Muitas reportagens com ponto de interrogação acabam virando lendas que circulam de boca em boca, como se o jornalista tivesse realmente levantado uma informação e fosse uma realidade, e não uma crença supostamente plausível.
Na semana retrasada, o mestre em Neurologia Célio Levyman, ex-conselheiro do Cremesp, publicou neste Observatório o artigo ‘Quem conta um conto… não faz a lição de casa‘, criticando um artigo saído na mídia em que o jornalista não se preocupou em pesquisar a informação e divulgou uma ‘conclusão’ baseado apenas em um caso. Mas o que desejo colocar em discussão foi um comentário dirigido a um comentarista do seu artigo: ‘Quanto à tal pressão de laboratórios, ano retrasado dei uma entrevista para a Folha sobre isso, pois a repórter Claudia Collucci fez uma matéria relativa a esse assunto. Se eu achar o link, te envio. Abraços.’ Trata-se da matéria da Folha de S.Paulo ‘Propagandista pediu uma `forcinha´‘, matéria completa ‘Farmácia espiona médicos para laboratórios‘ e como era de esperar até do dono da Escola de Base ou dos acusados do Bar Bodega: ‘Indústria nega controle sobre receituário‘, todas matérias realizadas pela jornalista Cláudia Collucci.
‘Dá uma forcinha, doutor’
Reproduzo o primeiro resumo, constante na Folha On-line:
Médicos de duas áreas distintas da medicina, a neurologia e a urologia, relatam cenas ou situações em que ficou clara a troca de favores entre médicos e laboratórios.
Celio Levyman, neurologista das unidades Morumbi e Alphaville do Hospital Israelita Albert Einstein, diz ter presenciado um médico brasileiro receber US$ 8.000 de um representante de laboratório após palestrar favoravelmente sobre uma droga em um congresso no exterior.
‘A entrega do dinheiro foi na minha frente. Ninguém teve vergonha ou qualquer constrangimento. Diante da minha surpresa, esse médico explicou que a remuneração era pelo trabalho que tivera elaborando a apresentação’, conta Levyman.
Já o urologista Jorge Hallak, da USP, São Paulo, diz que entre os médicos são conhecidas as ‘mesadas’ que especialistas de áreas como a reprodução humana recebem da indústria farmacêutica em troca da prescrição de medicamentos. ‘Nos EUA, a relação dos médicos é com o setor de pesquisas e desenvolvimento da indústria farmacêutica. Aqui, é com área comercial’, diz ele.
Ex-diretor do Cremesp, Levyman diz acreditar que haja, sim, um monitoramento das receitas médicas pelos laboratórios por meio das farmácias.
‘Os propagandistas costumam dizer: ‘Dá uma forcinha aí, doutor. Prescreve mais porque ainda não atingi a minha cota na região.’ Se ele diz isso, é porque tem a informação de que estou prescrevendo pouco o seu produto.’
Balas e caramelos
Na verdade, os médicos se resumem a apenas dois em um universo de 300 mil no país. Como no caso do artigo ‘Quem conta um conto… não faz a lição de casa’, me parece que é muito pouco para fazer uma matéria séria e responsável sobre uma acusação desta gravidade que envolve a vida de milhões de pacientes e milhares de profissionais. Beira mais a irresponsabilidade do que a descoberta de uma rede de corrupção e enganação dos pacientes. Eu, particularmente, não acredito na história da farmácia pois não me parece coerente alguém ‘dar uma focinha’ para o propagandista em troca de um monte de papel de lixo que deixa no consultório e que ninguém lê. Tanto na clínica privada como na pública, não se ganha dinheiro de propagandista, e trocar a confiança do paciente por uma caneta BIC é difícil de acreditar. Ninguém que eu conheça prescreveria medicamentos inúteis e desnecessários para os seus pacientes para ‘agradar’ propagandistas de laboratórios, que fazem de tudo para serem recebidos, pois a maior parte dos colegas nem mesmo perde tempo neste tipo de intromissão. Duvido que alguém prescreva uma medicação para uma doença que o paciente não possua para favorecer o desconhecido, perdendo a confiança do seu paciente por nada. Laboratórios não dão camisa para ninguém, pois ninguém faz uma clínica de sucesso pelos propagandistas ou pelo dono do laboratório, mas pela forma com que atende os seus pacientes e estes façam propaganda do mesmo pelos resultados obtidos. Ou pelo envio de colegas, que não aceitarão que o médico para o qual ele enviou o seu paciente esteja prescrevendo errado e para ‘ajudar’ propagandistas.
Médico vive do seu consultório, não de laboratório. Não existe mesada que pague mais do que o consultório cheio. E ele não se enche pelo que se ‘receita’, mas pelo que se sabe. Ninguém vai perder um paciente fazendo isto para ganhar uma bonificação menor do que ele recebe do paciente por convênio, ou pior ainda, na clínica particular. Duvido que o profissional troque a confiança do seu paciente por uma ‘ajudinha’ para um ilustre desconhecido com uma pastinha cheia de amostras grátis. Para mim, isto é uma lenda urbana maledicente sem lógica e relação com a realidade. Mesmo prescrever medicamentos caros é contraproducente, pois espolia o paciente que pode acabar tendo que procurar assistência mais barata ou gratuita. Um colega que não use terapia cara e de igual eficiência. E ninguém quer perder paciente por burrice própria. Mas quem está envolvido na propaganda, sem sombra de dúvida, são os publicitários em todos os meios das empresas em vender. Como de qualquer coisa inútil para as pessoas que elas não precisam ou adoecem por isto. Exemplo, balas e caramelos.
Propagandistas e laboratórios
‘Dá uma forcinha aí, doutor. Prescreve mais porque ainda não atingi a minha cota na região.’ Claramente, o propagandista está dizendo que ele não atingiu a sua cota na região, e não o médico que não o fez. Se estivesse se referindo ao mesmo, certamente iria ser colocado para a rua e não seria mais recebido neste consultório. Se não perdesse o emprego, caso denunciado pelo profissional para o chefe dos propagandistas. Na verdade trata-se do pior argumento para convencer alguém em qualquer ramo de vendas, o pedido de ajuda para provocar compaixão. Não prova que ele saiba que o médico prescreveu muito ou pouco, mas apenas que ele está sendo pressionado pelo seu trabalho fraco no seu setor de atuação. Para convencer qualquer pessoa, o que se deve demonstrar são as vantagens do seu produto em qualidade, preço, disponibilidade, idoneidade da firma, melhores vantagens para o paciente e para o tratamento para desbancar as opções dos concorrentes.
O laboratório ter este tipo de informação alegado, envolveria uma rede vastíssima de coleta de dados, pois pacientes não compram apenas em uma farmácia e, no fim, o laboratório e o setor de propaganda nada poderiam fazer para mudar as coisas, a não ser pelo método tradicional: convencer que o seu produto encerra vantagens para o paciente que os da concorrência não apresentam. Afinal, nada impede que o concorrente peça uma ‘forcinha’ igualmente ou prometa uma canetinha esferográfica. Para quem já prescreve, não adianta o laboratório saber, pois não será evitada a visita e, de quem não o faz, nada pode fazer fora disto. Bons médicos não são escolhidos por propagandistas e pela indústria de remédios, mas por seus pacientes e por seus pares pelo conhecimento e formação continuada demonstrada na vida. E laboratórios não dão ‘forcinha’ arrumando clientela para ninguém. Só o bom conceito do profissional na comunidade pode fazer isto sem forcinha alguma.
******
Médico, Porto Alegre, RS