No livroRegras para o Parque Humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo (2000), o filósofo Peter Sloterdijk defendeu os seguintes argumentos: 1) as sociedades humanas são um zoológico humano, onde as bestas expostas à visitação somos nós mesmos, de forma auto-reflexiva, de tal modo que vemos e somos vistos no parque de nossos afazeres de bestas humanas; 2) cada modelo de sociedade pressupõe um modelo de gestão de um determinado tipo de zoológico humano, de tal maneira a podermos falar em zoológico ocidental, zoológico oriental, pré-moderno, moderno;3) o humano é uma invenção do animal humano em conformidade às instituições ou jaulas do zoológico em que se nasce e se vive; 4) o humanismo letrado diz respeito a um modelo de zoológico social, devotado ao projeto de domesticação do animal humano, tendo como referência a cultura letrada ou mais especificamente a leitura de obras produzidas pela tecnologia alfabética, eleita pela civilização ocidental como suporte gráfico de canonizados livros de literatura, de filosofia, de ciências; 5) a civilização ocidental, centro do projeto de domesticação, via escrita, do animal humano, dividiu o mundo entre civilizados e bárbaros, num contexto em que o letrado domesticado é o civilizado e o bárbaro é ou o analfabeta ou o precariamente letrado nas línguas alfabetizadas do humanismo letrado: inglês, alemão, francês, italiano, espanhol, português – línguas canônicas dos canônicos livros da metafísica da canônica prosódia, do canônico civilizado, do canônico intelectual, do canônico pretendente a domesticar e a ser domesticado pela cultura letrada da civilização ocidental; 6) o canônico civilizado da civilização ocidental é precisamente aquele animal de zoológico educado para se comportar como o colonizador civilizado do parque humano letrado em expansão planetária; 7) após o surgimento do rádio, em1914; e da TV, em 1945, a civilização ocidental abandonou o projeto de domesticação do humano, via cultura letrada, a fim de assumir, através das tecnologias midiáticas, outro modelo de zoológico para o parque humano, agora planetário, a saber: o zoológico da cultura de massa global; 8) se a antiga Grécia foi o bucólico cenário de fundação do humanismo letrado, por sua vez o Coliseu Romano, logo o império romano, é o cenário das origens do zoológico humano planetário da cultura de massa, razão pela qual, em substituição ao homem domesticado da cultura letrada, o perfil de humano onipresente no zoológico humano midiático é, ao mesmo tempo, o do domesticado expectador e o do gladiador de ringue da cultura de massa planetária: o primeiro é o passivo que sonha ser o ativo implacável matador, que é o segundo, por isso o primeiro é o expectador; 8) tal como na Roma Antiga o gladiador do parque humano da cultura de massa atual é o escravo treinado para matar sem piedade, sendo esta a sua função de fera na jaula midiática das telas de TV, de cinema, de celular, de computador, em suas primeiras, segundas, terceiras gerações tecnológicas.
Como este texto não tem o objetivo de ser uma mera resenha, aponto três ausências de humanoides não contemplados por Peter Sloderdijk, em seu livro Regras para um parque humano. A primeira ausência é possível detectá-la através das seguintes perguntas: por que domesticar o animal humano? O que está em jogo na produção social de um perfil humano que assume a função de bárbaro, embora aparentemente passivo, espectador à procura de sangue? Qual o objetivo implícito e explícito ligado à produção de um perfil humano preparado para matar, como o gladiador – ou o soldado – numa guerra? Por que, enfim, esses perfis de humanos sanguinários e não uma infinidade de outros possíveis, como o do solidário, o do livre humano insubmisso, preparado não para matar, mas para amar, criar, viver individual e coletivamente?
O perfil humano do oligarca
A resposta para todas estas perguntas é uma só, além de ser muito simples: produzimos zoológicos humanos nos quais a maioria de nós nos matamos, trabalhando e guerreando, sem cessar, porque temos sido devotos escravos de oligarcas, de modo que o zoológico humano ideal para estes últimos é aquele cujas jaulas ou instituições sejam eficazes para a produção geral de humanos tomados por uma servidão voluntária, tanto sob o ponto de vista individual como coletivo.
Esta é, portanto, a primeira ausência no parque humano de Peter Sloterdijk: a dos oligarcas de ontem e de hoje, com seus muitos iguais nomes parasitários: reis, sacerdotes, aristocratas, tiranos, déspotas, burgueses. O zoológico humano de Sloterdijk, portanto, tem nome próprio: Parque dos Oligarcas. Cada período histórico, tendo em vista as grandes civilizações, constitui-se como um parque específico, como o parque dos oligarcas da civilização egípcia, grega, romana, otomana, chinesa, mesopotâmica, asteca, burguesa. De qualquer forma, essa importante ausência levou Sloterdijk certamente a outra muito mais importante que a primeira, a qual trarei à tona, tornando-a presente, através de uma única e não menos simples pergunta: qual perfil humano os oligarcas do passado e do presente tentam evitar a todo custo?
Se o principal objetivo dos parques humanos oligarcas é o a produção de perfil humano voluntariamente servil ao oligarca de plantão, disposto a trabalhar, a matar e a se matar por ele, obviamente que o perfil humano que o oligarca de ontem e de hoje esconjurou e esconjura não pode ser outro senão o humano insubmisso, disposto a romper com todas as grades das jaulas institucionais dos parques humanos oligarcas, a fim de produzir o humano como infinita potência de invenção de si e de outrem, de forma revolucionariamente dialógica, porque não concebe a expressão livre de si senão na relação promocional com a expansão igualmente livre de outrem, fora de qualquer forma de privilégio econômico, étnico, simbólico, de gênero, linguístico ou qualquer outro.
Um legado indispensável para poetas e escritores
Sob o ponto de vista dessa segunda ausência, o que Sloterdijk não considerou, em Regras para um parque humano, foi o fato de que a cultura letrada não produziu apenas humanos domesticados pela disciplina da leitura de textos escritos, mas também uma cultura dissidente, insubmissa, sobretudo no decorrer da modernidade, período histórico no qual a escrita passou a ser uma importante ferramenta de contestação política, estética e ética à medida que mais e mais pessoas iam aprendendo a ler e a escrever, tendo como referência de leitura não apenas os domesticados cânones pedagógicos da tradição ocidental, mas também livros libertários, marcados por uma alta-voltagem experimental, criativa, contestatória. Para além do humano domesticado, a tecnologia gráfica abrigou também a livre expressão de perspectivas não oligárquicas, comprometidas com a construção de um mundo emancipado da opressão e da tutela de elites.
Defendo que a cultura letrada liberadora, contestatória, experimental agitou a modernidade capitalista até a Segunda Guerra Mundial de forma singular e incisiva, com densidade pública. O protagonismo político, estético e ético dessa cultura letrada insubmissa foi tão importante que é impossível separá-lo dos direitos civis, sociais e econômicos conquistados, através de lutas efetivamente protagonizadas por diversos povos do mundo. Diferentemente dos argumentos de Slorterdijk, esse lado imprevisto da cultura letrada deixou de realizar a função de domesticar, passando a se comprometer com o disfuncional exercício político de liberação, emancipação, experimentação, ousando criar o não criado, pensar o não pensado, escrever o não escrito e, por consequência, mudando de forma positiva, e em perspectiva, a despótica e usurpadora face aristocrática do mundo.
Pensadores como Leibniz, Espinosa, Marx, Nietsche, Freud, Darwin e tantos outros constituem importantes personagens dessa cultura letrada insubmissa, legando para os sucessores uma herança de contestação utópica, de base revolucionária e experimental. Diferentemente das belas letras, a literatura surge como libertária contestação e, com Shakespeare, Sóror Juana de la Cruz, Cervantes, Gregório de Matos, Mallarmé, Rimbaud, Proust, Laurence Sterne,Walt Whitman, Machado de Assis, José Martín, Dostoievski – e uma profusão de outros autores – produziu um legado indispensável para as futuras gerações de poetas e escritores, tomando de assalto o melhor das vanguardas do início do século 20 e ricocheteando pelo mundo afora até os dias atuais.
O lugar da liberdade de expressão
A importância coletiva dessa cultura letrada insubmissa e experimental é tão grande que ela transbordou o campo específico da escrita, constituindo-se como uma referência dialógica benfazeja, complexa e instigante para o melhor que o cinema, a música, a pintura, a arquitetura, a política, a jurisprudência produziram no decorrer da modernidade. Se essa cultura letrada liberadora perdeu a força experimental e libertária não é porque era natural que viesse a perdê-las, mas precisamente – e aqui compartilho com Slorterdiyk – porque o rádio e a televisão sequestraram o alcance público da cultura letrada contestatória, confinando-a a guetos e a especialistas.
Por outro lado, o rádio e a televisão não são essencialmente reacionários (e aqui me distancio de Sloterdijk) e vilãos. Defendo que o que ocorreu com a cultura letrada, com a sua democratização insubmissa, no decorrer da modernidade, pode e deve ocorrer no campo das tecnologias midiáticas. E aqui é preciso ter clareza e dar nomes aos bois. Se as tecnologias midiáticas (a internet aponta para o retorno do melhor da cultura letrada liberadora), sobretudo considerando o rádio e a televisão, não produziram uma cultura contestatória, liberadora, experimental, emancipada, é porque está sob o despótico e inaceitável controle de oligarquias, em todo o mundo, e não apenas no Brasil.
A luta, pois, pelo retorno da cultura letrada liberadora, plena de demandas por justiças civis, sociais, econômicas, mais que nostálgica, é inseparável do destronamento do domínio oligárquico das tecnologias midiáticas. É nesse sentido, penso, que é preciso deixar claro o lugar da liberdade de expressão. Esta só existe e é realmente democratizante no campo da contestação antioligárquica. O domínio oligárquico-corporativo da cultura midiática constitui a mais aberrante, insustentável e violenta usurpação da infinita liberdade expressiva do animal humano, capaz de se inventar não apenas como domesticado e bárbaro gladiador de si mesmo, mas antes de tudo como criativo e imaginativo autor de sua própria emancipação, em relação a quaisquer formas de jugos despóticos, oligárquicos, opressivos, assassinos.
A passividade subserviente
Se é verdade, com Sloterdijk, que a massificação da humanidade constitui o retorno do bárbaro gladiador romano e se é igualmente verdade que o retorno do gladiador romano transforma o mundo todo – porque a cultura midiática é planetária – num imenso Coliseu romano, não tenhamos dúvidas de que essa situação só ocorre porque as tecnologias midiáticas estão sob o domínio despótico de corporações oligarcas. São estas corporações que realizam, pois, de forma consciente, o retorno da besta humana treinada para matar e rir de sua própria desgraça, enquanto o oligarca de plantão concentra mais poder, mais riquezas, mais gozo narcísico e despótico, às custas do trabalho coletivo humano, empurrando-nos ao abismo de genocídios, como temos a infeliz oportunidade de ver por todos os lados no planeta. É, pois, o controle oligárquico dos meios de comunicação que tem transformado o planeta Terra, ele mesmo, num Coliseu romano a céu aberto, cosmologicamente tomado por satélites espias com o objetivo de esquadrinhar, guerrear e matar qualquer vestígio de contestação libertária, na atualidade.
Se, portanto, Sloterdijk omite, em seu livro, o oligarca e a contestador, ele omitiu o mais importante: a dimensão política, entendida como o lugar da livre decisão humana, em relação a seu próprio destino de ser. Embora, sob esse ponto de vista, seus argumentos teatralizem a radicalidade de um pensamento crítico humano demasiadamente humano, sem Deus, sem tutelas, sem transcendências, por outro lado a omissão da decisão política, em Regras para um parque humano, torna tal obra inevitavelmente conservadora, posto que comprometida com a premissa de que o animal humano é incapaz de se inventar de forma realmente liberadora, livre de quaisquer formas de tutelas e domínios oligarcas.
Não é, pois, circunstancial que Slorterdijk tenha omitido, após o advento das tecnologias de massa, um terceiro personagem: o homem domesticado da cultura letrada canônica, de base aristocrática, eurocêntrica. Ao argumentar que, com o advento do rádio e da televisão, o homem domesticado da cultura letrada isolou-se, perdendo sua dimensão pública protagônica, Sloterdijk omite a sua presença traidora no interior da cultura midiática que domina o planeta na atualidade.
Por acaso, a passividade subserviente e submetida aos gladiadores mundo das corporações dos personagens do mundo político no Ocidente, sobretudo na Europa e nos EUA, não é a prova cabal de que o homem domesticado que a cultura letrada ocidental produziu milenarmente não está encarnado precisamente num Obama, numa Merkel, num François Hollande, Mario Monti, Rajoy, Papandreo, Pedro Passos Coelho? Não é o mesmo mundo domesticado que prevalece no campo dos saberes institucionais do Ocidente e mesmo do mundo todo? Não são os mesmos déspotas esclarecidos, secretamente desejosos de sangue alheio, que prevalecem hoje, como autores de destaque, no mundo do cinema, da literatura, da música, da pintura e das novas formas de arte do contemporâneo?
O domínio corporativo das mídias
Com Hamlet, personagem da peça homônima de William Shakespeare, é preciso perceber que o homem pode sorrir e ser infame, sendo exatamente esse o lugar do domesticado homem das letras – político profissional ou não – no mundo midiático contemporâneo: fazer-se como o infame que sorri midiaticamente, dissimulando elegância, espírito democrático, enquanto ocupa o verdadeiro lugar do tirano, pois sorri diante dos milhões de humanos que são massacrados nas guerras bárbaras em todo o planeta, guerras marcadas pelos augúrios e auspícios de domesticadas (literalmente assumem uma função de domesticar, a qual dão o homem de guerras humanitárias) agências e instituições tais como Departamento do Estado, dos EUA, Pentágono, CIA, FMI ( no que diz respeito ás guerras financeiras), Otan e tantas outras conhecidas e secretas.
E aqui é preciso aproveitar a oportunidade a fim de realizar uma crítica ao comportamento e, por consequência, às escolhas realizadas por boa parte das esquerdas contemporâneas, principalmente as que se autodenominam de radicais, no contexto não apenas brasileiro, mas mundial. Tal crítica não tem como objetivo desqualificar de forma maniqueísta, a partir de hierarquias do tipo a verdadeira esquerda e a falsa esquerda. Todos erramos. Assumir nossos erros não é de forma alguma uma diminuição de nosso valor de revolucionários, mas a própria essência do espírito revolucionário, que necessita pensar e agir com unidade a partir mesmo das diferenças de perspectivas, rechaçando tanto os incestos das linhas partidárias dogmáticas, como os ódios edípicos.
Dito isso, acredito que a esquerda do mundo pós-moderno tem errado não por má-fé, mas porque é herdeira do Iluminismo, sobretudo de sua versão francesa, diretamente vinculada à Revolução Burguesa de 1789. Não sou daqueles que defendem o fim dessa herança, decretando seu anacronismo. Penso que as propostas de um mundo marcado pelos ideais de igualdade, de liberdade e de fraternidade continuam mais atuais do que nunca, pois simplesmente são as que nos têm faltado. Minha crítica deriva da observação ou argumento de que a herança Iluminista foi domesticada pelo eurocentrismo da cultura letrada oligárquica do Ocidente e é precisamente a sua dimensão domesticada que está sendo explorada pelo imperialismo americano e europeu na atualidade, seja no seu aspecto evidentemente bélico, a invadir países usando o pretexto de guerras fundadas em supostas razões humanitárias (leia-se iluministas), seja no seu aspecto midiático, pois tendemos a ser complacentes com o domínio oligárquico das tecnologias midiáticas, ancorados que estamos na boa-fé de que devemos respeitar a liberdade de expressão, enquanto que é precisamente em nome da liberdade de expressão, que instigou e produziu o melhor da cultura radical e contestatória das esquerdas, no decorrer da modernidade, que devemos nos opor claramente ao domínio corporativo das mídias no capitalismo contemporâneo.
As alegrias infames dos famosos midiáticos
Penso que a esquerda radical do mundo está, portanto, referendada pelo Iluminismo domesticado, de base eurocêntrica, a serviço do gladiador-mor da atualidade, o imperialismo ocidental. É por isso que tal esquerda apoiou a invasão da Líbia, assim como está apoiando a invasão imperialista da Síria e apoiará, se ocorrer, a invasão do Irá, não sendo casual que não se questione verdadeiramente sobre as edições midiáticas oligárquicas dos acontecimentos belicosos do mundo contemporâneo, principalmente no que diz respeito à Primavera Árabe, mas também ao massacre dos palestinos pela, a um tempo, domesticada e predadora ideologia sionista – os mais antissemitas dentre os antissemíticos.
Esse foi também o erro do governo Lula da Silva no Brasil e tem sido igualmente o erro principal do governo de Dilma Rousseff: acreditar que a oligarquia midiática esteja, minimamente que seja, a serviço da liberdade de expressão, num contexto em que verdadeiramente o que ela faz e tem feito é fomentar diariamente o Caldeirão do Huck da versão brasileira do bárbaro mundo do Coliseu midiático planetário, que não vive sem reificar sanguinários gladiadores, aplaudindo-os como os heróis matadores da atualidade.
A cultura letrada de base contestatória, libertária, experimental que a modernidade produziu constitui um indispensável arquivo para a radicalização democrática da cultura midiática oligárquica que domina o planeta, na atualidade. Através dela podemos, por exemplo, aprender, com Marx e Engels, “que tudo que é sólido se desmancha no ar” e que a única solidez das mídias corporativas, que transformam o planeta todo num Coliseu romano, é a das alegrias infames dos famosos midiáticos; e infames porque não passam de intervalos de propaganda de dentifrício entre um massacre que já ocorreu e a nova real cena de morticínio que ocorrerá, no thriller escrito pelas domesticadas oligarquias da sociedade do espetáculo em que vivemos.
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[Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]