2016 não pode começar com você enfiado na armadura de uma galáxia espacial assistindo a uma space ópera épica que fez sucesso em 1983. Garoto propaganda do mito adquirido pela Disney há três anos por 4.1 bilhões de dólares? E não é que neste 7º. Episódio o planeta Jakku já é a 8ª. maior bilheteria do mundo acumulando R$ 5,19 bilhões?
“Star Wars” virou capa dos cultuados cadernos Moleschini, canecas, bonequinhos, borrachas. A Saga, que já era boba há mais de 30 anos, vai continuar até 2020 agora que “O Despertar da Força” consagrou a personagem feminina Rey no lugar de Luke Skywalker. Líderes desta moderna mitologia, a influente revista The Economist (19/12) acredita que estão servindo de escudo para o medo, e para preencher o vazio do declínio das religiões. Junto com a cultura do emoji – segundo a Veja, “imagem que vale por mil palavras, muito útil para quem não domina nem cem”– e está consagrada a idiotização geral da humanidade. Que pode se curar vendo Frida Kahlo.
A qualidade mágica não está na galáxia inexistente.
Está na imperdível exposição da artista no Instituto Tomie Ohtake. Frida, em conexão com outras mulheres surrealistas no México. São estrangeiras exiladas, envolvidas no carisma, força e catarse psicológico e espiritual da mexicana de origem húngara judaica, Frida – identificada por André Breton como mulher e cisne.
A princesa lendária é Frida, atraindo as artistas femininas para a cultura e as tradições de seu país. São a inglesa Leonora Carrington, as francesa Alice Rahon, Jaqueline Lamba e Bridget Tichenor, a espanhola Remedios Varo, a húngara Kat Horna, a italiana Bona de Mandiargues, a suíça Lucienne Bloch, a alemã Olga Costa, as americanas Rosa Rolanda e Sylvia Fein, além das mexicanas Lola Bravo, María Izquierdo, Cordelia Urueta.
Pelo menos duas delas foram amantes de Frida, Alice Rahon e Jacqueline Lamba que era mulher do mestre surrealista André Breton. Mas todas as 14 foram atraídas pelo pensamento mágico exposto por Frida, sem efeitos especiais ou tecnologia. O próprio corpo bastava como lugar de resistência, para explorar as emoções e simbolizar com flores, frutas, caracóis, animais e conchas a sexualidade reprimida. A natureza morta ela chamava de “Natureza Viva”.
A mãe do selfie
Só de Frida são 17 pinturas e 13 obras sobre papel, nesse bolo 10 autorretratos da pintora que já foi considerada a primeira selfie-artist da história, ou mãe do selfie como a chamou o The New York Times. Ali, também, alguns exemplares da única experiência de Frida com a litografia, criadas em 1932 em Detroit depois de ter sofrido um aborto. Frida teve poliomielite na infância que resultou numa perna atrofiada. Faria mais dois abortos. Estava impossibilitada de ser mãe desde os 18 anos quando o ônibus em que se encontrava foi atingido por um bonde.
Além das várias fraturas na espinha dorsal, clavícula e pé, um para-choque atravessou sua pélvis e saíu pela vagina. Os abortos foram retratados em “Natureza Morte (Viva a Vida)” ou na litogravura “Frida y el Aborto”. O acidente está descrito na tela “A Coluna Partida”. Seu corpo torturado com cicatrizes físicas ou de amores mal resolvidos estão expostas em várias obras. E seu erotismo, celebrado no famoso “Autoretrato com Macacos” de 1943, capa do catálogo da Mostra.
O fotógrafo Nickolas Muray, um de seus amantes, a eternizou com uma foto de 1938 que virou capa da revista Vogue em 2002, quase 60 anos depois da sua morte.
Quatro fotos de Murray estão na Mostra. Frida era filha de fotógrafo e, grande modelo, deixou-se fotografar também por Lola Alvarez Bravo que captou suas emoções, Gisèle Freund e Lucienne Bloch. No total são 100 obras.
Frida era casada e apaixonada pelo artista plástico e muralista prestigiado Diego Rivera, 21 anos mais velho, que aparece em diversos quadros, ora nos braços de Frida como um menino (“El Abrazo de Amor del Universo”, “La Tierra”, “México, Diego, yo y el Señor Xólotl”, 1949), ora na sua testa (“Diego en mi Pensamiento”, 1943).
Eles se traíam mutuamente e Frida, artista, acabou mais prestigiada do que ele. No manifesto revolucionário assinado por Leon Trotski que também foi seu amante, Breton e Diego Rivera, Frida não estava fora porque sua força fazia da arte uma revolução. A energia criativa de Frida conduzia tudo com sua persona, seu penteado, suas roupas, jóias e cores, paradigma da mexicanidade pré-hispânica.
As réplicas dos vestidos e seus célebres acessórios estão expostos na Tomie Ohtake. Parte fundamental do amadurecimento do imaginário na arte mexicana, o modelo estético de Frida deixa qualquer Jedi parecer ridículo e fracote. Sua imagem celebrizada nos autorretratos de olhar austero e monocelha espessa fizeram dela a marca pop. Foi tema de um filme em Hollywood personificada por Salma Hayett, batizou um disco da banda de rock Coldplay, inspirou coleções de moda de Givenchy a Jean-Paul Gaultier, foi pioneira da personificação feminina, virou estandarte.
O espaço doméstico, que na época significava confinamento, a partir de Frida tornou-se para as mulheres expostas na Mostra um território de criação. Aqui a mitologia varre séculos com uma força quase feiticeira ou alquímica, um verdadeiro “Despertar da Força” do inconsciente, a força do bem, do amor devorador, purificador.
Mas as outras artistas representam as mutações e libertações femininas tão bem quanto ela. Olga Costa em seu quadro “Corazón Egoista”, de 1955, perfura com uma faca um cacto em formato de coração. Leonora Carrington viaja no sonho com cores e luzes românticas, representa a si mesma com Remédios Varo e Kari Horna em um ritual (“Three Women with Crows”, 1951). Remedios Varo embarca nos mitos indígenas e orientais com traços de Brueghel ou Bosch, fundos infinitos no interior de uma carruagem como em “Roulotte”, 1955. Maria izquierdo projetou o modernismo mexicano como em “Trigo Crescido”, 1940. Alice Rahon pintou “Balada por Frida Kahlo”.
Deusa azteca
Frida é o antídoto para a deterioração da humanidade e descrença do que os humanos podem fazer apenas com um cérebro, um pincel, um lápis, algumas tintas e papel ou tela. Na introdução do maravilhoso diário de Frida, “Autorretrato Íntimo”, Carlos Fuentes conta como se impressionou ao ver uma única vez aquela mulher entrando colorida no Palácio das Bellas Artes do México, cheia de anáguas, tilintando as muitas jóias étnicas. Todas as distrações musicais, arquitetônicas, pictóricas foram abolidas. A mulher, que era dor pelo corpo fraturado pela pólio e por muitos desastres físicos e psicológicos era a expressão viva de uma deusa azteca iluminada. Sua dor e seu corpo eram as fontes da arte de uma Frida anarquista e transgressora, ”espírito autenticamente subversivo” como escreveu Fuentes.
Darth Vader, Kylo Ren, planeta Jakku, quem? “As roupas de Frida Kahlo eram mais que uma segunda pele. Ela mesmo disse: vestir-se para ela era a maneira de se preparar para a viagem ao céu”, como as máscaras de Teotihuacán cobriam os rostos dos mortos para que chegassem belos ao paraíso.
Está no filme da Mostra do Instituto Tomie Ohtake: a morte chegou para Magdalena Carmen Frieda Kahlo aos 47 anos e cerca de 150 trabalhos concluídos, intocados por 50 anos na Casa Azul onde viveu 25 anos com Diego. Alguns hoje já atingem nos leilões internacionais cotações que beiram os R$ 6 milhões de dólares. Foi no dia 13 de julho de 1954 . Seu corpo, queimando, descrito pelos amigos no filme, coloria o espaço com as cores vermelho e azul. Fuentes viu sua cabeleira ardente como se fosse uma auréola, tudo se dissolvendo enquanto Frida sorria aos amigos…Mas Frida nunca cerrará os olhos. “A todos estou escrevendo com meus olhos”, escreveu no diário. As cores, os símbolos, quem tem Frida e outras artistas do quilate daquelas expostas, precisa de Star Wars?
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Norma Couri é jornalista
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Sobre a exposição
Frida Kahlo –Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México – realizada com R$ 9,5 milhões, pode ser vista no Instituto Tomie Ohtake em Pinheiros, São Paulo até 10 de janeiro. Entre 2 de fevereiro e 27 de março na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. De 12 de abril a 12 de junho na Caixa Cultura de Brasília.
Para ler sobre Frida
O Diário de Frida Kahlo, Autorretrato Íntimo, ed Record 2012
O Segredo de Frida Kahlo, Francisco Haghenbeck, ed Planeta 2011
Frida Kahlo, Raauda Jamis, ed Martins Fontes, 1987, relançado em 2015.
Frida: uma biografia, , Hayden Herrera, editorial Diana, Mexico, 1994
La Fabulosa Vida de Diego Rivera, Bertram D. Wolfe, editorial Diana, México,1994