Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Eugênio Bucci e Jean Wyllys: dois conservadores?

 

Em primeiro lugar, queria deixar claro que com este artigo, onde discorro sobre “Batman” e “Avenida Brasil”, não estou pretendendo aparecer à custa de gente famosa, como poderia à primeira vista parecer, aos olhos de leitores apressados. É verdade que o seu título, visto que menciona o nome de um renomado jornalista e o de um deputado bastante popular, está bem chamativo. Note-se, porém, que a interrogação após os dois-pontos suaviza em boa medida o agravo que uma afirmação categórica poderia causar logo de início. Pois é, estou só perguntando. Mas tudo bem, nomeiem-no, então, como quiserem: meu artigo também poderia se chamar “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, ou “Pingos nos is”, ou, ainda, “Alhos com bugalhos”. Tanto faz, deixo-o à sua livre escolha, leitor.

Creio ser necessário fazer previamente, mesmo que de forma sucinta, uma distinção entre dois tipos de conservadorismo. Há, inerente a toda cultura, um conservadorismo vital, responsável por sua defesa contra as ameaças das novidades vazias vindas de fora. E há um conservadorismo entranhado nas mentalidades que é responsável pela estagnação e o atraso, que impede o livre trânsito e desenvolvimento das ideias. 

Também devo dizer que este modesto articulista que lhes fala já viu muita telenovela, de Dias Gomes, Janete Clair, Cassiano Gabus Mendes, entre outros bons autores que escreveram para a TV. Isso deve ter sido antes de a direção artística, que era a responsável pela grade da programação, ser substituída pelo diretor comercial. Vi “O bem-amado”, “Roque Santeiro”, “Que rei sou eu?”, “O astro”, “Pecado Capital”, “Gabriela”, “Guerra dos sexos”, “Escrava Isaura” (as versões originais), e me divertia, torcia e me emocionava muito, escondendo o rosto às vezes para que ninguém visse que eu estava chorando. Hoje, não, vejo de vez em quando uma coisa ou outra, mas não acompanho, não vejo todo dia, me falta paciência. E até as de que eu gosto (como essa que passou recentemente no SBT, “Amor e revolução”, tão interessante, com depoimentos comoventes de pessoas que foram torturadas durante a ditadura militar) me dão uma curiosidade, um entusiasmo iniciais mas logo me esqueço de acompanhá-las.

Outra coisa que devo dizer, apenas a título de introdução, que aliás já vai se estendendo muito, é que na minha infância brinquei muito de Batman e Robin, até sozinho, grande parte das vezes, ora sendo o homem-morcego, ora o menino-prodígio, alternando também os papéis quando brincava com meu irmão mais velho, e perdi as contas de quantas vezes amarrei uma toalha de banho em meu pescoço e levava-a pendurada ao comprido sobre minhas costas, simulando uma capa, meias calçando as mãos, fingindo luvas, a máscara de papelão, e me lembro de como fiquei radiante de felicidade e alívio quando ganhei o meu primeiro calção de banho, uma sunga (eu devia ter uns sete anos), que me tirava o peso de todo dia, tão sem jeito e envergonhado, emprestar das minhas irmãs uma calcinha pra poder brincar, pois minhas cuecas tinham aquela “janelinha” na frente, pra facilitar o pipi, o que me incomodava, porque eu via que as de meus heróis do seriado da TV não tinham nada na frente, e, em minha casa, o que mais se aproximava daquela peça íntima e ao mesmo tempo exposta e sobreposta que Batman e Robin usavam eram as calcinhas das minhas duas irmãs, só que eu morria de medo de que todos em casa pensassem que eu estava querendo “virar mulherzinha”. Então a sunga veio em boa hora, foi “a minha salvação”.

Se bem que secretamente, algumas vezes me agradasse muito, muito mais ser o vilão. A previsibilidade insossa dos super-heróis acabava me cansando, ser o bandido me dava mais liberdade, sentia fluindo em mim uma energia nova, a simples possibilidade imaginada de vencer os heróis da brincadeira me dava uma sensação de potência indescritível. E não ser o mocinho nunca foi, para mim, ser o simples antagonista daqueles heróis, não, era algo maior, que transcendia bandido e mocinho, e misteriosamente, assim de um instante para outro, eu me percebia elevado, harmonioso, embora não soubesse ainda por quê. Só bem mais tarde é que vim a descobrir que a minha vilania de faz-de-conta me anunciava uma outra espécie, mais honrosa, de heroísmo e de bondade. Faltava-me o conceito do anti-herói, que depõe contra o herói clássico conservador. O anti-herói, bem compreendido, não é um personagem que retrata uma pessoa pequena, de baixa estatura ética, mas apenas uma pessoa em seu tamanho real, em sua condição humana e, como tal, contraditória, negada pelo herói clássico.

Valores

Portanto não quero aqui parecer ingrato com meus primeiros heróis da TV e do gibi, nem com as minhas saudosas novelas da televisão. Já assimilei e consumi muita coisa da cultura de massa, ícones oferecidos pela indústria cultural, dos mais rasteiramente simples aos mais delicadamente criativos, que ganharam minha simpatia talvez antes mesmo de eu aprender a falar. Sei que somos em grande medida tudo o que absorvemos, não só de bom e de sublime, mas também do que há de medíocre e muito ruim da cultura em que estamos inseridos e da estrangeira, que nos chega pela TV, pelo rádio, jornais etc., o que não significa que não possamos um dia estar razoavelmente aptos a construir a nossa crítica acerca de todos esses entes, esses elementos que povoavam a nossa vida cotidiana, inclusive subliminarmente, num nível simbólico, não para negá-los, mas para tentar compreender em termos claros o que foi essa experiência diária e, digamos, poder educar com novos arranjos, novas nuances interpretativas, quando o quisermos, o nosso gosto, as nossas preferências no tocante às coisas que consumimos, ontem e hoje, para o espírito. De todo modo, o que pretendo pôr em discussão aqui são muito mais a Avenida Brasil de Eugênio Bucci e o Batman de Jean Wyllys do que esse filme e essa novela propriamente. Até porque eu nem assisti ainda ao filme, e, telenovela, como já disse, não acompanho. Minha finalidade então é falar a respeito de dois textos, um sobre um filme (Batman − o cavaleiro das trevas ressurge), e outro sobre uma telenovela (Avenida Brasil), assinados, respectivamente, pelo deputado Jean Wyllys, no site da revista Carta Capital em 07/08/12, e pelo jornalista Eugênio Bucci, no site da revista Época em 25/08/12, tendo sido este último, de Eugênio Bucci, reproduzido aqui mesmo no Observatório em 04/09/12, na edição 710, seção TV em Questão. Sem prescindir, contudo, aqui e ali, de alguma pitada de humor, como o leitor mais atento já deve ter percebido. E por que exatamente esses textos? Porque penso ser necessária e bem-vinda uma vez ou outra, num país tão inegavelmente influenciável como é o nosso pela mídia de grande circulação e maior alcance, a preocupação em colocar os pingos nos is em questões que mexem em valores primordiais para todos nós, ou, por que não dizer, primordiais para a saúde de uma sociedade (“Avenida Brasil”, diz Bucci, “reflete dúvidas morais que tocam a alma brasileira do nosso tempo”), valores que podem ser abalados, de forma a deixá-la se sentindo ainda mais confusa, ainda mais solta no vácuo do que ordinariamente já se sente, principalmente por dois tipos frequentes de abordagem na mídia (na televisão inclusive, que ainda é a mais popular): um deles é o que sempre parece seguir uma diretriz insistentemente repetida por Chacrinha, o Velho (e saudoso) Guerreiro, em seu programa semanal da TV, quando dizia que aqui viera “para confundir, e não para explicar”, infelizmente se dirigindo a um povo ludibriado por um poder público de um país tradicionalmente sem transparência (só muito recentemente dando auspiciosos sinais de mudanças), um povo tão carente de explicações, esclarecimento, num país com uma notória precariedade estrutural na área da educação, exatamente como hoje. E o outro tipo é o que despolitiza, sugerindo, mais explícita e formalmente, soluções conservadoras, de alguma orientação religiosa, para problemas que precisam ser melhor compreendidos, para que melhor solucionados, no âmbito estritamente político. E esses dois textos que escolhi são modelares para o propósito de meu artigo, porque reforçam perfeitamente as duas tendências.

Dito isto, vamos aos textos.

Ponto a ponto

Eugênio Bucci, quando analisa Avenida Brasil em seu texto intitulado “O mal contra o mal na novela das 9”, a certa altura chega a formular uma pergunta retórica, com a dureza gélida de uma lápide tumular: “A virtude é factível nessa grande avenida chamada Brasil?” Essa pergunta, o leitor há de convir comigo, nem de longe poderia ser abrandada pelo fato (neste caso, aparente) de ser ela “apenas uma pergunta”. Ele como que endossa a “pergunta” como uma verdade implacável, a qual, segundo ele, é o que estaria por trás de toda a trama desse que seria só mais um folhetim melodramático, não fosse essa pergunta que o permeia, conferindo-lhe um diferencial. Curioso é que tal pergunta, que me lembra uma frase que, como essa, atravessa um drama de Nelson Rodrigues, “o mineiro só é solidário no câncer”, e que quase leva o protagonista a somatizar seu sentimento de culpa em um tumor, essa dura frase de Bucci, extraída das entrelinhas do folhetim (!), parece partir de um referencial, para dizer o mínimo, obsoleto, porque o pessimismo escatológico, apocalíptico que está implícito em sua interrogação, ainda que seja muito preocupante, não por ser verdade o que sugere mas pelo tamanho do susto equivocado que pode provocar, tem estranhamente raízes em camadas demasiado subterrâneas da axiologia, isto é, só se explicaria à luz de valores prezados por nossos bisavós. E o susto ao qual me refiro é que, com essa pergunta, eu entendo que o caro articulista põe em xeque, se é que não pôs por terra, para quem o leu, a convicção de qualquer brasileiro (ou de quem quer que aqui viva) com relação às virtudes que tem, à integridade de cada um de nós. Ainda que não tenha sido essa a sua intenção. Todo o seu artigo, aliás, me parece (percebam que estou relacionando sempre “o que digo” ao “modo como vejo”, pois sei que nada dos dois textos que aqui analiso é necessariamente assim, mas, pelo menos, assim me parece, ou, sobretudo, assim pode parecer!) todo o seu artigo me parece uma construção de premissas falsas capazes de conduzir a um ápice de conclusões equivocadas, e a um estado de perplexidade nada bem-vindo no importante momento político que ora atravessamos. Analisemos ponto a ponto:

“(…) a vilã é uma troglodita,” diz Bucci logo no começo de seu texto, “e a mocinha é pior ainda”. Nina, a mocinha da Avenida Brasil, novela de João Emanuel Carneiro, do horário das nove, jamais poderia ser interpretada como “pior que a vilã”, pois tudo o que faz, ainda que por meios nada próprios de uma heroína tradicional, é uma consequência do que a vilã, Carminha, lhe fez no passado. Logo, suas atitudes reprováveis devem ser analisadas dentro da esfera do ressentimento e da vingança, e nunca da crueldade ou má índole. Podemos classificar a protagonista, no máximo, como ressentida e muito vingativa, mas nem sequer poderíamos dizer que tudo o que já fez contra a vilã seja desproporcional ao que esta lhe fez, pois não temos como avaliar a medida da ferida que ficou na alma dessa personagem principal. Mas, a julgar por sua obstinação de levar sua vingança às últimas consequências, podemos fazer uma ideia do tamanho de sua ferida aberta. Sempre que é encontrado um corpo perfurado por uma quantidade absurda de balas ou de facadas, quando uma só teria bastado para tirar-lhe a vida, a primeira coisa em que se pensa é na probabilidade de o crime ter sido motivado por um sentimento de vingança. A grande infelicidade da protagonista dessa novela, ao menos é o que detectei até o momento em que pude acompanhá-la, é não conseguir encontrar forças na alma para livrar-se do ressentimento, e transformar justiça em vingança, tragicamente confundindo-se, em matéria de maldades, com a sua antagonista.

Onde estaria o bem então, pergunta Bucci, já que, segundo ele, a mocinha é pior que a vilã e, nessa trama, “o mal é convocado a lutar contra o mal”? Ele diz que “o bem evaporou”, e que aí está o sentido profundo da novela (que seria “uma metáfora da nossa vida real”, ai de nós!), e diz que nela “não cabem as soluções moralistas”. Aqui cabe a pergunta: e as soluções morais? Se “o bem evaporou”, então são as soluções morais que não caberiam! O moralismo é uma rigidez moral antiquada, excessiva. Já a moral, não, está presente em nossas ideologias, que são o que nos move coletivamente, e no âmbito pessoal ela tem base no nosso superego, que é uma espécie de censor do ego, sem o qual seríamos criaturas bestiais, movidos apenas por nossos instintos mais elementares. Nina, a mocinha da novela, tem moral, sim, só que esta está comprometida pelo ressentimento que tomou conta do seu ser. Mas Jorginho, seu namorado, por exemplo, embora não perdoe a sua mãe megera, não se perdeu em suas mágoas e manteve sua moral incólume, é um rapaz que tem sonhos e tenta levar a sua vida com dignidade.

As conclusões a que chega Bucci têm um tom melancólico que lembra o de Schopenhauer, o grande filósofo do pessimismo. “Segundo a radiografia chocante que essa metáfora [a novela “Avenida Brasil”] apresenta de nós mesmos, somos um país que perdeu a inocência e teve de amadurecer no desencanto, pondo em xeque todos os idealismos.” Certamente, todos os nossos idealismos estão sendo postos em xeque pelo choque de realidade que temos tomado nesses últimos anos com sucessivos escândalos da política nacional, mas duvido muito que esse xeque esteja próximo da ameaça de um xeque-mate. Volto a abordar esse ponto na minha conclusão final.

Depois de falar do desmoronamento de nossas esperanças mais recentes, que haviam renascido com a redemocratização do país, o articulista diz que “não há mais lugar para redentores”, que “o imaginário nacional parece mais adulto”. Preste atenção agora, leitor, e me diga que político desonesto não amaria estas suas palavras: “Em lugar de [o imaginário nacional] buscar o paraíso na Terra, parece mais aberto a lidar com saídas realistas,” (na política partidária isso dá em pragmatismo, adeus à ética) “humanas e dignas. Já não aposta tanto no herói incorruptível” (?!?!) “− e vai descobrindo o valor de instituições sólidas, ainda que operadas por homens e mulheres imperfeitos.” Ora, como é que não há mais lugar para redentores, se o próprio jornalista parece ser um, redimindo, com essas suas palavras indulgentes, toda a cambada de corruptos e corruptores que se seguiram de Collor a Dilma?! E se, segundo Bucci, a virtude é impossível, impraticável “nessa grande avenida chamada Brasil”, onde “toda fidelidade será castigada” (ele diz isso também), se “a radiografia chocante” (se lhe é chocante é porque lhe parece bastante verdadeira!) “de nós mesmos” nos dá conta de que perdemos a inocência, e tivemos que amadurecer no desencanto dos idealismos postos em xeque, se “o bem evaporou”, restando-nos, portanto, tão-somente o pesadelo do “mal contra o mal”, então de onde diabos, no meio desse armagedon unilateral, desse pandemônio, vamos ainda tirar “saídas humanas e dignas”?! Retomo esse ponto mais adiante.

“Não percam os próximos capítulos da nossa vida real.”, conclui Bucci. E aqui o nobre jornalista confirma a convicção que já havia manifestado, de que esse folhetim é uma metáfora da nossa vida. E aqui discordo frontalmente: para começar, para ser mesmo uma metáfora da nossa vida real, teria que procurar retratar mais pessoas que, embora não sejam exatamente exemplos de bons moços ou veneráveis senhoras e senhores a todo instante, ou de mocinhas açucaradas, têm muita decência, e, estejam onde estiverem, ou onde quer que vivam, não se deixam contaminar pelo ambiente se este não for compatível com sua índole, e, para as quais, decência jamais será uma palavra antiquada, vazia de sentido, pois a esta ou qualquer outra virtude a que já não sirva algum sentido ultrapassado, elas são sempre vigorosamente criativas para preenchê-las com outros, tão vitais quanto os que serviam originalmente! Além disso, cadê nessa novela a corrupção das classes mais altas, de onde tudo acaba resvalando até os estratos sociais mais baixos e periféricos? De um outro lado, aceitando que essa novela pretende ser uma metáfora ou uma “radiografia” implacável de nós mesmos, como diz o caro articulista, só nos restaria acreditar que o autor da novela estaria tentando criar em cada telespectador do grande público ao qual se dirige, um certo efeito identificado na prática de alguns charlatães chamado “memória falsa”. Essa prática trapaceira, por sinal, já foi matéria do Fantástico, programa da TV Globo, a mesma emissora que apresenta Avenida Brasil. É assim: participantes de uma sessão de “adivinhação” comandada por um suposto vidente são levados a acreditar, cada um individualmente, por meio de sugestão (e sem estarem hipnotizados), que estiveram em certas situações difíceis nas quais na verdade jamais estiveram, e levados a crer que fizeram coisas no passado que, na realidade, nunca fizeram, tal é o estado de carência e indefinição interior dessas pessoas e tal a capacidade do falso vidente de envolvê-las (o que, no caso, não é tão difícil!) numa atmosfera sugestiva em que qualquer um pode ser ou ter feito qualquer coisa, tudo “bate”, tudo se encaixa, tudo “tem a ver”, sejam essas pessoas quem forem, não importa, a memória falsa é com sucesso inoculada em cada um dos sugestionáveis participantes. Em resumo, se o charlatão quiser que essas pessoas “se lembrem” de que são pessoas “muito sofridas e deprimidas, que vivem chorando pelos cantos”, elas terão sido, vão “lembrar-se” perfeitamente, mas se quiser que “se lembrem bem” de que são pessoas “muito batalhadoras, que não se entregam nunca, pessoas até felizes”, elas também vão “se lembrar” de que, “realmente”, é esse o perfil que possuem; podemos deduzir daí que, se, por alguma estranha razão, quiser o suposto vidente que sejam pessoas criminosas, trogloditas, bandidas (como grande parte dos personagens ou, segundo Bucci, todos os personagens da novela em questão), essas pessoas certamente “se recordarão”, contritas, profundamente constrangidas, de terem cometido os piores crimes, de terem feito as piores atrocidades. Este último efeito, contudo, não deve ser muito comum, porque um charlatão, como se sabe, em regra não quer incutir culpa em ninguém, não quer fazer ninguém que o frequente passar por grandes sustos, situações constrangedoras, pelo contrário, normalmente ele quer conquistar a simpatia de quem o procura e, após submetê-lo a seu poder de sugestão, quer vê-lo satisfeito, feliz, porque deseja que o procurem de novo, a intenção geralmente é criar uma dependência e arrancar das pessoas até os últimos centavos com o pleno consentimento delas. Mas imaginemos, caro leitor, que esse trapaceiro queira ardilosamente incutir culpa nos frequentadores de suas sessões, para depois mostrar-se “compreensivo”, “misericordioso” com eles! Isso não é incomum, lembremo-nos das muitas igrejas transformadas em verdadeiros mercados. Suponhamos, então, que o autor da novela… Como é mesmo o nome dele? Emanuel Carneiro (bem sugestivo), suponhamos, portanto, que Emanuel Carneiro deseje que todos nos identifiquemos com a troglodita da Carminha, com o imbecil do Max, com assassinos, mensaleiros, formadores de quadrilha, que cada um de nós se sinta intimamente irmanado com toda essa súcia de canalhas, sendo nossa “culpa” habilmente suavizada pelo autor num capítulo ou outro, para que, nos últimos capítulos, últimas “sessões”, final da novela, o autor providencie e nos proporcione uma redenção misericordiosa, geral e irrestrita! Seria essa a razão que teria levado o autor da novela a tentar nos convencer de que “o bem evaporou”, que “o raríssimo exemplar de bom caráter”, havendo algum, “é meio abobado” e há de ter crime a esconder? E seria esse o segredo do sucesso da novela?

Explicações possíveis

Como é que o falso vidente consegue criar falsa memória nas pessoas a ponto de parecer que está adivinhando a vida particular de cada uma delas? Acredito que ele usa certas palavras-chave, com a característica de terem significações muito vagas e abrangentes que encontram ressonâncias em certas regiões do inconsciente dos participantes de suas sessões; as palavras que ele costuma usar para envolvê-los certamente têm sentidos tão imprecisos e amplos, que podem coincidir quase com qualquer coisa da vida pessoal de qualquer um. Mas o nosso inconsciente, segundo Carl Jung, psicanalista suíço, fundador da psicologia analítica, tem vários níveis, como, por exemplo, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo, também chamado transpessoal. Este último conceito foi desenvolvido por Jung ao realizar estudos comparativos de várias culturas, por meio dos quais chegou a identificar, para além das peculiaridades culturais, equivalências existentes na arte, nos mitos e religiões de diferentes tempos e lugares. Partiu da surpresa de observar em sonhos contados por pessoas que analisava, símbolos que correspondiam perfeitamente a imagens de mitos antigos, religiões e obras artísticas próprias de culturas que essas pessoas não conheciam. Daí pôde concluir que há um inconsciente que transcende os indivíduos, que ganhou dimensões coletivas universais. Os arquétipos (imagens primordiais) contidos no inconsciente coletivo de cada indivíduo remetem a uma tipologia infindável, que correspondem a toda a sorte de tipos míticos que ficaram registradas na memória universal, dos mais nobres aos mais abjetos e primitivos, e cada pessoa tem em si esse registro, só que em nível muito profundo, transpessoal. Se esses conteúdos vitais são, seja de que forma for, trazidos à tona na consciência de uma pessoa, podem ser percebidos por ela como se fossem experiências (ou qualidades) suas, vividas em algum momento em sua vida particular, mas na verdade são apenas conteúdos pertencentes a uma memória universal, coletiva, inconscientemente compartilhados por todos nós ao longo dos séculos, dos milênios. Já no inconsciente pessoal, como sabemos, estão presentes certos conteúdos referentes às nossas impressões e experiências diárias, das mais recentes às mais remotas, de nossa mais tenra infância.

Pois são essas imagens nebulosas, esses pontos sensíveis, suponho, que são tocados e ativados pelas palavras utilizadas pelo farsante do qual falávamos há pouco. Jung, como psicanalista, procurava propiciar (não só para fins terapêuticos mas, principalmente, para o desenvolvimento pessoal), através de diversos métodos, a vinda dessas imagens, desses elementos submersos, à consciência de seus analisandos. Agora, os nossos próprios conteúdos que rejeitamos e que em geral são socialmente indesejáveis (“em geral” porque, estranhamente, pode haver num indivíduo preciosidades por si próprio rejeitadas) tanto podem estar no inconsciente coletivo quanto no pessoal de qualquer pessoa honesta, numa região que Jung denominou sombra, e os mais agradáveis para nós mesmos e normalmente bem aceitos pelo meio fazem parte de nossa persona, outro conceito desenvolvido e assim denominado pelo psicanalista. Trazer criativamente à luz o que dorme na sombra, por métodos eficazes (Imaginação ativa, Associação livre) e com linguagens apropriadas (artísticas) a fim de que o indivíduo atinja uma relativa plenitude harmoniosa (individuação), tornando-se personalidade, é a meta da análise junguiana. Lembrando que, segundo Jung, “viver o homem comum, sem mutilações” devia preceder tal meta.

Dicotomia simplista e estranha

Como eu disse a alguns parágrafos acima, as opiniões manifestadas por Eugênio Bucci a respeito da trama de Avenida Brasil têm raízes, encontram respaldo em valores calcados no ideal burguês oitocentista, mais precisamente, valores à exaustão difundidos no romance romântico do século XIX, do qual são exemplos, aqui no Brasil, os romances urbanos “A moreninha” (com uma mocinha que, embora pouco tenha de açucarada, guarda todo o recato e costumes de sua época e público) e “O moço loiro”, de Joaquim Manuel de Macedo. Somente esse referencial, a meu ver, poderia explicar tão bem que ele viesse a expressar as opiniões que expressou, da forma como expressou, sobre essa novela, ou sobre a nossa vida real, que, segundo ele, é a mesma coisa. Sua linha de raciocínio é a seguinte: se, após sofrermos o desmoronamento de tantos ideais, não faz mais sentido acreditar em bons moços ou mocinhas virtuosas, ou em homens de bem (leia-se: pessoas com todos os atributos heroicos incensados pela Escola Romântica, para “salvar a pátria”), então a única realidade hoje em que nos restaria honestamente acreditar é aquela onde a honestidade não passa de uma bela e grande mentira, uma ilusão acalentada por cabeças sonhadoras do século XIX! E visto que é em tom lamentoso que Bucci nos traz essa conclusão com rigor de notícia, podemos então supor que não é outra senão essa a inocência que ele diz ter perdido no desencanto e que julga que todos perdemos, não havendo em seu lugar qualquer outra em que se possa confiar sem que se seja crédulo, por isso diz que “o bem” (leia-se: o bem sacralizado pelo herói clássico romanesco) “evaporou”! O problema é o equívoco perigoso a que, em nossas cogitações de hoje em dia acerca da política nacional, essa linha de raciocínio pode nos levar. Collor, que antes de chegar à presidência da República era, aos olhos do eleitorado, uma espécie de super-homem que às vezes também assumia ares de “príncipe anabolizado em cima de um cavalo branco”; Collor, “o herói desmoralizado” (a quem Bucci parece se referir), seguido, mais recentemente, da desmoralização e o declínio do “partido da ética” (PT), pode nos levar enganosa e perigosamente a começar a crer num heroísmo “realista” da malandragem, como o único factível, da malandragem que se safa no Planalto, embora suspeitíssima, irretocavelmente representada na figura de um certo Lula da Silva!

É bom lembrar que o Realismo foi um movimento que se deve entender muito mais como uma tentativa contundente de reação aos arroubos e exageros do Romantismo do que propriamente como um espelhamento bem-sucedido da realidade! Ora, nem tanto ao mar e nem tanto à terra, o fato de “ninguém ser santo” não implica o contrário, não quer dizer que todo mundo seria forçosamente o diabo em pessoa! O fato de não se acreditar no amor romântico, inclusive como possível salvador da alma, ao qual Eugênio Bucci parece com ironia se referir (“o amor, o amor, o amor”, diz ele), não quer dizer em absoluto que o amor, ele mesmo, com toda a sua densidade eivada de contradições, não exista e não tenha já salvado muitas almas nesse vasto universo da nossa complexa, esférica e nada plana vida real. Sem falar que há excelentes estudos sobre o amor romântico, esse sentimento, ou faculdade de se apaixonar, que herdamos do século XII, do mito de Tristão e Isolda. E por fim, o fato de não ser possível atingir a maturidade “de coração puro” (seja lá o que isso quer dizer, e seja nessa avenida chamada Brasil ou em qualquer outra do mundo) não significa, absolutamente, que todos tenhamos corações desonestos e mentes ardilosas. Depois de Freud, aliás, soubemos que é até questionável que alguém tenha sido realmente “puro” algum dia, mesmo na mais tenra idade, em que se pode observar a manifestação de impulsos agressivos. Mas e daí? Quem não leva consigo nenhuma porção de malícia, a menor que seja, que lhe possa salgar e temperar a vida, algum problema sério deve ter! Porque puro, puro mesmo, só idiota! Nenhuma das personalidades, vivas e mortas, por quem tenho particular admiração, nunca admirei por achar que fosse super-homem ou mulher-maravilha, nem mocinho ou mocinha de romances românticos, como se fossem seres assexuados, isso seria ofendê-las! Sempre lhes tive respeito, e procurei o quanto pude mirar-me em seu exemplo, pela força de caráter que possuem, entre outras qualidades, para permanecerem sendo e fazendo algo bem mais elevado do que é e costuma fazer esse troglodita que habita o âmago de cada um de nós, que volta e meia quer, com alguma e às vezes nenhuma dissimulação, pular para fora e trair a idéia confortável que normalmente fazemos de nós mesmos. Por isso é que suas imperfeições nunca me levaram a crer estranhamente em coisas do tipo: não é possível crescer e ganhar a vida sem que se tenha de si mesmo algo desabonador de que se lembrar, sem que se tenha aflitiva consciência da própria hediondez, enfim, algo como uma grande culpa coletiva que nos desabonasse e nos nivelasse a todos. Se não somos serafins, nem por isso somos seres amorais, e se não é possível que sejamos na vida prática puritanamente virtuosos, isso não legitima, como parecem crer tantos homens da classe política (haja vista os sucessivos escândalos que têm horrorizado o Brasil desde a redemocratização), que sejamos completas bestas individualistas. É verdade que algumas pessoas acabaram eventualmente amadurecendo de forma a ter coisas nada lisonjeiras de si para lembrar, mas sem dúvida essa via torta não é a única via de acesso, não é a única possível. Ainda que realmente a telenovela, de uns anos para cá, esteja caindo com muita frequência nessa dicotomia simplista e estranha, quando, a fim de mostrar a pretensa cara nua e crua de um Brasil real, o faz pela construção de um drama ou modelo narrativo que, bem longe de ser um raio-X de nossa realidade, acaba sendo tão-somente mais um folhetim que busca um efeito impactante aos olhos mimados de seu público, procurando ser às nove horas o extremo oposto e violento do folhetim melosamente romântico ao qual esse público foi acostumado no horário das seis. Como se quisessem fascinar o telespectador com flagrantes da miséria humana, prescindindo do rico contexto e a profundidade e arte presentes em obras da literatura, do cinema, do teatro, ou da própria teledramaturgia, como já houve, na forma de minisséries e até mesmo de novelas.     

Personalidades

Temos na cena política brasileira personalidades notáveis, entre as quais eu destacaria Roberto Freire, Marina Silva, Soninha Francine, Fernando Gabeira, Plínio Sampaio, Cristovam Buarque, Eduardo Suplicy. São “homens e mulheres imperfeitos”? Claro que sim, todos o somos, isso é irrelevante! Não se podendo dizer o mesmo de certos políticos nos quais é flagrante a falta de caráter, facilmente constatável em seus notórios desvios de conduta! Não é de modo algum irrelevante que estes sejam “imperfeitos”. Não se podendo dizer o mesmo também (a propósito) de um homem que parece ter saído das páginas de Goethe, e de quem a jornalista Eliane Brum − do site da Época, onde escreve às segundas-feiras −, em um artigo interessantíssimo, disse ter ido ao encontro, indignada, para dizer-lhe poucas e boas contra seu antiprofissionalismo amoral, um jornalista europeu que esteve por um breve tempo aqui no Brasil para realizar uma reportagem sobre prostituição infantil, e que ela classificou, já no título do artigo, e com muita justiça, como “o pior jornalista do mundo”, por ser ele descaradamente antiético, despudoradamente sem quaisquer escrúpulos, mefistofélico mesmo. Nesse artigo ela conta que, enquanto conversavam sentados a uma mesa, ele a olhava como se nela visse, por sua integridade e ética profissional, uma espécie de “virgem da imprensa dos trópicos”. Essa criatura tentou de todas as maneiras zombar dos sólidos princípios dessa grande jornalista, inclusive lhe contando, de propósito, coisas as mais infames que ele fizera ao longo de sua carreira, a fim de chocá-la, como se quisesse, com seu cinismo tremendo, num só encontro abalar as convicções mais profundas de sua interlocutora. Não conseguiu, ela até se deixou corajosamente, como nos conta, ser posta à prova, tendo-lhe aceitado um certo desafio diabólico, mas sobreviveu a esse homem dos infernos, numa das experiências mais intensas e perturbadoras que deve ter tido em sua vida, da qual seguramente saiu mais forte, e só mesmo a sua sensibilidade e talento aliados ao jornalismo literário poderiam tê-la relatado de modo tão fascinante, e Eliane continua a ser, tenho certeza, ainda que a tenha descoberto há tão pouco tempo, por tudo que já li de seu trabalho e por todos os prêmios significativos que sei que já ganhou − uma das mais importantes jornalistas do país.

Em família

Elogio em boca própria é vitupério, mas acho que posso esboçar aqui, apenas para efeito ilustrativo, uma qualidade que este humilde articulista que lhes fala sempre teve (ou meia qualidade, porque as inteiras a modéstia não lhe permite mencionar) diante de sua incomensurável dificuldade de observar por completo o décimo Mandamento, pois há algumas mulheres do próximo que, francamente, me tiram o chão! Poderia já ser meia virtude, o que não seria pouco, só o fato de eu nunca ter cobiçado nenhum outro bem do próximo além de, com todo o respeito, a sua mulher, mas não é só isso, leitor, é também por eu sempre soltar as rédeas de semelhante cobiça apenas quando o próximo, senhor de quem cobiço, não me é tão “próximo” assim. Mulheres da televisão, do cinema, de estranhos, de inimigos… Sem falar que, neste aspecto da paixão pecaminosa, comigo tudo é meio machadiano, isto é, nada chega a se consumar. Mero exercício do desejo. No mais das vezes, mantive meu pecado a rédea bem curta, sobretudo quando estava acompanhado, embora algumas mulheres do próximo, próximo mesmo, como a mulher de um amigo meu por quem, moderadamente, sempre tive um fraco, não facilitem as coisas às vezes para quem, como eu, digamos, desenvolveu ao longo de sua vida uma extrema sensibilidade à beleza feminina. Pois a mulher desse meu amigo, sabendo muito bem o que por ela eu sentia (uma mulher sempre sabe), contou-me, com os olhos mais doces que os meus olhos já viram, e com a voz mais sensual que já passou pela vida desses meus tímpanos tão fatigados, voz que me tocava o fundo da alma, contou-me, sem entrar em muitos detalhes, que tinha tido não fazia muito tempo − um sonho erótico comigo! Gosto de acreditar que fui mais leal do que tímido, e que por isso nunca houve rigorosamente nada entre nós.

Falando em meia virtude, acho que é por influência do meu pai que tenho essa minha de que acabei de falar, pois ele, por absoluto respeito que sempre teve por minha mãe, e disso sou testemunha até hoje, nunca, jamais lhe admitiu que tem uma amante que já está, para a minha mãe e para todos nós, seus filhos, netos, bisnetos e bichos de estimação, mais do que na cara que ele tem! Comparado ao que o seu pai, meu avô paterno, aprontava em matéria de adultério (passava por pirraça na frente da casa de minha avó acenando festivamente para ela com um chapéu na mão em cima da carreta de um “caminhão cheio de quengas”, a caminho de alguma nova farra promissora depois da labuta, quase matando a pobre da minha avó do coração), me parece um grande avanço, digno de minha deferência e respeito.

Não poderia faltar neste meu breve testemunho de meu ambiente familiar, uma virtude curiosa que me revelou um dia minha irmã mais nova e que ora passo a descrever-lhes (um tanto incompleta também, pois somos uma família modesta nesse Nordeste maltratado que amamos), mas isso foi quando éramos bem mais jovens, sendo portanto bastante razoável que minha irmã, que considero muito virtuosa, tivesse a qualidade exigida no sétimo Mandamento ainda pela metade, por assim dizer. Estávamos, como tantas outras vezes, conversando madrugada adentro na sala de casa, quando ela de repente me propôs a seguinte tese: “Todo mundo que está num relacionamento, por mais sério que seja, tem sempre alguma outra pessoa “de molho”, hibernando no limiar da consciência, numa linha tênue entre o sono e o despertar, que fica assim como que “sobressalente”, alguma outra pessoa que conhecemos ou nem conhecemos ainda, e que nem chega a tomar forma de ideia recorrente no espírito, mas que está lá, movendo-se no nosso campo nebuloso das possibilidades futuras…” Eu não tinha tido um número muito expressivo de namoradas para que pudesse discutir o assunto em pé de igualdade, mas parece que nesse tempo eu tive que concordar um pouco com ela. Minha irmã sabe das coisas, tem pós-graduação em Pedagogia e foi aprovada com distinção em sua tese de mestrado na UFPE; atualmente está concluindo a sua tese de doutorado e tudo indica que será aprovada mais uma vez com louvor. Está no quinto casamento.

Dois textos: uma mesma linha

Passemos à análise do segundo texto, que isso aqui é coisa séria, leitor, e só então poderei complementar a análise do primeiro, pois agora veremos de que forma o folhetim e o filme de super-herói americano estão interligados. O artigo de Jean Wyllys chama-se “Batman − O ressentimento ressurge”, em alusão ao filme, lançado recentemente, “Batman − O cavaleiro das trevas ressurge. Já no começo de seu texto ele deixa claro que poderia abordar o filme sob diversos ângulos, mas o que me chama a atenção é que, diante de tantas alternativas que ele próprio nos mostra inicialmente, decide abordar o filme exatamente sob um prisma que é sem dúvida uma forte tendência da atualidade, podendo induzir o leitor a uma opinião que escamoteia uma velha questão política que o filme nos traz (logo ele, que é um deputado), e a solução que propõe para o que, segundo ele, é a raiz dos problemas mostrados no flime, não poderia ser outra, religiosa e conservadora em essência − Jean Wyllys nos propõe o perdão! Ele diz que um dos aspectos do filme que podem ser analisados é o do ressentimento, e como solução mágica para todos os problemas levantados na trama, que, segundo pensa, são causados por esse sentimento, que aliás não está só no íntimo dos vilões mas também no do protagonista, Batman, para todo o caos social gerado pelos conflitos dos personagens ele propõe o decantado perdão. Assim, os pobres e miseráveis perdoariam os ricos e vice-versa, e eis que a paz seria restabelecida e tudo voltaria a ser do jeitinho que era antes! Não é lindo? Seria lindo mesmo, se o que havia antes fosse uma situação social minimamente justa, e se todos os problemas pudessem, como nas piores novelas mexicanas, às vezes nem tão mexicanas assim, ser reduzidos a uma questão de rancor e de perdão, com o triunfo final do amor nos beatificando e salvando a todos. Só que a realidade (ou as realidades) é um pouco mais complexa. O autor a certa altura afirma que o filme em questão não é um ataque ao sonho de justiça social presente no ideal socialista, mas apenas tenta mostrar, segundo ele, como esse ideal pode tornar-se perigoso e acabar muito mal quando é mediado por um líder tirano e manipulador, a exemplo do que ocorreu na Rússia Socialista. Aqui é preciso que se diga: se não chega a ser “um ataque”, tampouco é uma defesa! Conhecendo o espírito imperialista que permeia toda a indústria cinematográfica americana de super-heróis espalhada pelos quatro cantos do mundo, podemos imaginar de imediato e dizer de olhos fechados que a mensagem subliminar que esse filme quer passar é: “Está vendo em que é que dá, sempre, esse tolo ideal de justiça?! Vê como são daninhas as suas sementes?! Os muito ricos e os pobres e miseráveis existem desde que o mundo é mundo, assim é a vida, não há outro paradigma social possível!” No fundo é só mais um filme americano que o que faz é endossar o ideal capitalista, conservador, colocando de um lado, como protagonista generoso, um personagem milionário sempre pronto a socorrer, com sua coragem ou suas esmolas caridosas, pessoas em perigo ou necessitados esperançosos, e de outro, como vilões cheios de rancor e sede de vingança, as poucas vítimas desse sistema perverso que são inconformadas com o submundo de miséria onde sobrevivem, comendo o pão que o diabo amassou. Os filmes dessa grande indústria super-heroica parecem encomendados pela extrema-direita americana!

A estrutura do romance romântico burguês (que perpassa a análise feita por Eugênio Bucci em seu artigo) é a mesmíssima dos filmes de super-heróis americanos, reiterada pelo modelo de abordagem feita por Jean Wyllys. Pode ser identificada em obras que Affonso Romano de Sant’Anna classifica como “de estrutura simples”, em seu livro “Análise Estrutural de Romances Brasileiros”. O modelo de heróis presente nesse tipo de filme e de romance só reforça uma estrutura social e política de eternos opressores e oprimidos: estes, apresentados como eternas criaturas passivas e esperançosas, ou então como vilões perdedores e vingativos, e aqueles, como os eternos salvadores das criaturas passivas e bondosas e como punidores dos inconformados, invariavelmente pintados como vilões. Somente a partir de obras realistas, que o livro de Romano de Sant’Anna nomeia “de estrutura complexa”, é que esses pretensos heróis, bem como o status quo do qual são defensores, começam a ser desmascarados. Em tais desmascaramentos, concordo que o realismo tem acertado. O romance romântico brasileiro, com seus mocinhos e mocinhas bem-comportados, entre outros ingredientes, era fartamente consumido pela burguesia, lisonjeada, no século XIX, e os super-heróis americanos são todos guardiães da propriedade privada e do Estado penal do ideal capitalista.

Preste-se atenção ao que diz o livro de Romano de Sant’Anna com relação a Superman: “A fantasia do Superman é apenas a outra metade de Clark Kent. O herói mítico sempre levado ao êxito nasce do vazio do homem prosaico oprimido no dia-a-dia. Apenas ele se esforça (fantasiosamente) para ter seu êxito nos mesmos escaninhos da cultura que o reprime. Mas esse espaço vazio que a fantasia ideológica tenta ocupar é também [como o mito, a arte] um exercício do inconsciente, do significante. A diferença é que o significante [a fantasia] aí está a comando do significado [a sociedade, o meio cultural], como extensão rasteira da realidade cotidiana.” Ou seja, Superman (que aqui estendo a toda sorte de super-heróis) é um subproduto inconsciente de seu meio cultural repressivo, e como tal permanece um escravo acrítico desse sistema que o gerou, passivamente a serviço de sua ordem estabelecida. E existe aí o problema da linguagem, que perpetua o padrão, a linguagem da ideologia dominante, que condiciona a pensar dentro de seus parâmetros, conforme suas regras pré-estabelecidas. A ruptura com uma realidade começa pela própria linguagem que a enuncia e narra, o surgimento de um novo mundo, ou ao menos de uma nova mundividência, tem como precondição a criação de uma nova linguagem. A linguagem, por exemplo, que narra o mundo superprotegido pelos super-heróis das revistas em quadrinhos é o que o sustenta, nunca é rompida em qualquer nível, cumprindo invariavelmente a finalidade simples a que se propõe de manter em perfeita segurança os valores que quer conservar, onde (como diz uma citação do livro de Romano de Sant’Anna) “o mal se traduz na ofensa à propriedade privada, e o bem se resume à caridade”.

O fato é que não precisamos desses modelos, nem do cinematográfico americano, com seus homens de aço, supermorcegos, superaranhas e quejandos, nem do romanesco europeu, com seus mocinhos loiros em companhia de seus pajens ou suas mocinhas recatadas acompanhadas de suas aias. Não tem de ser assim! A única coisa que posso dizer em defesa dessas duas heranças, a europeia e a americana, é que são importantes referências, sem as quais não teria sido possível o posterior desdobramento em novos paradigmas. Mas esse reconhecimento, que de resto me parece muito justo, para por aí!

Finalizando

Finalmente, conforme havia prometido, passo agora a analisar o problema dos nossos “idealismos postos em xeque”.

Eu já disse aqui mesmo neste site do Observatório, durante as eleições presidenciais de 2010, quando a presidente Dilma foi eleita, que Lula da Silva era um Robin Hood ao contrário. Eu dizia então que os mais simpáticos ao Partido dos Trabalhadores (PT), em determinados momentos das discussões em seus comentários, como as que giravam em torno da questão do Caixa 2, suas argumentações vacilavam, se tornavam muito frágeis, pois que não existem bons argumentos em favor da corrupção. Foi quando fiz uma concessão irônica: a não ser que se considere legítimo e justo o que faz de Robin Hood, que subtrai dos ricos para dar aos pobres, o príncipe dos ladrões. Mas, por exemplo, no caso de Lula, eu dizia então, com sua política econômica enormemente generosa com os bancos, em prejuízo da imensa classe trabalhadora geradora do PIB, nem a virtude do príncipe dos ladrões seria razoável, nem isso o salvaria, já que Lula da Silva é um Robin Hood às avessas.

De lá para cá, pouca coisa ou nada mudou, a lógica do governo Dilma vai na mesma linha, a política econômica é a mesma, a sociedade continua todo mês pagando a conta duas vezes, paga quando contribui com impostos para ter os serviços públicos decentes que nunca tem, porque o dinheiro arrecadado é desviado para outros fins que não lhe dizem respeito, e, não bastasse o baixo salário que recebe a maioria esmagadora da população, ainda paga para ter os mesmos serviços pelos quais já pagou, na rede privada. Negligencia-se a educação, a saúde, a segurança pública, larga-se tudo nas mãos do poder privado, o País virou um negócio: estudantes, doentes, cidadãos são clientes! E é interessante notar que um preceito constitucional, em que o DIEESE se baseia para fazer o cálculo e estimar um valor para o salário mínimo, compactua com essa lógica de mercado, na medida em que, segundo a Constituição, a saúde e a educação, por exemplo, estão entre as necessidades básicas às quais o salário mínimo precisa corresponder e estar à altura! Concordo com o mínimo de R$ 2600,00 estimado em setembro, só não concordo que, ao recebê-lo, se tenha que pagar pelo que já foi pago. Todo problema social hoje está sendo tratado como uma questão de poder ou não poder comprar. “Estão se queixando dos hospitais, das escolas? Vamos diminuir os juros do cartão de crédito! Fácil!”

Quem quiser que diga que não, mas a meu ver o povo não será soberano enquanto não tiver acesso a uma educação com qualidade. O povo sabe o que quer quase como uma criança sabe o que quer. Se se perguntar a uma criança se ela quer uma barra de chocolate ou se quer ir à escola hoje, não é difícil prever o que ela escolherá, a barra de chocolate tem todas as chances de ser a sua imediata escolha. Sabe ou não sabe o que quer? Sabe, mas é criança. Se se perguntar a um adulto com um baixo grau de escolaridade e pouca leitura se o que ele quer são tijolos para reformar sua casa ou uma oportunidade para terminar seus estudos, é mais que provável que fique com a primeira opção, e não faltarão vereadores para cooptá-lo com extrema facilidade. Trata-se de uma criança? Intelectualmente, sim! O pirulito que o lulismo botou na boca do povo foi o poder de compra, como se pobreza, miséria, fosse só falta de dinheiro, como se pudesse se resumir a isso. Se assim fosse, não existiriam ricos miseráveis!

Lula, um neodireitista, fez o pior governo de direita que o Brasil já teve. Engana-se quem pensa que o pior governo que um país pode ter é um governo que expõe sua tirania, mostrando ao povo o quanto é capaz de puni-lo caso venha a contrariá-lo, não, o pior é aquele que procura angariar a simpatia e a fidelidade daqueles que tiraniza, criando uma relação perversa semelhante à que tinha o senhor de engenho com os seus escravos domésticos: estes se tornavam eternamente gratos àquele. É exatamente como alguém já disse, “o povo foi alforriado, mas continua na casa grande”. O que o governo Lula fez foi ampliar, para perpetuar, em escala maior, nacional, tudo o que a velha direita já fez regionalmente com a manha da política rasteira que os Brasis conhecem bem.

Pois bem, o socialismo que sonho hoje, democrático e perfeitamente possível, deve começar daí, ou seja, devolvendo à sociedade aquilo que lhe é, mais do que justo, devido! Essa é a dívida do Estado já faz um bocado de tempo. Não se trata de paraíso na Terra, revolução, arma na mão e coisas que tais, mas de promover a igualdade de oportunidades, e o resto é com o cidadão, é com cada um, inclusive o paraíso! Os neodireitistas, como herdeiros que são da direita tradicional, sempre defendem projetos que se afinam com pressupostos da tradição judaico-cristã. É segredo de polichinelo a estreita relação da Igreja com o Estado em outros tempos, e os tempos não mudaram tanto. Em princípio, não se podem conceber religiões judaico-cristãs sem que haja pobreza, miséria, pois assim, pelo menos duas das três virtudes teologais perderiam muito do seu sentido: a esperança e a caridade. Dom Hélder Câmara era bem politizado e contestador, mas era uma raríssima exceção. Isso se reflete hoje claramente nos programas assistencialistas de transferência de renda, que perpetuam, de forma dissimulada, um quadro de desigualdade que não deveria estar mais aí, pondo panos quentes em diferenças abissais na qualidade de vida das diversas parcelas de nossa sociedade que assim permanecerão, porque uma corrupção intrínseca do modelo econômico vigente permanecerá enquanto o modelo outro não for! De minha parte, penso que Jesus Cristo, e por que não também Moisés, ficaria muito feliz lá do Céu se visse cada vez mais seus humildes seguidores, iletrados e pobres de recursos, como eram seus discípulos Pedro e Marcos, com uma educação e uma saúde de qualidade, e acesso à cultura, providenciados pelo Estado, bastando, para tanto, dar-lhes o retorno, mais do que justo, devido, dos bilhões que atualmente movimentam na economia, visto que há aí um volume considerável de impostos embutidos que são repassados para esses milhões de novos consumidores, fora os bilhões do PIB que em vão estão gerando, sendo desviados para o poder privado, e isso sem falar nas cifras nada desprezíveis desviadas pelos outros corruptos e corruptores, os “oficiais”, esses que estão agora, finalmente, com a graça de Deus e todos os santos, sendo exemplarmente condenados pelo Supremo! Mais de um analista já argumentou que não adianta aplicar os recursos públicos indiscriminadamente, como os 10% do PIB na educação, por exemplo, sem que se tenha certeza de que estão sendo bem administrados. Concordo, mas enquanto não se pode contar com tal preparo da administração pública, com uma federalização da escola pública de nível médio e fundamental etc., espera-se que pelo menos cumpram as regras básicas, invistam com mais decência nos serviços públicos e cuidem para que a qualificação necessária para a sua gestão chegue o quanto antes, porque, do contrário, as coisas vão a cada dia tomando rumos indesejáveis e irreversíveis, os interesses privados vão tomando conta da coisa pública há muito entregue às baratas e, dentro de algum tempo suficiente para que as coisas se arranjem sem que se possa satisfatoriamente ter um controle que resguarde o interesse público, já não haverá muito o que fazer, tudo ou quase tudo estará feito! Irremediavelmente.

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[Wallace Lima é músico, Recife, PE]