Um fato parece inquestionável: a mídia brasileira tem, com alto padrão de profissionalismo, cumprido a função de trazer à sociedade ampla cobertura acerca dos sucessivos episódios nos quais, sem disfarces, a vida política nacional exibe suas mais deploráveis estratégias. A essa altura, não se sabe que nova e estarrecedora revelação pode vir estampada no noticiário do dia seguinte. A sensação, pelo menos, é a de que sempre algo ainda pior está por emergir. A questão, portanto, que ora se põe é a de saber-se até que ponto a vida cotidiana permanecerá em ritmo de normalidade perante os escândalos cujo efeito primeiro é o de deixar a população em estado de imobilizadora perplexidade. Todavia, num momento posterior, nada assegura que o cenário se veja habitado por incontidas manifestações de desordem.
Que desfecho dar-se à situação posta? Seja qual for o andamento das apurações, um problema já está definido nessa pergunta. E é exatamente quanto ao teor dela que aqui manifesto preocupação. A mídia prossegue em ritmo acelerado na tentativa não só de acompanhar os fatos como também no empenho em antecipar-se com novas revelações. Estará, porém, a mídia ocupando-se de uma análise prévia quanto a possíveis reações de segmentos da sociedade?
Sem a inevitabilidade dos riscos de quem procura alinhavar um pensamento antecipatório, posso deduzir que, à altura dos acontecimentos, não se vislumbram soluções espetaculares. Ao contrário, por conta da gravidade progressiva, a própria oposição se tem policiado quanto a declarações radicalizadoras. Se por um lado a atitude revela prudência, por outro também corre o risco de parecer cúmplice das tramas desonestas. O temor provém exatamente dessa atmosfera de indefinição de modo a produzir um descompasso na intensidade dramática entre o que a mídia expõe e o que a classe política oferecerá como solução final. Há o grave perigo de um acerto no qual tudo fique a meio caminho do real sentido de justiça, o que só acarretará frustrações. Se também tudo for levado a termo devido, o país pode ingressar numa aguda crise institucional. Os dados foram jogados. Agora, a sorte e o azar decidem a quem caberá a vitória, se é que ainda alguma sorte existe.
As estratégias para o contorno da crise apontam como desfecho provável nada além da punição de dois nomes de maior repercussão, a exemplo dos deputados Roberto Jefferson e José Dirceu e, se tanto, mais umas duas dezenas de congressistas. De resto, deverá sair, no pior dos momentos, um arremedo de reforma política na qual a pauta não ultrapassará tópicos como: financiamento público de campanha, verticalização, impedimento de troca de legenda durante a legislatura e, principalmente, medidas para contenção de custos das campanhas. Neste particular, a crise fez todos os partidos respirarem aliviados. Já não sabiam como conteriam a espiral dos gastos em eleições futuras. Até o próprio PT, a despeito da desmontagem de sua imagem pública, extrai lucro. Basta pensar o que seriam para o PT as eleições de 2006, chegando para elas em estado de penúria, dado o endividamento colossal.
Limites da publicidade
Sim, haverá ‘acertinhos’ de reforma política e em ritmo acelerado, até porque o prazo se esgota em início de outubro. Feitos os ‘curativos’, ao final, ficará aquele sabor estranho por conta de um prato que foi servido incompleto, apesar da promessa de que então a sociedade brasileira estará segura e amadurecida para continuar a solidez da experiência democrática. Assim, deverá ser até um outro tempo em que nomes absolutamente desconhecidos voltem a estremecer os alicerces da vida nacional, a exemplo dos que já ocuparam tantos noticiários, seja no passado (Paulo César Faria, João Alves – o então deputado, o imbatível vencedor das loterias), seja no presente (Waldomiro Diniz, Marcos Valério, Delúbio Soares, Silvio Pereira e outros). Este, aliás, é outro fato que surpreende a sociedade brasileira: a capacidade de pessoas quase invisíveis agirem tão gravemente por longo tempo, sem que não sejam, já no início de práticas delituosas, descobertas ou denunciadas. É um mistério. O que, afinal, nesse país, órgãos responsáveis pelo setor financeiro fiscalizam? A Receita Federal, por exemplo, é tão diligente em, às vezes, por erros de continhas, atormentar a vida de pacatos cidadãos e, paradoxalmente, tão negligente em fazer passar grosseiros rombos de atos de corrupção? Igualmente o Banco Central que, em seus quadros, comporta profissionais dos mais gabaritados não detecta irregularidades em transações de milhões, quando não são bilhões? Como, por exemplo, o Banco Rural que, no passado, fora um dos estuários no esquema Collor ficou preservado a ponto de reaparecer como um dos principais captadores e repassadores de depósitos fraudulentos? Como se vê, muitas questões poderão ficar sem respostas. Para essas, a mídia e a classe política terão algo a oferecer?
Outro ponto meritório de registro diz respeito à invasão exercida pela publicidade em todos os setores da vida nacional. Por vezes, tem-se a sensação de que o país é governado por uma espécie de ‘imaginário marqueteiro’. Será crível e eticamente sustentável um governo que diante de si tem maior parte da população desprovida de tudo destinar R$ 1 bilhão para verbas publicitárias? O montante é infinitamente superior se somados forem os gastos acumulados por cada governo estadual e outros tantos municipais.
É inaceitável que, na crise atual, não se encontre o momento adequado para se fixarem limites para uma atividade cujo retorno para a sociedade é nada. O tempo tem revelado que as relações entre agências de publicidade e política bem se prestam a negociatas criminosas. Já a CPI da Loterj elucidou como se firmavam contratos e repasses de verbas públicas a serviço de esquemas de corrupção. Agora, as empresas de Marcos Valério ratificam e as manobras de Duda Mendonça consolidam. Este, com a naturalidade dos inocentes, declara que apenas queria receber a quantia pelo serviço prestado. Para ele, não existem processos legais de cobrança de ‘calote’. Não importa a origem do dinheiro, desde que lhe chegue às mãos. De igual modo, não há embaraço em servir a Paulo Maluf ou a Lula. Como se diz em bom jargão marqueteiro, o importante é satisfazer o cliente, sem entrar no mérito de suas idéias nem de suas práticas.
Comida estragada
Vou insistir na tese de que o Brasil está invadido por um ‘imaginário publicitário’. Um episódio ainda mais recente dá sustentação à idéia. Os principais jornais de domingo exibiam, em primeira página, fotos de uma partida de futebol, sob o patrocínio do presidente da República. O fato em si beira a insensatez. Todavia, dependendo do ângulo de abordagem, à luz da sabedoria dos marqueteiros, o episódio pode tornar-se lógico. Primeiramente, ao cidadão dotado de pudor e de responsabilidade, seria inimaginável que, no auge de uma cascata de denúncias de corrupção a envolver o partido fundado pelo presidente da República, o próprio presidente agendasse para o sábado uma partida de futebol na mais absoluta descontração. Não haveria outra leitura: pura insanidade ou deslavada indiferença para os destinos da nação. Contudo, sob o império da lógica que, particularmente, rege o ideário do ‘imaginário publicitário’, não se exclui a possibilidade de alguém haver até incentivado o alegre evento pois demonstraria ao país a tranqüilidade com a qual o presidente da República continua no exercício do mandato e absolutamente isento de qualquer responsabilidade por tudo que ocorreu sob seu nariz.
Explorando o contexto de uma análise infantilizada, em homenagem à inteligência marqueteira, caberia até acentuar o fato de, excepcionalmente nessa partida, o presidente haver escolhido jogar na condição de goleiro. Será que algum assessor terá instruído o presidente a atuar como goleiro, a fim de passar a idéia de estar defendendo o país? Ou ainda, em lugar do assessor, não terá sido o próprio inconsciente do presidente, fazendo-o jogar na defensiva? O mundo da fantasia, entretanto, bruscamente se apresentou. A vida real obrigou o presidente a interromper o jogo, ante a notícia do falecimento de Miguel Arraes – este sim, um nome de respeitabilidade ao qual jamais se somou a ambição capaz de comprometê-lo. Seu nome permanecerá com amplo amparo na História (com ‘H’ maiúsculo).
Bem, a crise ainda se encontra em curso. Não se pode imaginar que outro fato bombástico virá. Seja como for, no tocante ao governo federal – ou o que dele restar –, reserva-se a incógnita. Como levar o mandato até dezembro de 2006, em meio a escombros? Enfim, classe política e a mídia destamparam as panelas e a fedentina dos alimentos putrefatos se espalhou pelo país. O próximo passo é saber se poderão oferecer novos pratos com parte da comida estragada, na esperança de que, ao ser servida, não envenene a população. Quem sabe, boa parcela será doada como benefício do Projeto Fome Zero…
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro