Essa confusão no Congresso Nacional, as justificativas, outras justificativas, seguidas de novas denúncias, em um ciclo interminável de defesas, cassações, subornos, renúncias. Vovó viu muita coisa e sucumbiu. Ela perdeu as forças, esgotou-se de tanto acreditar ou, talvez, ela tenha ficado um tanto confusa, pois já não sabia mais em que ou em quem acreditar.
Creio que muitos conheceram vovó, e ainda sentem saudades dela, pois só mesmo aqui, em Taubaté, vovó pôde acreditar durante tantos anos na política brasileira e na mídia, sem qualquer restrição. Refiro-me à minha amada vovó, conhecida como ‘a velhinha de Taubaté’.
Vovó morreu acreditando que o Maluf não tinha contas em nenhum banco no exterior – ainda bem, pois se não fosse pelo excesso de denúncias , ela não agüentaria ver aquele senhor honrado, o qual sempre jurou que nunca havia tirado uma só moeda dos cofres públicos, ser preso.
Ela deixou uma neta, pois enquanto todos pensavam que ela só assistia à TV e acreditava em todos os políticos, desde o general João Figueiredo, esqueceram-se de perguntar, nesta terrinha mesmo, duas ruas abaixo da Câmara Municipal de Taubaté: será que ela deixou alguma herdeira? Sim, ela deixou. Sou a neta da velhinha de Taubaté.
Indigestão fatal
Foi com um certo constrangimento e pesar, devido ao falecimento recente de vovó, que resolvi me apresentar, mas não apenas isso: tenho algumas questões que não ficaram claras, pelo menos para mim. Um dos motivos que me afastaram um pouco de vovó foi a dificuldade que ela tinha de fazer qualquer crítica.
Não sei ao certo o motivo de tal dificuldade de vovó, talvez devido à confusão de que criticar seja sinônimo de ‘falar mal’. Mas a ação de criticar não é essa, e muito menos de encontrar um culpado absoluto para quaisquer questões que estejam em pauta.
De todo modo, se até agora não sabiam de minha existência, qual foi o motivo que me instigou vir à tona? Um deles foram alguns dos textos produzidos para XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação [ver remissões abaixo]. Há críticas constantes a respeito da qualidade do jornalismo no Brasil. Concordo com muitas delas, porém discordo que haja um interesse, de fato, dos grandes meios de comunicação em melhorar o nível dos textos jornalísticos, no que tange ao conteúdo histórico, social ou tudo aquilo que vá além do mero consumo da notícia.
A morte de vovó ocorreu em 25 de agosto, afogada e confusa devido a maré de denúncias sem a menor contextualização ou reflexão crítica. Além de triste, foi um modo de pensar o que seu falecimento representou, pois assim como os leitores que não suportam mais ouvir falar em mais uma denúncia, muitos podem estar tão mortos quanto vovó. As notícias chegam em avalanche e devem ser consumidas rapidamente, mas são tantas que levam os leitores à indigestão – e esta indigestão pode ser fatal. Muitos leitores morreram, assim como ‘A Velhinha de Taubaté’.
Jagunço ou articulista?
Sobre os textos do XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação reproduzidos neste Observatório, considero algumas assertivas um tanto delicadas e generalizadas, tais como:
‘É certo que a ambição profissional de um estudante de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília pode alcançar o padrão do jornalismo brasileiro.No restante do país,Espírito Santo incluído, a ambição média do estudante não ultrapassa o telejornalismo e o jornalismo impresso locais’.
Darei um exemplo: tenho vários textos publicados no Brasil e no exterior. Considero ter um percurso pessoal e acadêmico peculiar. Pois além de ser a neta da velhinha de Taubaté, o que por si já me dá um certo trabalho reflexivo: de tanto ver vovó acreditar em tudo, no primeiro instante fico ressabiada com o crédito muito rápido no que quer que seja.
Escrevi para um articulista da Veja, faz alguns meses, pois se tratava de um tema que muito me atrai – a importância da interdisciplinaridade. O meu questionamento era reflexivo: não considero apenas que sejam os jovens que não tenham interesse, mas será que as universidades são permeáveis ao trânsito interdisciplinar? Já cansei de explicar que não tenho problemas com a área médica, mas sempre considerei que o percurso na área de humanas seria bastante interessante para mim. Em síntese, foi o que escrevi para tal articulista.
A resposta foi estranhíssima: ‘Eita muié braba. Vá em frente, você tem toda a minha solidariedade’. Fiquei um tanto atordoada, pois não sabia se quem havia me respondido era um jagunço ou o articulista da Veja. Respirei fundo, retornei ao articulista:
‘Agradeço a sua solidariedade, pois como sou solidária aos seus artigos e você é solidário à minha causa, obrigada por ter me respondido. Porém, ainda tenho uma dúvida: somos solidários um ao outro, pelo menos é o que me pareceu, e com a sua experiência será que poderia me orientar o que fazer com tanta solidariedade, para que não fique apenas em palavras, mas, sim, que possibilite causar algum efeito tais questionamentos?’
Não obtive resposta até hoje…
Baixa qualidade
Vovó, tenho certeza, acreditaria na solidariedade do articulista, sentimento sobre o qual não tenho nada a dizer, pois jornalismo crítico não é uma questão de solidariedade, rezas ou fé, mas de provocar o leitor, no sentido de instigar um questionamento reflexivo para o que estava aparentemente digerido. O que é de fácil digestão são as notícias sem qualquer questionamento que vá além da descrição de fatos.
Pode ser que eu esteja equivocada, já que essa é a consideração que faço do que é um jornalismo crítico. Mas até que ponto um jornalismo com uma melhor qualidade crítica é interessante ao jornalismo brasileiro? Já que vovó, que acreditava em tudo e em todos antes de sucumbir, estava na mídia, a neta da velhinha de Taubaté, que não acredita em nada de primeira mão ou tão rapidamente, não ganha um centavo para escrever e nunca foi aceita em qualquer meio de comunicação para escrever profissionalmente.
Será que de fato há interesse dos meios de comunicação de que se ultrapasse a baixa qualidade crítica no jornalismo brasileiro?
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Médica, psiquiatra, mestranda em Teoria e Crítica Literária na Unicamp