vive de movimento. Nos começos, foi portuguesa, expandindo-se; em seguida, para mais espalhar-se, foi espanhola; num breve lapso, foi francesa, para, em seguida, tornar-se inglesa, centralidade sobrepujada pela posição imperialista estadunidense, inglesa e ao mesmo tempo não inglesa, ocidental e ao mesmo tempo não ocidental.
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No interior da civilização burguesa, portanto, tendemos a confundir o opressor com o que ele foi num passado próximo ou distante, deixando impune sua configuração /ideológica/ tecnológica no presente. O que marcou o equívoco antecipatório de Oswald de Andrade tem relação com um deslocamento geopolítico que ocorreu ou começou a ocorrer para valer na virada do século 19 para o 20, época que presenciou um lento (ou vertiginoso, conforme o ponto de vista) declínio da Europa, principalmente de Inglaterra, como centro sísmico do imperialismo ocidental e a emergência dos Estados Unidos como o novo Senhor dos Anéis da expansão proprietária da civilização burguesa sobre os povos, suas economias e suas culturas.
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Essa mutação geopolítica da Europa para os Estados Unidos, no final do século 19 para o início do 20, fez parte do movimento ininterrupto da civilização burguesa, que muda tudo para não mudar nada. Mas, de qualquer forma, essa foi a mutação mais importante na geopolítica da civilização burguesa até então.
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Como assinalou diversas vezes Marx, o capitalismo constitui um sistema que tende a “eternizar-se” diante dos limites impostos pelos povos e pelos recursos naturais do planeta, tendo uma plasticidade fabulosa para expandir-se e ratificar-se precisamente nas adversidades. O deslocamento geopolítico faz parte, portanto, de seu DNA de sobrevivência. O efeito mais previsível desses deslocamentos é a relação que os povos oprimidos da civilização burguesa estabelecem com o decadente centro oligárquico ou de comando do sistema, assim como com o novo centro expansivo, a saber: reverencia este e odeia aquele.
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Deriva daí, portanto, o erro de previsão do futuro, de Oswald de Andrade, o que inevitavelmente afetou a sua proposta antropofágica, inclusive no que diz respeito ao futuro de sua apropriação, seja no Cinema Novo brasileiro, seja no movimento musical conhecido como Tropicalismo. Já em 1928, deveríamos devorar os novos bárbaros da civilização burguesa: os Estados Unidos, o novo centro do imperialismo ocidental.
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Ocupando o papel dos novos bárbaros da civilização burguesa, os Estados Unidos fizeram e fazem precisamente o que se inscreve na proposta antropofágica de Oswald de Andrade, a saber: colocaram-se numa posição pré-adâmica, pré-escrita e pré-colombo, transformando em meta-história a história dos povos, devorando-nos e ruminando-nos sem cessar.
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Como realizaram esse prodígio? Através, claro, da apropriação das ciências de ponta, principalmente das ciências bélicas, mas também dos meios de comunicação. A velha Europa era antes de tudo grafocêntrica. Seu poder de dominação esteve e está indiscernível da relação entre civilizado e bárbaro, tendo em vista as dicotomias alfabetizado/ analfabetizado, letrado/iletrado, em contextos, é claro, nos quais se colocava e se coloca na posição de civilizada, de letrada, opondo-se ao “mundo bárbaro” não letrado, tendo em vista uma razão civilizatória que justificou a dominação, o genocídio, a domesticação “dos selvagens” não europeus, impondo-lhes a cultura escrita alfabética eurocêntrica.
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Os Estados Unidos, a partir de uma posição antropofágica ancorada na pré-escrita dos povos, tornaram-se, desde o começo, os protagonistas dos novos suportes de comunicação pós-grafocêntricos, como o rádio, a televisão e, na atualidade, a internet. Embora de forma invertida, o erro de previsão de Oswald de Andrade, ao afirmar, no Manifesto Antropofágico, “o cinema americano informará”, constitui na verdade um grande acerto futurista.
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De fato, o cinema americano não nos cansou e não nos cansa de informar que o domínio americano dos meios de comunicação de massa constitui uma poderosa ferramenta bélica a partir da qual sua oligarquia transforma a história da humanidade toda em meta-história, usando-a e abUSAndo-a antropofagicamente. Não é circunstancial, sob esse ponto de vista, as versões cinematográficas americanas das guerras que empreenderam contra Vietnã e mais recentemente contra os iranianos, especialmente considerando o fim dos regimes iranianos pró-americanos, como o do Xá Mohammand Reza Pahlevi, e o começo da Revolução Iraniana, sob o comando de aiatolá Rohollah Khomeini.
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Embora tenham fracassado no Vietnã e no Irã (sem contar as mais recentes derrotas no Iraque, Afeganistão, Síria), os Estados Unidos reescrevem a versão real da história pela versão virtual, fantasiosa, não apenas através do cinema, mas também através da cultura de massas de modo geral, incluindo as noticias sobre e das guerras, nas quais sempre aparecem como os vencedores, os defensores dos direitos humanos.
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A partir ou tendo em vista a premissa de que uma imagem vale mais do que mil palavras ou mil textos escritos, o domínio americano das tecnologias de comunicação de massa reescreve ininterruptamente a história dos povos, antropofagicamente, ruminando-a e carnavalizando-a, confundindo sem cessar a realidade com a ficção. Nesse contexto, nenhuma guerra será totalmente perdida, porque nas guerras de versões (diversões), os Estados Unidos imperam (pelo menos até o presente momento), de forma monumental.
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Mas como de forma monumental, se existem e existiram contestadores, dissidências, outras versões, principalmente com e na internet, na atualidade? Para responder a essa pergunta, é preciso recorrer ao conceito de genérico, elaborado pelo filósofo francês, Alain Badiou. No seu O ser e o evento, Alain Badiou define o genérico como aquilo que não é. O genérico não é negro, não é índio, não é americano, gay, europeu, esquerda, direita, mulçumano, ocidental, oriental. Não sendo nada de particular, o genérico é a humanidade inteira, residindo aí sua universalidade.
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É precisamente aí que os Estados Unidos estão ainda “deitando e rolando”; aí no domínio dos meios de comunicação de massas, por se constituírem antes de tudo como tecnologias do e para o genérico, para qualquer um. O que tem ocorrido, nesse campo, poderia ser designado como uma antropofagia às avessas do conceito de genérico de Alain Badiou.
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A partir do uso da história dos povos como meta-história, os Estados Unidos nos transformam em genéricos, tendo em vista, por exemplo, a desculpa dos direitos humanos, o lugar tático e estratégico do genérico (contra Badiou, é claro, que não fecha com a perspectiva dos direitos humanos por considerá-la refém do passado e inapta, portanto, para produzir um futuro pós-burguês). Mas não importa, uma vez que a versão ou conversão estadunidense do genérico em planetária cultura de massas tem como objetivo nos ridicularizar, banalizar, infantilizar, confundir, idiotizar, sempre antropofagicamente, jogando com nossas particularidades subjetivas, em nome da humanidade barbarizada.
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Talvez não seja circunstancial, sob esse ponto de vista, que Gene Sharp, em seu livro Da ditadura à democracia (2002), financiado pelo think tank Albert Einstein Institution, logo na introdução, diga: “Da necessidade e da escolha deliberada, o foco deste ensaio está no problema genérico de como destruir uma ditadura e impedir o surgimento de uma nova”. O que Gene Sharp chama de “problema genérico” deve ser entendido literalmente: o foco do domínio americano da cultura de massas é constituído pelo seguinte desafio ou problema genérico: subjugar a humanidade toda, o que é feito produzindo, via tecnologias de comunicação, um panóptico de metadados da meta-história dos povos, principalmente tendo em vista suas particularidades, seus anseios, suas fomes de justiça, a fim de carnavalizarmos manietando nossos desejos mais legítimos, antropofagicamente.
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É a partir desse contexto que as manifestações supostamente revolucionárias, conhecidas genericamente como Primavera Árabe devem ser compreendidas. Elas constituem em si uma legítima reação dos povos às mutações geopolíticas em jogo na humanidade no presente período histórico. Em si, a emergência de países ou bloco de países, como os Brics, por exemplo, sobretudo sob o domínio da China e de Rússia, não significa nada de alentador para a humanidade, pois o que estamos assistindo constitui mais um deslocamento geopolítico da e na civilização burguesa, cuja centralidade está deixando de ser eurocêntrica, e inclusive americana, para se tornar pós-ocidental.
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Por outro lado, porque têm o domínio das tecnologias de metadados da meta-história dos povos, principalmente no campo da internet (mas não apenas), os Estados Unidos estão reagindo à emergência de uma civilização burguesa pós-ocidental de forma absolutamente antropofágica, devorando-nos e ruminando-nos (inclusive com o risco de fazê-lo destruindo-nos a todos, através de uma hecatombe atômica) genericamente a partir da manipulação de nossas particularidades e antes de tudo a partir das contradições imanentes da civilização burguesa, que sempre será profundamente injusta e oligárquica, independente se ocidental e se pós-ocidental.
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As manifestações de rua que ocorreram e estão ocorrendo no Brasil, portanto, não são diferentes da Primavera Árabe, inclusive e antes de tudo sob o signo da crítica dos gastos da Copa do Mundo. O Brasil é um dos países emergentes da civilização pós-ocidental, com recursos energéticos, agrários e hídricos abundantes. Por mais que os governos do PT, sob a gestão de Lula da Silva e agora sob a de Dilma Rousseff sejam insuficientes, pela evidente razão de que estão inscritos ou contidos ou rendidos ao contexto da civilização burguesa, não é possível ignorar o fato de que as gestões petistas têm trabalhado ativamente para a produção de uma humanidade multipolar e pós-ocidental, o que contraria diretamente os interesses americanos e europeus, os quais querem a todo custo derrotar o PT a fim de colocar em seu lugar governos absolutamente subservientes, pró-ocidentais e, portanto, submetidos integralmente ao imperialismo ocidental-americano.
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Não resta dúvida de que o PT representa um avanço geopolítico para o Brasil e para o mundo; avanço absolutamente insuficiente, mas que tem melhorado a vida da secularmente abandonada população pobre do Brasil de forma inquestionável. O autor deste ensaio não é petista, destaque-se, mas sabe que o maior risco que corremos é o retorno, no Brasil, de governos submetidos ao imperialismo ocidental-americano; um risco para o povo brasileiro, para o povo latino-americano, num contexto imediato, mas também para os povos do mundo, se considerarmos que o avanço do imperialismo americano-ocidental sobre o Brasil (já extremamente presente) provavelmente tornará inviável (ainda mais) os governos de Maduro, na Venezuela; de Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, afetando a Argentina, o Uruguai, o Chile, as, enfim, tentativas, ainda que erráticas, de construção de sociedades pós-neoliberais, o que significa pura e simplesmente o retorno do neoliberalismo americano-ocidental no conjunto da América Latina.
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O imperialismo americano-ocidental está nas ruas, nas instituições e nas casas e nas subjetividades do Brasil e do mundo. Está nas ruas através da agitação urbana, a estrutura arquitetônica, a opção pelo automóvel, o gás carbônico, o combustível fóssil, estilo econômico de vida, enfim, que nos habita ao habitá-lo; está nas casas e nas subjetividades, pelos mesmos motivos, mas também através das tecnologias de comunicação que nos habita ao habitá-las, através dos pacotes de TVs pagas, dos perfis que habitam as TVs abertas, da publicidade e também ou antes de tudo através da internet, submetida ao seu domínio nas redes sociais, nas marcas de laptops, no hards e softs; está nas instituições como as financeiras, que extorquem as economias municiais, estaduais e federais, que capturam sonhos, que produzem abandonados, sem casas, sem terras, sem; está nos saberes que as escolas e as universidades ensinam, nas profissões, está nos poderes do estado, nas ideologias de direita e de esquerda, no anarquismo e portanto nas perspectivas ideológicas anti-estatais; está enfim e ao cabo à flor do socius, dos corpos, das almas, do mundo físico e do mundo metafísico.
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Está em tudo isso encarnado como em ninguém nas oligarquias de todos os quadrantes do mundo. São elas que se beneficiam de todo esse modelo produtivo-simbólico da civilização burguesa, dominado e herdado pelo Ocidente e ruminado de forma pré-adâmica, pré-escrita e pré-colombo pelos Estados Unidos no atual presente histórico.
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Franz Fanon (1925-1961), no livro Os condenados da terra (1961), consciente do imbróglio em que estamos, como subjetividades apoderadas pelos biopoderes da civilização burguesa, soube dizer-nos exatamente o tamanho de nosso desafio: “É preciso descolonizar o pacote inteiro, abandonando o sistemas de bens da civilização burguesa”, dizia, o que significa compreender claramente que nos saberes, nos poderes, nos bens materiais, na cultura, na economia, nas artes, sim, em tudo, lá está o cinema americano a nos editar, a nos carnavalizar, a nos ruminar, antropofagicamente.
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Somos a civilização burguesa ocidental-americana, a cara e a coroa de suas oligarquias, seja como donos dos meios de produção, seja como as pessoas despossuídas delas, da produção dos meios da vida burguesa, vulneráveis aos seus fatalismos progressivos, na ordem desordem de seu progresso, com nossos poucos ingressos. Nela, através dela, da civilização burguesa, somos todos corruptos, uns mais e outros menos, de tal maneira que o grau de nossas corrupções encarnadas dependerá antes de tudo de nossas posses. Quanto mais donos somos dos bens simbólicos e materiais da intrinsecamente corrupta vida burguesa, mais corrompidos estamos; e mais corrompemos, se nos valemos desses bens para vivermos melhor, com mais conforto, dignidade e mesmo como ricos.
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Dizer, pois, que os Estados Unidos invadiram as ruas do Brasil e estão aplicando um golpe de Estado contra o governo do PT através do “não vai ter Copa!” e também do suposto mar de lama de corrupção dos petistas equivale a dizer o óbvio. Foi assim que indiretamente matamos Getúlio Vargas, que, como direitas e como esquerdas, derrubamos João Goulart.
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Nada mais exemplar para encarnar a situação paradoxal da invasão do imperialismo ocidental-americano ao mundo do que o aparentemente estranho papel das organizações Globo, a mais poderosa rede de comunicação do Brasil, perante a Copa do Mundo. Como se sabe, as Organizações Globo detêm o monopólio de transmissão da Copa do Mundo. É possível dizer, sob esse ponto de vista, que ela é a verdadeira dona da copa, a que lucrará para valer com cada gol que o Brasil vier a fazer. Ela, portanto, deveria estar na linha de frente contra as manifestações de rua no Brasil. Mas não, através dos manifestantes, ela está nas ruas, transmitindo cada mínimo movimento dos “revolucionários midiatizados”, tal como produz suas telenovelas.
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Como dona de um poderoso meio de produção midiático, as Organizações Globo são também sócias proprietárias dos metadados da meta-história da população brasileira, razão suficiente para argumentar que, com antecedência, soube editar os tópicos que levaríamos às ruas: “Não vai ter Copa!”, “Cadeia aos corruptos do PT que roubaram da educação e da saúde para financiar a Copa do Mundo!”. Num país em que os banqueiros nos roubam a metade do Produto Interno Bruto, dos juros estratosféricos, nada mais conveniente que nossas bandeiras de protesto supostamente revolucionário.
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As Organizações Globo se tornaram bilionárias e onipresentes na sociedade brasileira através do apoio irrestrito ao golpe de Estado de 1964. Foram a publicidade cotidiana dos ditadores, editando-nos como idiotas ideais, se ignorássemos a ditadura e/ou como bandidos, se a contestássemos. Está no seu DNA a sua vocação golpista, sempre e guando os interesses do imperialismo americano-ocidental, mesmo que minimamente, são contrariados.
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A emergência do Brasil como país que pretende colaborar com uma civilização burguesa multipolar é um crime inafiançável para o imperialismo ocidental-americano. É por isso que a “Primavera Árabe” chegou ao Brasil, para nos distanciarmos da China, da Rússia, da Venezuela, do Equador, dos países africanos. Para nos submetermos ao FMI, ao FED, à CIA, ao Departamento de Estado, à Otan, à Comissão Europeia, ao imperialismo ocidental-americano, enfim, com seus sistemas de bens barbaramente civilizados.
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A saída desse imbróglio (eis a terceira premissa) está intuitivamente sugerida no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que preconizou, além da “alegria como prova dos nove”, além da antecedência à história dos vencedores, como condição para devorá-los antes que por eles fôssemos devorados, o descompromisso com a propriedade privada dos meios de produção, através do seguinte argumento: “Só interessa o que não é meu!, lei do homem, lei do antropófago”.
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O que não é nosso antes de tudo é o que não é burguês, razão suficiente para acrescentarmos outro “pré” aos três presentes no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Além do “pré-adâmico”, “pré-escrita” e “pré-cabral”, o “pré-mídia” ocidental-americana. Sem esse quarto “pré-olhar” sobre os acontecimentos do mundo contemporâneo, seremos apenas o Adão da escrita de Pedro Álvaros Cabral e de Cristóvão Colombo: os futuristas colonizados, meta-atados, metamatados do Patriarcado Ocidental-americano.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo