O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-940) produziu uma singular concepção de história que pode ser demonstrada no seguinte trecho de seu ensaio Sobre um conceito de história: “A tradição do oprimido nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 1994,p.226). Duas premissas marcam a sentença acima: 1) Existe uma tradição do oprimido na qual e da qual vivemos; 2) Para manter essa tradição do oprimido é preciso instalar um estado de exceção mundial, se for considerado o atual período histórico.
O capitalismo é um sistema mundial de extorsão da riqueza comumente produzida. Ele constitui, pois, a civilização planetária da tradição do oprimido da e na modernidade. Para manter essa tradição do oprimido planetária de extorsão da riqueza mundialmente produzida, ele produz um estado de exceção igualmente planetário.
O estado de exceção mundial do capitalismo alimenta-se de cinco variáveis: 1) a variável temporal, que é a que produz o estado de exceção planetário do capital através do acúmulo de todos os estados de exceção precedentes, razão pela qual o capitalismo se constitui como uma imensa porta giratória através da qual circulam todos os ismos e idiotismos produzidos pelos estados de exceção precedentes: absolutismos, terrorismos, torturas, machismos, racismos, totalitarismos, guerras de pilhagens, sempre não convencionais, de vez que a simples hipótese de uma guerra convencional já é por si só uma aberração semântica nada convencional, de vez que só por ser guerra jamais é convencional. Tudo é contemporâneo de tudo, no estado de exceção do capitalismo: o bandido e o mocinho; 2) uma variável de generalização igualmente planetária da regra geral, de sorte que tudo tende a se tornar regra geral do e para o estado de exceção do capitalismo: as subjetividades, os valores, os países, as idéias, os saberes, as técnicas, os artefatos tecnológicos, os artefatos culturais, os estilos de vida, a educação, a saúde, a criação, as notícias; 3) uma variável de exceção que de forma alguma pode se tornar regra geral: a exceção da riqueza roubada dos povos, sequestrada pelas oligarquias, razão por que jamais serão – as riquezas – das maiorias; 4) a variável que determina que todo povo roubado ou a ser roubado deve ser caricaturalmente visto, concebido e efetivamente tratado como idiota, tolo, ignorante, inferior, bastardo, bárbaro, bandido, terrorista, racista, de modo que a primeira variável aqui expressa é, no geral, atribuível potencialmente a todos os oprimidos do planeta, fechando, dessa forma, o círculo vicioso da regra geral da tradição do oprimido, pois objetivamente o estado de exceção nada mais é que a regra geral da tortura recaída sobre os explorados e condenados da Terra, sempre mal-vistos, mal-tidos, malditos, mal-interpretados, mal-alimentados, mal-encarados, mal-representados,mal-noticiados; 5) a regra geral do estado de exceção do capitalismo mundialmente integrado, diferentemente da variável anterior, transforma as oligarquias planetárias, sobretudo as do centro do imperialismo, em entidades divinas, no geral bem-vistas, bem-tidas, benditas, bem-interpretadas, bem-alimentadas, bem-encaradas, bem-queridas, motivos suficientes para dizer que tendemos sempre a concebê-las como magnânimas, inteligentes, criativas, civilizadas, racionais, ilustradas, democráticas.
Nossa idiotice geral e irrestrita
Cinco, portanto, são as variáveis do estado de exceção mundial do capitalismo integrado: a) variáveis porque variam sem cessar, inclusive formando misturas entre elas; b) capitalismo mundial integrado porque elas variam ininterruptamente precisamente para impor um estado de exceção sobre todo o planeta, considerando a atual fase histórica.
Embora tudo no capitalismo seja regra geral do estado de exceção do capital, considerarei, neste artigo, dois exemplos singulares porque juntos tipificam, não sem caricatura, a atuação estratégica e publicitária de todas as variáveis acima. Refiro-me à variável como regra geral do estado de exceção do programa Zorra Total, da TV Globo do último sábado, dia 21 de julho, seguida pela variável do filme Anjos da Vida – mais bravos que o mar, dirigido por Andrew Davis e tendo no elenco os atores Kevin Costner, Ashton Kutcher, Neal Mcdonough e Melissa Sagemiller.
Zorra total – porque somos a periferia do sistema-mundo e porque assim insiste em eternizar-nos a TV Globo – é a realização cabal da variável número quatro, pressionada pela primeira variável, razão por que constitui um programa de humor – ou de horror – gestado para produzir uma carnavalização negativa do povo brasileiro, sempre apresentado como idiota, tosco, feio, ignorante, retardado, infantilizado, maltrapilho, banal, alienado, dentro do metrô de nossa descarrilada história de tradição do oprimido – ou mais precisamente da tradição do oprimido ao estilo da família Marinho. O programa global existe, pois, para isto: produzir humor com a nossa caricatura de oprimidos, de modo que confirmemos, para nós mesmos, o estado de exceção insalubre do metrô Brasil, na suposição de que o merecemos, tal a nossa idiotice geral e irrestrita, especialmente na era Lula: a caricatura-mor, uma vez que no fundo e no raso o que está em jogo em Zorra Total é a caricatura de um governo que se propõe – ao menos nos rostos (incluindo a Dilma) e no discurso – a ser o representante do caricatural povo brasileiro.
Uma máquina de terrorismo a serviço do Estado
Por sua vez, o filme Anjos da Vida forma um curioso contraponto com Zorra Total porque usa o mesmo dispositivo do programa de humor da TV Globo, a caricatura, embora de forma absolutamente inversa, pois esta, no filme Andrew Davis, não está a serviço da variável número quatro da tradição do oprimido, a que suja o já sujado povo, mas, pelo contrário, é usada para produzir situações exageradas que servem, não sem humor, para destacar o heroísmo da Guarda Costeira norte-americana, razão por que Anjos da Vida é um hollywoodiano filme produzido tendo em vista a quinta variável deste artigo, a que transforma em divinos heróis os perfis que representam as oligarquias da tradição do oprimido. Não é, pois, por acaso que o protagonista do filme em questão, Ben Randall (Kevin Costner), é apresentado como um legendário guarda costeiro americano, capaz de prodígios inimagináveis, inclusive e sobretudo o de enfrentar corajosamente a fúria de Poseidon, Deus do Mar na mitologia grega.
Anjos da Vida constitui, assim, uma epopeia e ao mesmo tempo uma comédia, no contexto em que ambos os gêneros narrativos não se contradizem porque enquanto o lado epopeico de seu enredo serve para destacar o heroísmo de todo um povo – o norte-americano –, através das peripécias de um personagem, Ben Randall, por sua vez, o lado comédia do filme não é usado para manchar, caricaturizar ou desqualificar a épica coragem das forças de segurança dos Estados Unidos, mas, pelo contrário, tem como objetivo fazer-nos rir, através do exagero, a fim de que nos convençamos relaxadamente de que a Guarda Costeira americana existe para proteger as incautas pessoas que insistem em enfrentar a imprevisibilidade selvagem do mar, enfrentamento só possível para os treinados guardas americanos, razão por que o protagonista Ben Randall se torna destacado professor da Escola de Elite da Guarda Costeira americana, programa de treinamento que visa transformar jovens recrutas destemidos nos melhores nadadores de resgate do mundo.
Se tudo é regra geral na tradição do oprimido, a regra geral do filme Anjos da vida é a de que as forças de segurança dos Estados Unidos da América, inclusive a da Guarda Costeira, não existem, na melhor das hipóteses, para garantir belicamente a segurança do centro do imperialismo, mas, pelo contrário, existem para proteger as vulneráveis pessoas comuns. Estamos diante, pois, da mesma lógica das guerras humanitárias, como as de Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria: combatemos, invadimos países, matamos milhões, porque somos épicos heroicos humanitários, de sorte que o imperialismo americano não é o que é, uma máquina de terrorismo a serviço do estado de exceção do capitalismo mundial, mas, pelo contrário, constitui um legendário personagem epopeico que, tal como Ben Randall, heroicamente salva, representa e apresenta todos os “homens e mulheres de bens” do planeta.
A verdadeira missão da TV Globo
O imperialismo americano mata, pilha, espalha radiações atômicas pelo mundo afora, condenando o futuro de povos inteiros, não porque é o mais nefasto e covarde terrorismo de Estado (de exceção) que jamais existiu, mas, pelo contrário, porque é preciso massacrar os oprimidos, não por serem oprimidos, mas por serem vistos e concebidos como a cara encarnada do mal a ser dizimado, razão por que o verdadeiro pêndulo do estado de exceção do capitalismo mundial integrado é este: quanto mais sujamos, massacramos, matamos, desprezamos, aterrorizamos e pisamos sobre os oprimidos do mundo, mais somos os belos, os destemidos, os magnânimos, os épicos heróis salvadores da humanidade; mais somos, enfim, a força de elite que merece usufruir do beneficio de concentrar para si a riqueza roubada dos bestializados povos.
Não foi mera coincidência, portanto, a programação noturna do último sábado da TV Globo. O canal da epopeica família Marinho não colocou um filme como Anjos da vida logo após Zorra Total por acaso, de vez que o fez, para definir com arrogante clareza o nosso lugar na tradição do oprimido do capital: “Somos o brasileiro povo pícaro em face do norte-americano povo épico. Sujeitemo-nos às forças de elite do estado de exceção do sistema-mundo, porque ao menos como idiotas talvez não sejamos vítimas de radioativos aviões não tripulados das forças de exceção dos Estados Unidos.”
Eis aí a verdadeira missão humanitária da TV Globo: idiotizar-nos, sujeitar-nos, humilhar-nos, banalizar-nos, ridicularizar-nos, amedrontar-nos, com o magnânimo propósito de salvar nossas vidas das bombas do estado de exceção do pior terrorismo de estado que jamais a humanidade presenciou – o norte-americano; missão existente no conjunto de sua programação, razão por que a TV Globo é a nossa civilizatória formadora de opinião ou a nossa legendária força de elite, treinada, fiel cão de guarda, pelo estado de exceção, que é o sistema midiático planetário, a impor-nos mundialmente uma trágica tradição do oprimido comunicativa, sem comunicação.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo