Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Artista genial e gênio de mercado

Mão erudita, olho selvagem, a exposição de Pablo Picasso no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, abre portas para uma paisagem que perturba. Não pelos pincéis brutos de suas formas “selvagens”, mas pela “erudição” do dinheiro encarnado nas telas.

Desde jovem, o artista espanhol aprendeu pintar para o mercado. Confeccionava, mais do que obras de arte, valor de troca. Em sua vida longa (morreu em 1973, aos 91 anos) vendeu sua assinatura por fortunas ao cubo. Divertiu-se com isso. Nele, as imbricações entre capital e estética enredam o olhar e a imaginação, suscitando perguntas brincalhonas, trágicas e numerosas. Onde está o verdadeiro valor da arte? A quem cabe estipular preços nessa matéria? Como se dá o diálogo entre a sanha especulativa dos marchands e a alma ambiciosa do artista? Marchands podem ser guardiães da beleza? Pode haver beleza sem haver precificação? E para que serve a crítica? Para justificar a estratificação mercantil? A crítica educa o mercado ou é encomendada por ele?

Agora chega de interrogações. Nestes dias em que o País se afoga em Lava Jato, enquanto a crise econômica dói no bolso, ir ao Tomie Ohtake pode ser interessante. A beleza talvez se esquive, capciosa que é, mas o capital não faltará ao encontro. O passeio faz lembrar que o dinheiro é ubíquo e está em expansão.

O século 20 consumou uma operação espantosa, que já estava em germe desde antes: não apenas reduziu a arte à condição de mercadoria, como fez das obras de arte mercadorias mais do que especiais, que alcançaram o que Marx chamava de “forma-dinheiro”, aquelas que guardam a capacidade de “desempenhar o papel de equivalente universal no mundo das mercadorias”. Uma tela determinada, como um maço de dólares, é capital acumulado de alta liquidez.

Ondas invisíveis no mercado

A genialidade de Picasso esteve, em boa medida, em detectar as ondas invisíveis do mercado da arte (e, por extensão, do mercado total) e surfar sobre elas como se, em vez de pintor, ele fosse uma espécie de casa da moeda universal. O que ele pintava era dinheiro, fazia as vezes do próprio dinheiro.

As peças expostas foram guardadas pelo próprio artista ao longo da vida, o que dá à retrospectiva o aspecto de uma autobiografia pictórica. Ali está Picasso segundo Picasso. Picasso é o curador de Picasso. Essa constatação não desmerece a curadoria de Emilia Philippot (também curadora do Musée National Picasso-Paris, ao qual os herdeiros acabaram doando o acervo, que mal davam conta de conservar), mas ajuda a entender outros níveis de sentido das obras reunidas.

As fases sucessivas – a fase azul, a cubista, etc. – perfiladas, bem demarcadas no espaço (como teriam sido demarcadas no tempo), expõem não um pintor, mas vários pintores que viveram e morreram sós. Vários Picassos nasciam, produziam e desapareciam, um depois do outro, como “heterônimos” de um mesmo homem. Ao inaugurar e encerrar o ciclo produtivo de seus “heterônimos” (suas fases), o artista limitava o estoque das mercadorias novíssimas, inconfundíveis, irreprodutíveis e finitas que punha em circulação, para deleite do mercado.

Nessa equação, a crítica de arte atua como denominador comum entre o idioma da estética e o idioma do capital. Produz as categorias por meio das quais os dois mundos conversam. Às vezes, a crítica acerta. Outras vezes, não. O jornalista americano Tom Wolfe, num livro lançado em 1975, A Palavra Pintada, narrou as desventuras de pintores que se esfalfavam para agradar aos críticos. “A arte moderna tornou-se inteiramente literária: as pinturas e outras obras só existem para ilustrar o texto.” Uns pintores se deram mal. Outros, muito bem. Entre erros e acertos, o sucesso financeiro duradouro do artista seria coincidente com a consagração pela crítica, lastreada pelo olhar das multidões em museus do mundo. Picasso é uma das melhores expressões de sucesso financeiro coincidente com a consagração da crítica.

No final dos anos 1960, o francês Guy Debord intuiu que as imagens cumpririam de fato a função de equivalente universal, como se fossem dinheiro. Em sua obra A Sociedade do Espetáculo, lançada em 1967, pontificou nada menos que o seguinte: “O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias”.

Para Debord, o espetáculo seria mais do que a forma da sociedade que se deixou tiranizar pelo brilho de suas próprias imagens. Ele dizia que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Se estava certo, e parece que estava – até autores à direita, como Vargas Llosa, autor de A Civilização do Espetáculo, endossam parte de suas teses –, ninguém escapa às leis gerais do espetáculo. Ninguém, nem mesmo Picasso. Com suas figuras “eruditas e selvagens” a um só tempo, abasteceu as engrenagens do espetáculo. No bom e no mau sentido, foi um artista espetacular, que manteve com o mercado das imagens um pacto nem sempre explícito, mas sempre fértil.

Fez a delícia da burguesia. Se o seu modo de vida foi, aqui e ali, antiburguês, nenhuma contradição. A burguesia idolatra o antiburguês. Faz parte do fetiche. Tom Wolfe anotou essa excentricidade do mercado. No artista, o modo de vida antiburguês é um fingimento poético indispensável. Seus quadros serão “bonitos” assim mesmo. Melhor: serão mais “bonitos” quanto maior for o fingimento, como cantam Chico Buarque e Edu Lobo – “mesmo que os cantores sejam falsos como eu, serão bonitas, não importa, são bonitas as canções”.

No fim das contas, tudo se resume a fazer dinheiro, em todos os domínios da cultura (a única exceção a essa regra talvez seja escrever artigos de jornal). Picasso pintava dinheiro, mas dinheiro bonito. Suas banhistas seguem mais atraentes do que uma nota de cem reais.

Quanto às cédulas de real, vis e feias, vamos deixá-las para o museu da Lava Jato.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP