1. Em Considerações sobre o marxismo ocidental nas trilhas do materialismo histórico (1979), o historiador Perry Anderson (1938) analisou detidamente a história da teoria marxista ocidental, denunciando seu confinamento acadêmico e seu diálogo com o que ele chamou de intelectuais burgueses e pré-burgueses, não sendo, segundo seu olhar, circunstancial, para apresentar alguns nomes, a relação por exemplo de Gramsci com Croce; de Adorno e Horkheimer com Hegel e Schelling; de Sartre com Kierkegaard; de Altusser com Espinosa e Montesquieu.
2. Para Perry Anderson (1938), o diálogo de intelectuais marxistas ocidentais do século 20 com o pensamento pré-marxista ou mesmo burguês contribuiu negativamente para uma produção teórica praticamente inacessível para os trabalhadores, além de se constituir como uma forma lamentável de divisão intelectual no interior do próprio marxismo, criando falsas polêmicas e diminuindo a importância de categorias marxistas fundamentais como a do materialismo histórico, a dialética, a alienação, o conceito de totalidade.
3. Embora esteja correto em sua avaliação, Perry Anderson errou o alvo: mais que concentrar a atenção no mundo da teoria marxista acadêmica seria necessário ater-se ao próprio saber acadêmico e mesmo ao saber de modo geral, capturado e produzido por arranjos civilizatórios marcados pela figura do soberano, com suas eternas tópicas vinculadas ao senhor, ao escravo, ao opressor, ao oprimido.
4. O saber capturado por sociedades oligárquicas ocidentais ou não ocidentais se produz inevitavelmente como divisão. Como na cena do Evangelho, seu nome é legião, embora de uma forma específica, tal como no Evangelho também: legião de senhores e de escravos, de opressores e de oprimidos e, no campo ideológico, de esquerdas e de direitas.
5. O saber se constitui como o legionário Evangelho segundo o senhor das divisões orquestradas entre súditos e soberanos e de alguma forma tem relação com os seguintes versos do poema “Culebrinas”, do livro Aventuras sigilosas (1945) do poeta cubano José Lezama Lima (1910-1976): “A flor bêbada como um galo repetia: ubique daemon, ubique daemon, o demônio está em todas as partes e sua cabeça se esconde na flor vermelha/ o pagamento dessas três peças foi que Deus o orvalhou com estigmas e lepra/ o vermelho da lepra une o esconderijo do Diabo com o louvor do Senhor/ o barítono indiferente ao vê-lo leproso dizia: ubique Deus, ubique Deus,/ Deus está em todas as partes, mas a lepra o enredava com sujeira e areia sulfúrea (LEZAMA LIMA, 1994, p.93).
6. Ao mesmo tempo como o demônio e como Deus, assim como com o Demônio e com Deus, o saber está em todas as partes: ubique Daemon, ubique Deus e se produz como aventuras sigilosas de Deus e do Diabo, do opressor e do oprimido, da esquerda e da direita. É pois o avesso do avesso sendo, para continuar com o poeta José Lezama Lima o “grotesco ruído de Jeová cavalgando o Grande Pan”.
7. E o que seria o Grande Pan onde o saber produz seus grotescos ruídos de Deus e do Diabo, orquestrados? A resposta é simples: as civilizações em que Deus e o Diabo persistem, assim como os senhores e os escravos, assim como os opressores e os oprimidos, tal que o “vermelho da lepra une o esconderijo do Diabo com o louvor de Deus”. O Grande Pan, pois, são as civilizações de tradição do oprimido, para dialogar com Walter Benjamin; as que se produzem oligarquicamente ou, para dizer de outro modo, aquelas em que os oligarcas roubam e concentram a riqueza coletivamente produzida. Ubique oligarcas, ubique oligarcas, eis a palavra de ordem de tais arranjos históricos desiguais, injustos, opressores.
8. O saber divide sem dividir, portanto. Divide, separa, multiplica, dilui, produz fragmentações, apartações, para fazer os opostos se encontrarem, tal que não podemos mais saber quem é quem, tal que Deus é o Diabo e este é aquele, assim como tal que o opressor é o oprimido e este é aquele, num mesmo imbróglio civilizacional oligárquico.
9. Assim como não podemos levar a sério o nosso arranjo social, a civilização burguesa, como uma forma de desqualificá-la, de rechaçá-la, também não podemos levar a sério o saber, assim como também não podemos levar a sério nem Deus e nem o Diabo – e nem o opressor e nem o oprimido. As dualidades alimentam o Grande Pan (as civilizações oligárquicas), com seus ruídos grotescos.
10. Jacques Lacan, no Seminário 17, o avesso da psicanálise (1970), vira do avesso o saber como divisão orquestrada entre Deus e o Diabo, entre opressores e oprimidos, virando do avesso o próprio saber psicanalítico, motivo suficiente para tê-lo como interlocutor, independente dos ruídos diabólicos que o acusam de ter sido um pensador burguês.
11. Para Lacan, o saber possui seu próprio mandamento, o de mais saber, assim apresentado por ele no Seminário 17: “É impossível deixar de obedecer o mandamento que está aí, no lugar do que é a verdade da ciência – Vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais. […] De fato como em todos os outros quadrinhos ou esquemas de quatro patas, quem sempre trabalha é esse que está aqui, no alto e à direita – para fazer a verdade brotar, pois este é o sentido do trabalho. Aquele que está neste lugar, no discurso do mestre, é o escravo, e no discurso da ciência é o estudante (LACAN, 1992, p. 98)”.
12. Na civilização burguesa, o mandamento do mais-saber se constitui como o mais-de-gozar do discurso do mestre ou no discurso do mestre através da mais-valia, motivo pelo qual, ainda com Lacan, “O senhor ( o burguês) faz, em tudo isso, um pequeno esforço para que a coisa funcione – quer dizer, dá ordem. Simplesmente cumprindo a sua função de senhor ele perde alguma coisa. Essa coisa perdida, é por aí que algo do gozo deve ser-lhe restituído – precisamente o mais-de-gozar”. […] Marx teria dado conta de que a mais-valia é o mais-de-gozar. Tudo isso não impede, é claro, que por ele o capitalismo tenha sido fundado e que a função da mais-valia seja mais pertinentemente designada em suas consequências devastadoras. […] Não é nacionalizando os meios de produção no plano do socialismo num só país que se dá fim à mais-valia – se não se sabe o que é isso (LACAN, 1992, p. 100-101).”
13. A mais-valia, nesse sentido, poderá ser analisada como o mais-de-gozar do mestre. Este no limite é o próprio Deus cavalgando no Grande Pan: a civilização que nos cabe viver. O mais-de-gozar é a própria civilização burguesa, motivo pelo qual o Senhor, vale dizer, o burguês, o dono do meio de produção, sendo impotente, porque não é a civilização burguesa, mas um escravo dela, dá ordens, isto é, exige que o mais-de-gozar da civilização burguesa produza o seu mais-saber para que o mais-saber da civilização burguesa continue funcionando a pleno vapor, adquirindo assim a sua recompensa: a mais-valia.
14. Com esses argumentos, pretende-se chegar à seguinte premissa: somos todos escravos da e na civilização burguesa – opressores e oprimidos. Nossa função é fazê-la funcionar sendo o que temos sido – exploradores e/ou explorados.
15. Para não ficar refém, por outro lado, do niilismo do e no pensamento de Lacan ou pelo menos para não interpretá-lo de forma niilista, será preciso uma segunda premissa, que se contrapõe à primeira. Lacan novamente nos servirá não de guia, mas de não guia, motivo pelo qual essa segunda premissa, como um princípio de esperança, será, tal como é possível encontrá-la no Seminário 17: “Ali onde penso não me reconheço, não sou – é o inconsciente. Ali onde sou, é mais evidente que me perco( LACAN, 1992, p. 96)”.
16. A segunda premissa, pois, é o inconsciente civilizacional de nosso arranjo sócio-histórico, o capitalismo, a linha de fuga para sair desta civilização, a burguesa, burlando o próprio saber, com seu mais saber, como seu mais-de-gozar do mestre e com sua mais-valia burguesa. Para isso, é preciso pensar contra o saber, não nos reconhecendo no saber (no discurso do mestre), a fim de não sê-lo e, não o sendo, o discurso do mestre, perdemos o capital, o capitalismo, produzindo assim o inconsciente de outro arranjo sócio-histórico, não fundado no saber do opressor nem no do oprimido, tal que não estejamos condenados a ser o escravo do discurso do mestre: o saber mais-saber da civilização burguesa.
17. Tendo em vista a primeira premissa, uma pergunta, digamos, capital, será: como fazemos funcionar a civilização burguesa na atualidade? Se pensarmos onde não somos ou contra o que temos sido, qual é o seu pior modelo produtivo, seu mais sapiencial discurso do mestre?
18. Para responder a essa questão, é preciso nos localizarmos (ou pelo menos fazermos um esforço para tal) nos posicionando contra o que temos sido. E o que temos sido? Temos sido a civilização burguesa em sua versão imperialista americana-ocidental. Esse é o pior cenário, porque é nele que Jeová produz-se no Grande Pan, o capitalismo, em sua versão nua, como saber nu, do capital nu.
19. Se na perspectiva de Lacan o escravo é aquele que goza o e no discurso do mestre, a ciência, no capitalismo, constitui-se como discurso do mestre igualmente nu – do mestre capitalismo. É por isso que o saber universitário se inscreve como o saber do mestre e o estudante universitário tenderá a ser o que pensa ser o mestre em seu mais saber.
20. Existe, pois, o saber do mestre e o gozo nele e dele através de sua encarnação estudantil. O estudante universitário goza encarnando o saber do mestre – o capitalismo. Existe também o gozo do escravo, que encarna o saber da produção econômica do mais-de-gozar da civilização burguesa. Somos o escravo, nesse sentido, do mais-de-gozar da civilização burguesa, o seu gozo encarnado através do que temos sido, quando não nos perdemos dela.
21. O que marca o momento atual da civilização burguesa, sob o domínio do discurso do mestre, o imperialismo americano-ocidental, tem relação com o fato de que todos gozamos nesse discurso do mestre. Todos o encarnamos, seja como escravos, seja como estudantes.
22. Isso coloca um problema para a versão americana-ocidental do imperialismo do capital, qual seja: se todos gozamos o discurso do mestre da versão americana-ocidental do imperialismo dominante, este se torna mais impotente do que nunca e tenderá cada vez mais pensar onde não é e ser onde se perde. É nesse sentido que é possível afirmar que o imperialismo americano-ocidental está perdido e se encontra em plena crise de identidade, isto é, de gozo, de encarnação nua do capital.
23. Temos, assim, o seguinte cenário. De um lado a Eurásia, com China e Rússia como protagonistas, assim como os países do Brics, assim como os países da periferia, tendo Cuba e Venezuela como farol do discurso do escravo que se perde no e do discurso do mestre, pretendendo deixar de encarná-lo; e de outro o discurso do mestre, o imperialismo americano-ocidental.
24. Em conjunto, o primeiro bloco está gozando no lugar do primeiro, substituindo-o. Evidentemente, isso não é grande coisa, pois continuamos gozando o discurso do mestre, o capitalismo, a civilização burguesa.
25. Por outro lado, a questão que importa, nesse momento, é: como está reagindo o segundo bloco, o imperialismo americano-ocidental? Como esse segundo bloco dá suas ordens, como escravo senhor da civilização burguesa atual, diante de um mundo que se faz cada vez mais multipolar, num contexto em que devemos entender o mundo multipolar como aquele em que todos gozamos o discurso do mestre da civilização burguesa, sem que possamos sequer divisar quem seja o mestre, como senhor ou rosto circunstancial de sua produção de mais-saber, que é produção de mais-valia ou de mais-de-gozar?
26. Para responder a essa questão, a da reação do imperialismo americano-ocidental, como o lugar da impotência do gozo do senhor, o capitalismo, é preciso voltar ao Seminário 17. Para tal, em diálogo com Freud, consideremos a versão lacaniana da histérica. O que é a histérica, segundo Lacan? A histérica é aquela que se recusa a gozar o gozo do pai e delega ao pai o gozo de seu domínio. Se o escravo é o que goza pelo pai, o senhor, o patrão, a civilização burguesa, gozando o seu saber, a histérica cobra do pai o seu saber. Com isso, ela o destitui e o revela naquilo que o senhor é: impotência.
27. A histérica detém a vantagem de deixar o rei nu, pois se recusa a gozar a sua falsa potência.
28. A vantagem circunstancial de um mundo multipolar ou de uma civilização burguesa multipolar ou constituída por um cenário internacional de múltiplos senhores está na relação direta de deixar nu o imperialismo americano-ocidental, mas não como a histérica, que delega a ele a função do gozo, mas destituindo-o de seu lugar privilegiado na civilização burguesa.
29. Nessa situação, insiste-se, como reage o imperialismo americano-ocidental? Da forma mais previsível possível, gozando-se através do escravo. No capitalismo, quem é o escravo, no sentido mais evidente, mais carnal? O escravo é o lumpenproletariat, que é também o lumpen do saber.
30. O imperialismo americano-ocidental está reagindo à emergência de uma civilização burguesa multipolar gozando-se através do escravo ou, para dizer de outro modo, usando os escravos do mundo, o lumpen, para gozar ou combater em seu lugar com o objetivo de se tornar o único senhor da civilização burguesa.
31. É aqui que o senhor e o escravo se unem como nunca, gozando juntos. O pior cenário do mundo atual é o do imperialismo americano-ocidental porque este usa e abusa do gozo dos escravos, o lumpen, para evitar a todo custo a emergência de um mundo burguês multipolar. E, claro, para evitar antes de tudo um mundo pós-burguês, sem senhores e sem escravos – sem pois o saber do mestre.
32. E quem é o lumpen? Diante dessa pergunta perturbadora, por paradoxal que pareça, não existe outra resposta possível. Se o lumpen somos todos nós, inclusive o burguês, para o mais saber da civilização burguesa, em sua versão americano-ocidental, olumpen se constitui através das duas figuras do gozo, na versão lacaniana, qual seja: o escravo, para o Senhor e o estudante para o discurso do mestre.
33. O lumpen convocado a gozar o modelo civilizatório imposto pela versão americano-ocidental é constituído pelos dois extremos: o fundamentalista, aquele que acredita piamente em algo e o laico, aquele que se inscreve no horizonte do saber, como servo do saber, que acredita no saber científico, como saber nu do capitalismo.
34. Se o Senhor é aquele que dá ordens, sendo também um escravo do sistema, deste recebendo a recompensa da mais-valia, o Senhor americano-ocidental combate uma civilização burguesa multipolar dando ordens aos estudantes e aos escravos.
35. Se o escravo é aquele que goza pelo Senhor, é evidente que sua versão, digamos, mais original, será aquela que acredita, que é fiel ao Senhor. Não é circunstancial que os escravos por excelência sejam o fundamentalismo islâmico, o neonazismo, o narcotraficante. O primeiro porque acredita no Senhor em sua versão mais antiga, Deus, Alá, as identidades pessoais. O segundo, por sua vez, porque acredita em sua versão europeia, qual seja: o branco colonizador, de modo que sua fé é a fé fundamentalista na superioridade genética do colonizador europeu. O terceiro, por fim, é o narcotraficante porque este encarna ou goza como ninguém o gozo da mercadoria, esse outro Deus do capitalismo, fazendo circular as mercadorias que o capitalismo elege, não por acaso, como ilegais: as drogas ilícitas.
36. Sob o ponto de vista laico, por outro lado, o imperialismo americano-ocidental, põe, a seu serviço, para gozá-lo, o estudante, principalmente o universitário, que é o eleito para gozar no lugar do saber do mestre, a saber: o próprio imperialismo americano-ocidental, com seu saber fundado no capital nu. É assim, pois, que o laico e o fundamentalista se encontram como servidores ou gozados fieis/laicos do imperialismo americano-ocidental.
37. Eis, pois, o pior cenário: os escravos e os estudantes obedecendo ( na verdade, gozando) com as ordens do imperialismo americano-ocidental. A isso temos chamado atualmente de revolução. As esquerdas laicas (serão os estudantes universitários?) gozam a revolução do modelo americano de vida. O neonazismo goza o modelo americano do capitalismo se matando e matando pelos brancos europeus, como brancos europeus. Os narcotraficantes se constituem como o simulacro de simulacros, as mercadorias, entendidas como a materialização capitalista do tráfico da mais-valia. Por último, os fundamentalistas islâmicos, principalmente em suas versões e conversões sunitas, gozam o Deus american way of life, a religião-mor, desejando fielmente matar todos os laicos do mundo.
38. Esses são, portanto, os quatro exércitos de reserva do imperialismo americano-ocidental: os fundamentalistas islâmicos, os neonazistas, os narcotraficantes e os estudantes universitários. Como exemplos, considerem a recente invasão do Iraque realizada pelo Emirado Islâmico em Iraque e o Levante (EIIL), grupo que representa a linha de frente da versão fundamentalista do exército do lumpen religioso acionado (ou ordenado, em nome do Senhor) para combater, e gozar, em nome do estilo americano de vida, ainda que acreditem que seja por Alá. Considerem igualmente o caso dos neonazistas ucranianos, entrincheirados no Sector Direito (Right Sector), sindicato composto por nacionalistas ucranianos, fascinados pela violência de rua e que se vestem no estilo skinhead; assim como pelo Svoboda, constelação de partidos neonazistas filiados à Aliança de Movimentos Nacionais Europeus – a “nata” ou Otan ou a Nato, a North Atlantic Treaty Organization, em sua versão assumidamente etnocêntrica.
39. Os gozados laicos estudantes universitários encontram sua versão ou conversão estadunidense a partir de uma não menos gozada edição televisiva dos Black blocs no Brasil. A televisão privada brasileira, no dia do jogo inaugural da Copa do Mundo, em São Paulo, mostrou o caso de um jovem Black Bloc cujo pai, tirando sua máscara em público, cobrou dele que voltasse pra casa, obtendo a seguinte resposta: “Pai, eu quero escola”. Ao que o pai respondeu: “Filho, já te pago uma escola privada. Volta pra casa”.
40. O que significa esta resposta, “Quero escola”, vinda da boca de um jovem que estuda em escola privada e apresentada como argumento para uma revolução de rua, em tese contra o capitalismo? Será uma resposta que, embora tenha se expressado na primeira pessoa do plural, “Eu quero escola”, deva ser compreendida na primeira pessoa do plural: “Pai, queremos uma escola melhor pra todos os brasileiros”.
41. Deduzindo que a segunda resposta apenas seria coerente se o filho Black Bloc abandonasse o privilégio de uma educação privada, matriculando-se na rede pública de ensino (situação que parece não estar no cenário), consideremos como mais verossímil, ainda que seja inverossímil, o seguinte argumento: o filho é o histérico que, diante da impotência do pai, diz-lhe: “Pai, estou na rua gozando em nome do discurso do mestre, como o próprio mestre encarnado – o imperialismo americano-ocidental. Eu quero a sua escola – a do mestre, o imperialismo americano-ocidental, por isso, ao mesmo tempo que gozo em seu lugar cobro dele que goze o seu poder imperial no Brasil, no mundo”.
42. Se, na perspectiva de Lacan, a histérica, além de ser aquela que se recusa a gozar o gozo do pai, delegando para este a função de gozar, é também a que mete todo o mundo na história, revelando para todos que ela se recusa a gozar, a fim de cobrar do pai a intervenção de seu gozo, em seu lugar de gozo, o caso do jovem rapaz Black Bloc brasileiro constitui uma curiosa hibrys. Em nome do saber do mestre, ele vai às ruas com o objetivo de colocar todo mundo na história, cobrando do pai a intervenção do imperialismo ocidental-americano nos destinos do Brasil, impondo a sua escola.
43. Para Lacan, ainda que ele não o admitisse, o inconsciente como o não lugar em que somos burgueses é o que constitui a pista para sairmos do mais-gozar do capitalismo.
44. Em uma conferência realizada no Brasil em 1994, intitulada, além do neoliberalismo, Perry Anderson, defendeu três princípios e principalmente um valor inegociável para finalmente superarmos as artimanhas do neoliberalismo. Os três princípios mencionados são: 1) Não ter nenhum medo de estar contra as correntes políticas de nosso tempo; 2) Não transigir em ideias, não aceitando nenhuma diluição dos princípios; 3) Não aceitar nenhuma instituição estabelecida como imutável (ANDERSON, 1995, p. 197-198). Por sua vez, o valor de referência, para os três princípios supracitados, é: a igualdade, como o valor dos valores.
45. E o que é o neoliberalismo? Se a histérica, ao recusar ser o gozo em saber do suposta potência sexual do pai, coloca-o a nu, desvelando sua impotência, é porque ela sabe ou intui que o pai, assim como todos nós, somos impotentes e o somos porque somos todos iguais onde não somos. E sermos iguais em nossas impotências, ainda com Lacan, não constitui demérito algum, uma vez que é através da impotência que o inconsciente emerge como a perda do mais-de-gozar da civilização burguesa, do capitalismo.
46. A impotência, para citar Marx, sabe que tudo que é sólido se desmancha no ar e pode gerar igualdade destituindo as falsamente sólidas instituições do discurso do mestre, que são as que produzem desigualdades.
47. O neoliberalismo pode ser definido, nesse sentido, como a fase atual do imperialismo americano-ocidental. Este, sabendo-se impotente, ao invés de se colocar a nu no horizonte da igualdade sem fim, destituindo-se como poder, porque não é sólido, realiza um movimento inverso: empareda a igualdade acusando-a de não ser sólida. Atacando-a sem cessar, num contexto em que disfarça a sua própria impotência ordenando os escravos e os estudantes universitários a não aceitar nenhuma instituição (as de igualdade) estabelecida como sólida.
48. É por isso que o neoliberalismo pode ser analisado como o capital nu no gozo dos escravos e dos agentes do saber do discurso do mestre.
49. Se não quisermos nos transformar ao mesmo tempo na histérica e no escravo do neoliberalismo, como o saber do imperialismo americano-ocidental, não existe outra alternativa senão a da abertura sem fim da impotência da igualdade produzindo o mais-de-gozar sem fim de igualdade.
50. Para tanto, um princípio se faz mais necessário do que nunca: não transigir perante o imperialismo americano-ocidental, realizando um movimento inverso ao seu, que tem dois eixos: um baseado na financeirização da vida, através do império dos bancos; e outro baseado na sociedade do espetáculo, que se realiza através da cultura midiática planetária.
51. A financeirização da vida e a cultura midiática planetária são duas faces da mesma moeda e estão a serviço do ubique oligarquia, ubique oligarquia, em defesa da oligarquia-mor, a estadunidense, entendida como o espetáculo financeirizado do mais-de-gozar do capitalismo contemporâneo.
52. Se o dinheiro, na perspectiva de Marx, é abstração sem fim se impondo sobre o trabalho concreto e se no dinheiro não se enxerga o suor do pão de cada dia, a cultura midiática como gozo do mais-de-gozar da civilização burguesa existe para parodiar, ridicularizar e tornar invisível a vida concreta, comum, sem mistificações.
53. A cultura midiática a serviço do imperialismo americano-ocidental e a financeirização da vida têm como contraparte precisamente o fundamentalismo religioso, o neonazismo, os narcotraficantes e os estudantes universitários, pois são os que, acreditando (seja no poder de Deus, seja no poder da raça, seja no poder do narcótico, seja no poder do saber do discurso do mestre), substituem a impotência positiva da vida comum através da potência caricatural de suas histerias.
54. Os fundamentalistas religiosos, os narcotraficantes, os neonazistas e os estudantes universitários são os histéricos que agitam o mundo contemporâneo não para afirmar a impotência, elegendo-a como destino humano comum, mas para esconder a impotência do imperialismo americano-ocidental.
55. Para tanto, eles gozam nas ruas do mundo agindo como pantomimas de potências inexistentes da civilização burguesa. Com isso eles ocupam o lugar do mundo concreto, o da impotência de todos nós.
56. Sem as mídias corporativas oligárquicas, no entanto, eles jamais conseguiriam gozar suas pantomimas espetaculares, motivo pelo qual sem o apoio da sociedade do espetáculo o imperialismo americano-ocidental não teria mais como disfarçar a sua nudez intrínseca, a sua impotência.
57. Por isso elas são os verdadeiros deuses do contemporâneo, as corporações midiáticas.
58. A verdadeira revolução na era das tecnologias de comunicação começará quando o ubique povo impotente tomá-las para si, destituindo toda e qualquer oligarquia midiática.
59. Quando isso ocorrer, já não existirão nem deuses nem diabos e nem opressores e oprimidos – e seremos o não estamos no onde estamos onde nos perdemos – de tanto nos inventar fora das civilizações oligárquicas, como a impotência encarnada no infinito da igualdade a se inventar no vazio em que nos criaremos sempre outro de outro, fabulosamente.
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Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo