Assim, de chofre, o título pode surpreender. Ora, fumar, consoante se vê diariamente, nos comerciais de televisão, é prejudicial à saúde, ou, especificadamente, pode causar doenças do coração, derrame cerebral, câncer do pulmão, maior vulnerabilidade à úlcera de estômago, bronquite crônica, enfisema pulmonar e prejuízos ao bebê durante a gravidez (Lei nº 9.294/1996, art. 3º, § 2º). Como pode, então, existir o direito de fumar?
As pessoas fumam por duas razões essenciais, quais sejam, porque querem e podem. O ‘poder fumar’ corresponde ao epigrafado ‘direito de fumar’. Como ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (art. 5º, inciso II, da Carta da República), e como inexiste lei que o vede, daí se depreende que existe o ‘direito de fumar’.
Todavia, convém obtemperar, não se trata, ou está longe de se tratar, de um direito absoluto. Nem mesmo o direito à vida, no ordenamento jurídico pátrio, tem essa natureza. Se por um lado incumbe ao Estado brasileiro assegurá-lo – o que, claramente, pode-se atestar, não o faz de modo adequado –, não lhe havendo sido outorgada a imposição da pena de morte, por outro não se pode deslembrar que esse mesmo ordenamento prevê a legítima defesa, própria ou de terceiros, como causa idônea à interrupção da vida de outrem. O mesmo se diga em relação ao direito à liberdade, que pode ser temporariamente restringido em razão do apenamento pela prática de crimes, ou para se resguardar a aplicação da lei penal, a instrução processual-penal ou a ordem pública (art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal e art. 312 do Código de Processo Penal). Neste sentido, estabelecendo parâmetros normativos ao exercício do direito em foco, a Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, cuidou de condicioná-lo, inclusive restringindo a propaganda de produtos fumígeros, com o manifesto intuito de desestimular o consumo, ou pelo menos mitigar o alcance da propaganda.
É natural que o Estado assim proceda, afinal o direito de fumar vai de encontro a outro direito, de maior estatura, tanto assim que se acha expressamente estampado no art. 196 da Lei Fundamental. Referimo-nos ao direito à saúde (sem embargo da certeza de que num grau máximo de comprometimento, o que resta ameaçado é o próprio direito à vida) que se consubstancia em direito de todos e dever do Estado. Como não pode haver dúvida acerca dos malefícios que o fumo proporciona à saúde – pelo contrário, o que há é certeza científica –, daqueles que fumam, e, mais grave, daqueles que são ‘agraciados’ com seus efeitos nefandos, os ‘fumantes passivos’, terceiros que são constrangidos a suportar a fumaça, com seu odor característico e desagradável, e que impregna cabelos, roupas e, pior, pulmões.
Contudo, o direito de fumar, e que pode ser interpretado como direito de lesar a própria saúde e a de terceiros (parceiros não-fumantes de fumantes, por exemplo, experimentam, quase que na plenitude, os reflexos prejudiciais do direito exercitado por seus companheiros), tem sido duramente questionado em sede de ações judiciais. Nos Estados Unidos da América, como é de geral sabença, em incontáveis ações judiciais indenizatórias propostas por pacientes em grau avançado de comprometimento da própria saúde, e entre nós, que não cultivamos a mesma cultura de índole reparatória, por meio de ações coletivas, exempli gratia propostas pelo Ministério Público.
Óbices legais
No ano de 1998, quando a mesma Lei nº 9.294/1996 ainda permitia essa prática – atualmente o seu art. 2º, § 2º, contém vedação, fruto de modificação propiciada pela Lei nº 10.167, de 27.12.2000 – o MPF propôs, primeiramente em Roraima, e após no Rio Grande do Sul (com abrangência nacional), ação civil pública para proibir o fumo a bordo de aeronaves, tendo sido ambas as ações julgadas procedentes. Mais tarde, no ano de 2003, o mesmo MPF aparelhou, em São Paulo, ação pugnando pelo cumprimento da lei de entorpecentes – prevê a proibição do consumo de substâncias que causam dependência física e psíquica –, ou seja, que a União revogasse o registro no CNPJ das empresas fabricantes e importadoras de tabaco e seus derivados. Esta ação, que ainda não chegou ao seu desfecho, tramita sob o nº 2003.61.00.024497-1, na 1ª Vara da Justiça Federal da capital, representa, evidentemente, um passo adiante, uma proposta distinta de ver e tratar a matéria.
O certo é que são exemplos de postura proativa do Estado em prol do direito à saúde e em desfavor do direito de fumar, não se podendo alegar perplexidade diante disso, uma vez que do confronto de princípios constitucionais, por ponderação, optou-se, no caso concreto, pela defesa daquele de maior peso.
De qualquer sorte, o que não se pode negar é que assim como os não-fumantes são, muitas vezes, compelidos a tolerar a ação dos fumantes, sobremodo em situações informais (quantas vezes, em restaurantes, sai-se ‘defumado’) e familiares, estes deveriam respeitar o direito alheio e observar os óbices legais estatuídos ao exercício de seu direito, que de outro modo transmuda-se em abuso, arbítrio, ou, mais, simplesmente, ilegalidade.
Mau exemplo
Uma das causas do desrespeito constante, persistente, à lei, parece ser a pouca importância que lhe dedica a imprensa – inelutável seu papel para a consecução do lídimo controle social –, quiçá por considerar a existência de outros assuntos de maior relevância a enfrentar, ou, de maneira menos nobre, porque as empresas fabricantes de cigarros são anunciantes influentes e não convêm desagradá-las com assunto deveras espinhoso e cabalmente contrário aos seus interesses, ou, talvez ainda, porque os profissionais de imprensa – e aí se trata, advirta-se, de sentimento pessoal, empírico, não lastreado em qualquer dado estatístico – são grandes consumidores de cigarro, como pode dar testemunho quem já adentrou alguma sede de redação. Ou as imagens que ficaram de Nélson Rodrigues, jornalista e escritor, com o indefectível cigarro nos lábios. Pode ser o estresse da profissão…
Na contramão dessa tendência à inércia, certamente pela repercussão que teve o evento, anote-se a cobertura dada ao flagrante do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, fumando em recinto fechado da Câmara dos Deputados, no dia 26.5.2004, quando participava de uma audiência pública na Comissão da Amazônia. O ministro acabou notificado por uma fiscal da Vigilância Sanitária, que à época desenvolvia jornada antitabagista na Esplanada dos Ministérios.
É o mau exemplo que vem de cima! O ministro não poderia fumar naquele local, pois a Lei nº 9.294/1996 proíbe o fumo em recinto público fechado, a teor de seu art. 2º:
Art. 2° É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.
O papel da imprensa
Outro exemplo que se pode citar é o ato de fumar em salas de sessão de tribunais, enquanto recintos públicos e coletivos que são. Os tribunais são casas destinadas a dizer o Direito, solucionar lides, aplicando as leis aos casos concretos. Abrigam membros graduados do Poder Judiciário, funcionando, regra geral, como instância recursal. As sessões (reuniões desses órgãos colegiados) são longas, às vezes extenuantes, de forma que os membros fumantes acabam, em algum momento, por fumar, e quando assim procedem, nesses recintos coletivos, fazendo da Lei tábula rasa, não oferecem à sociedade, ali representada por pessoas do povo (partes, assistência em geral), advogados, servidores e membros do Ministério Público, um bom exemplo.
A imprensa pode e deve fazer bem mais do que vem fazendo em prol do cumprimento da Lei nº 9.294/1996. Torná-la conhecida (para que as pessoas possam, a partir desse conhecimento, lutar pela sua reta observância) e dar visibilidade a casos de descumprimento, é o que dela pode-se, legitimamente, esperar. E quando não o fizer, deve ser instada, como pretendemos fazê-lo agora.
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Procurador Regional da República em São Paulo e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba