Há várias maneiras de morrer por engano. Todas contra a própria vontade. Pensei há pouco que poderíamos morrer por engano também como fruto da nossa vontade. Por exemplo, procurar o suicídio quando nem tudo ainda está perdido. Algo como matar-nos em um processo de uma doença incurável, assim diagnosticada por erro médico. Matar-nos por ausência absoluta de esperança, quando nem todas as possibilidades foram ainda perdidas. Depois, considerei que isto seria mais propriamente um matar-se por engano. Por isso reafirmo que todas as maneiras de morrer por engano se dão contra a vontade própria.
Pode-se até dizer, se nos permitem um rápido aprofundamento, que há modos de morrer por engano mais e menos cruéis. E entre os menos, incluiria os equívocos de pátria. Por exemplo, um indivíduo latino, ou europeu, lutar sob a bandeira norte-americana no Iraque. E quando menos espera, o seu veículo explode. Ou então, de outra maneira, posar ao lado de George W. Bush em sua última foto, um segundo antes. Isto é morrer por engano, mas de uma forma menos cruel, porque repentina e com um calculado risco. Ou então, de um modo mais inocente, errar-se a avenida, o restaurante, o hotel, o país, e ser jogado, de repente, em uma zona de balas, de tiros, ou de extraordinária onda gigante. Isto também é morrer por engano, de uma forma dura, como todas as mortes, mas ainda assim, se permitem uma gradação, de uma forma menos crua e cruel.
Dos modos mais duros e terríveis, pensamos nos sentenciados, nos condenados inocentes, nos miseráveis que fazem parte do gênero humano dos criminosos de sempre, e por isso aguardam a morte em um corredor. Mas ainda estes, até a última hora, esperam um esclarecimento último, um indulto, uma salvação de misericórdia, antes que o padre ou o pastor venha cumprir o papel de encomendá-los para o céu da execução. Por isto concluímos que poucas mortes de morrer por engano são tão cruéis e desprezíveis quanto o ser caçado como um cão. Como um cão, que digo?, caçado como uma raposa. Cercado, derrubado, imobilizado, e de olhos vítreos ver o brilho e a luz do tiro uma fração de segundo antes, antes que se lhe arrombe e arranque o cérebro.
Voz de comando
O brasileiro – o cão, a raposa, esse animal híbrido, sem espécie e sem definida raça – de nome Jean Charles de Menezes morreu por engano assim, abatido com oito tiros. Morte dura e vil, que até a um cão, que até a uma raposa, que até a um coelho, seria prova de manifesta perversão e crueldade. Que dirá a um humano, perdão, Tony Blair, perdão, Bush, perdão, súditos ingleses apavorados, que dirá a um ser assemelhado a humano? Ainda que seja natural de um país de samba e mulatas exóticas, boas para a cama e para o turismo, ainda assim, e apesar disso, será que esse inferior mereceria um fim de animal raivoso em Londres?
Nada de nacional, nada de nacionalismo, compreendam. Longe de nós a intenção de exigir, que digo, de reclamar, sorry, queremos dizer, de suplicar em voz baixa, humilde, um tratamento diferente para brasileiros. Até porque as primeiras notícias divulgaram que havia sido morto um asiático. Ah, bom, se é um asiático, o mundo não treme, suspiravam todos os nacionalismos de olhos bons, os do Ocidente. Assim diziam porque o terrorista morto tinha uns olhinhos meio apertados, meio amendoados, que são um primeiro sinal de um mundo exótico, secundário, sem importância, para lá do Oriente. Depois, surprise, viram que do caldeirão de misturas do Brasil também se exportam bombas de olhinhos puxados, à chinesa, a povos indígenas da América. Depois, shit, viram que no solo do metrô aquela massa inerte, antes alegre, que batia samba e sorria para as fotos da família, mamãe, venci na Europa, depois viram que aquela mula sem cabeça nem mesmo era um terrorista. Sorry, what a pity, ladies, dogs and gentlemen.
Nada de nacionalismo, portanto. Sabemos todos que os ingleses não tratam assim a seus cachorros. Não existe no mundo povo que mais ame a esses pops, pups, todos, até prova em contrário, cachorrinhos animais de estimação. Que graça possuem a passear com os seus melhores amigos puxados por correntes nas ruas de Londres! Quanto amor, dizem até, os maldosos, quanto afeto dedicado a um semelhante. Não, a humanidade inglesa não trata assim a cachorros. Se existe uma voz de comando para matar, para atirar na cabeça de seres que se movem, essa ordem não será contra cães. É para algo muito baixo e nocivo, menos, muito menos que dogs, embora ande (simule andar), fale (simule a fala), pense (simule o pensar) e sorri (simule o sorrir). Um algo que o terror chama de terrorista. Ah, bom, sendo assim está certo. O terrorismo contra o terror. Ou o terror contra o terrorismo. Não se sabe. A ordem dos conceitos ainda não é certa.
Soco no estômago
Mas uma coisa se sabe, uma coisa é clara, límpida, objetiva, e sem qualquer zona ou sombra de dúvida. O terrorista tem cara. O terrorista tem raça. O terrorista tem nacionalidade. O terrorista tem credo, língua, classe e região. A cabeça mais que digna de ser explodida a tiros já está determinada. O terrorista somos nós, povos do terceiro mundo. O terrorista somos nós, muçulmanos. O terrorista somos nós, asiáticos. O terrorista somos nós, negros, mestiços, latinos e assemelhados. O terrorista somos todos não nascidos com os caracteres identificáveis na massa de cães e de hooligans. A nossa cabeça é o alvo, e quanto mais escura mais será o alvo, a mira, o fim. A nossa cabeça é Jean Charles de Menezes.
Quando li o relato de uma testemunha do assassinato de Jean Charles, que compreendeu os olhos do homem imobilizado no chão, depois, pelas fotos…
‘Se você olhar as fotos, os olhos dele pareciam ser pequenos, mas, quando vi o rosto dele por apenas um segundo, porque foi tudo muito rápido, os olhos dele estavam bem, bem abertos. Ele parecia muito, muito assustado…’
…quando vi esse relato, meu estômago sentiu um soco. Os olhinhos pequenos que se abriam espantados, com uma pistola apontada contra a sua cabeça, eram os meus, os nossos, dos nossos filhos, irmãos, de todos os povos não britânicos. Os olhinhos asiáticos de todos nós, terroristas.
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Jornalista e escritor