O jornal O Globo de sexta-feira (1º/7) deu o título mais criador e criativo sobre o incidente ocorrido com o deputado de quem é chulo, grosseiro e ordinário pronunciar o nome. Escreveu a repórter Maria Lima que ‘com uma aparência de quem parecia ter acabado de sair de um ringue de boxe, o deputado…’, seguiam-se nome e partido, ‘…causou espanto quando surgiu com o olho esquerdo roxo, sangrando, cheio de hematomas e pontos cirúrgicos. Foi difícil convencer a todos que as marcas eram resultado de um acidente doméstico ocorrido na última segunda-feira’. E reproduzia a versão do incidente:
‘Segundo relato da deputada [mencionou o nome e o partido] que fora visitá-lo em sua casa, quando ele foi apanhar uma caixa de CDs de Lupicínio Rodrigues – compositor de ‘Vingança’, entre outras canções – uma enorme estante de sucupira desabou sobre ele e só não esmagou suas pernas porque uma escadinha aparou o móvel. Atingido em cheio no rosto, teve um choque, provocado por uma crise glicêmica’. O enorme deputado que feriu a estante ‘…chegou a ficar desacordado por alguns minutos, disse ela’.
E para evitar qualquer suspense artificial, digamos logo o título da matéria, que foi um achado digno do jornalismo dos melhores tempos: ‘Olho roxo por ‘Vingança’’
Em mais de um sentido, além da ambigüidade de nele se realizarem o agente e o paciente, porque nesse título o deputado tanto anseia quanto é ansiado por vingança, o ‘Olho roxo por ‘Vingança’’ faz um casamento feliz entre o corpanzil do corrupto em queda e uma composição do artista que ele dizia buscar. Casamento com o filho da versão: ‘Ele ficou uns cinco minutos desmaiado, sem falar… 20 pontos, 12 externos e seis internos’ na face. A diferença de pontos, dos 20 declarados para os 18 da cirurgia, corre por conta de quem conta uma versão acrescenta dois pontos. Isto pouco importa, diante da imagem física, olho inchado, costurado, violáceo, do deputado que seria usado por Lombroso para tipificar o caso típico de um corrupto exemplar. Ninguém há de lhe perguntar: – Nobre deputado, onde estão os dois pontos de acréscimo que o senhor disse levar?
Importa mais aqui, nessa ópera-bufa em que se vem tornando as denúncias de um criminoso confesso, ‘sim, sou corrupto, sim, fraudei a legislação eleitoral, mas…’, e aí, quando ele põe a adversativa, a maior parte da imprensa o acompanha com irreprimível prazer, importa mais aqui a criação gerada por um título assim, que refletiu e criou sobre os pontos da queda do deputado-tenor.
Só vingança, vingança, vingança
Lupicínio Rodrigues não tem culpa, diga-se já. Porque compôs: ‘O remorso talvez seja a causa do seu desespero /Você deve estar bem consciente do que praticou /Me fazer passar essa vergonha com um companheiro /E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou’.
Não, pelo menos nesse trecho dos versos do genial compositor, ao deputado em queda, pelo menos aqui, neste preciso ponto, ‘a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou’, os versos não se aplicam. Porque vergonha, no deputado, não há do que fez, faz e declara, nem muito menos, longe, muito longe está de a vergonha formar a sua herança e patrimônio. O deputado gosta de coisas mais sólidas. Como na altura a seguir, em que solta a voz:
‘Eu pedi ao Emerson Palmieri [tesoureiro informal do PTB] que guardasse o dinheiro no cofre do armário de aço. Era muito dinheiro, não cabia no cofre, que era pequeno’.
Ou então:
‘O Henrique Brandão [dono da corretora de seguros Assurê e amigo de Jefferson] ajudou [o PTB] das duas maneiras: por dentro e por fora. Tanto com doações legais como por fora, pelo caixa dois’.
Talvez no trecho em que o abominável homem da Câmara declara…
‘Toda a pressão que recebi neste governo, como presidente do PTB, por dinheiro, foi em função desse ‘mensalão’, que contaminou a base parlamentar. Tudo o que você está vendo aí nessa queda-de-braço é que o ‘mensalão’ tem que passar para R$ 50 mil, R$ 60 mil… Eu tenho 23 anos de mandato. Nunca antes ouvi dizer que houvesse repasse mensal para deputados federais por parte de membros do partido do governo’.
Talvez com isso ele esteja a traduzir, muito à sua maneira, o que o nosso compositor expressou em…
‘Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada /Só vingança, vingança, vingança, aos santos clamar…’.
Onde Lupicínio cai melhor
Compôs Lupicínio em Ela disse-me assim: ‘Tenha pena de mim / vá embora /vais me prejudicar /ele pode chegar /está na hora…’
Nessa composição, que guarda um lugar raro no cancioneiro popular de qualquer terra, pois aqui a dor é do amante, do ‘herói’, e não do coitado do marido traído, do corno enfim, como é costume nas canções de triângulos amorosos de todo o mundo, nessa canção o amante, o terceiro oculto, aparece a se lamentar do mal que trouxe à amada, porque não atendeu aos pedidos de cuidado, de que fosse logo embora, mas que ele não pôde atender, porque grande era o seu desejo: ‘E eu não tinha motivo nenhum para me recusar /Mas aos beijos caí em seus braços e pedi pra ficar…’
Sabe o que se passou? ‘…Ele nos encontrou /e agora ela sofre somente porque fui fazer o que eu quis…’
Nessa canção, se substituirmos a mulher pelo presidente do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), a quem o deputado pediu, segundo suas próprias declarações: ‘Quero que você me ajude, procurando essas empresas que trabalham com o IRB, para fazerem doações ao partido nesta eleição, porque estamos em situação muito difícil…’ – e nessa variante de carinho, em outra declaração: ‘Quando eu pedi a ele que ajudasse através das segurados e corretoras, que ele influísse para que elas fizessem doações ao PTB…’.
Ou se a amada de Lupicínio é substituída pelo diretor de Administração dos Correios, então poderemos dizer que o marido traído, que de repente chegou, foi a denúncia do flagrante delito em que um dos seus protegidos pedia contribuições, propinas, enquanto alegava que esse era o sistema do presidente do PTB.
Mas aqui cessam as equivalências, porque o compositor tem um sentido ético que está a quilômetros do abominável: ‘E o remorso está me torturando /por ter feito a loucura que fiz /por um simples prazer fui fazer /meu amor infeliz’, enquanto o deputado, depois que o flagrante da extorsão chegou, apenas declara para elas, os homens de confiança a quem pôs no sacrifício:
‘Não tratei de nenhum assunto com o doutor [Maurício] Marinho [ex-funcionário dos Correios que aparece em fita negociando propina]. Com a CPI, com a quebra de sigilos telefônico e fiscal, vai ficar claro que ele não tem nenhuma relação comigo’.
Nervos de aço?
Quando o seu show, que muitos chamam de depoimento à CPI, estava perto do fim, na madrugada de 1º de julho, foi-lhe perguntado que música de Lupicínio Rodrigues ele buscava, quando caiu. Respondeu o astro caracterizado para filmes de Zé do Caixão:
– Nervos de aço.
E os últimos presentes ao show sorriram, caíram em gargalhada com ele, quando deveriam mudar de preposição, enquanto não mudam de colega. Deveriam gargalhar dele. Sorrindo assim, apenas viram e ouviram de Lupicínio o título da canção. Mas que diferença, de homens, de composições dramáticas, de ética! Lupicínio sabia que todas as palavras já foram ditas, que todas elas, em si, são lugares-comuns, mas que a verdade corporificada nas palavras era absolutamente original.
‘Você sabe o que é ter um amor, /Meu senhor? /Ter loucura por uma mulher /E depois encontrar esse amor, /Meu senhor, /Nos braços de um tipo qualquer? /Você sabe o que é ter um amor, /Meu senhor, /E por ele quase morrer /E depois encontrá-lo em um braço /Que nem um pedaço do meu pode ser?’
Já o nobre canastrão sabe que todas as palavras já foram ditas, que todas elas, em si, são lugares-comuns, mas, sempre um mas no seu caminho, que do seu arranjo e enredo surgem misturas de verdades e mentiras absolutamente acanalhadas. Sujar e sujar, por método. Porque ele, o canastrão na paródia de homem indignado, é um ser que prospera e tira o seu poder da chantagem. Desprezando como despreza valores como decência, trabalho duro para sobreviver, sabe, no entanto, que estes são valores prezados pelos homens, como retórica ou vida. E pesquisa, e perquire com olho indagador, ferido, pequenos e naturais tropeços que os homens, por não serem santos, cometem. Acha-os, estava escrito. E aponta, como o tribuno da nossa triste época:
‘Não me acusem de ser ladrão! Eu sei que suas esposas e filhos trabalham para um deputado seu amigo. Nepotismo é mais moral que roubo?! Não me apontem como autor de furto de milhões! Gastar 300 mil na campanha e declarar gastos de 150 é lícito? Respondam!’
E os colegas, emparedados, aplaudem-no. Dizer que buscava Nervos de aço é mais uma do nobre canastrão. Caradura não combina com aço. Se tem nervos, não são de aço. São de madeira.
Onde Lupicínio finalmente o encontra
No artigo de feliz título e condução, Maria Lima conclui:
‘Mas estava difícil convencer os presentes de que aquilo tinha sido mesmo um acidente, e não o resultado de uma troca de socos. Com o rosto bem inchado, no meio do depoimento ….. teve que ser atendido por uma enfermeira, que improvisou um curativo com bandagens.
– Eu, se fosse da CPI, pedia um exame de corpo de delito. Aquilo ali parece um soco bem dado… Se fosse um armário, saía rasgando o rosto dele para baixo. Está muito esquisito – disse o deputado Fernando Ferro (PT-PE).
– Aquilo ali está com jeito de nocaute de baixo para cima – avaliou um dos seguranças que trabalham na CPI’.
O poeta Lupicínio Rodrigues não sabia usar os punhos, porque não era um boxeador. Não sabia usar de pistolas, revólveres, porque não sobrevivia de matar ou ameaçar de matar. Havia nele, no entanto, uma qualidade artística dos grandes, dos imortais, dos que não se acabam por ameaças, chantagens, burlas, blefes e balas. Era a capacidade de atingir a alma, de comover e ferir com a verdade. Ele possuía o talento da expressão mais rude, bruta, direta. Sem rodeios, sem falsas sutilezas, sem o sabor encantatório de certas palavras tidas como poéticas. Havia nele o verso definidor de uma situação pressentida por todos, mas ainda não conhecida, porque ainda não enunciada.
Uma capacidade de praga, dizem os que não lhe alcançam a poesia. Se o deputado mente quando diz que caiu de uma escada, não temos a certeza. Temos a prova material, insofismável, eloqüente, do olho violáceo, inchado. ‘Caí quando procurava um CD de Lupicínio’, diz o deputado. De uma forma ou outra, verdade ou mentira, concluímos nós, o significado poético de Lupicínio não o alcançou. Se mente, procurou um mau personagem para a sua história. Se fala a verdade, de Lupicínio nada conhece, porque a incompatibilidade anímica é absoluta. Que fique então com a praga:
‘Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada /sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar’.
Vingança de Lupicínio.
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Jornalista e escritor