Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O futuro é sempre agora

A professora Marilena Chaui tem razão em dizer que a mídia é responsável pela crise. Houve um tempo em que a Mesbla podia mandar um vendedor embora porque este havia vendido demais. Tudo porque Milton Flores, que não sabia viver sem vender, descobriu que os comerciantes de máquinas e motores da Rua Florêncio de Abreu, em São Paulo, compravam equipamentos dos fabricantes a um preço maior do que o cobrado pela Mesbla ao consumidor paulistano. Ao entabular a negociação, Flores não imaginava que estava atravessando um processo tradicional de compras e manutenção de estoques da famosa loja, que não tinha preocupação com a remarcação de preços, nem com a possibilidade de acabarem seus estoques, por estarem totalmente defasados os preços de suas mercadorias. Naquele tempo, a televisão estava começando, e os meios de comunicação se restringiam aos jornais diários e ao rádio. A mídia era incipiente. E se a velocidade do planeta no espaço era a mesma de hoje, a dinâmica social, ao contrário, era muito mais lenta, fazendo com que a notícia de uma ocorrência levasse dias e meses de um ponto a outro. A Mesbla estava nesse ritmo e os meios de comunicação também.

As declarações do ministro Palocci na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, na semana passada, não mexeriam imediatamente com a Bolsa de Valores e com o câmbio, como aconteceu, se não vivêssemos um novo tempo, diferente daquele tempo da Mesbla. Segundo Lillian Vitte Fibe, a colunista eletrônica de economia do UOL, enquanto Palocci ia falando, logo no inicio, a Bolsa ia subindo, numa sincronia impressionante. Se fosse, também, há alguns anos, este depoimento do ministro da Fazenda seria a portas fechadas ou pelo menos fechado num pequeno círculo do Congresso, e só teríamos conhecimento de seu conteúdo à noite ou no dia seguinte, pelos jornais, e não em tempo real para todo o país, como foi. Até mesmo esta idéia de transparência teria outro sentido se não tivéssemos desenvolvido a este ponto as tecnologias de informação e o estilo de atuação da mídia.

Como velocidade, a mídia faz com que o fato se esgote rapidamente, abrindo espaço para outro acontecimento de relevância, ou simplesmente tem seu espaço arrebatado. Horas depois da fala de Palocci, na manhã seguinte, o presidente Lula dizia a todo o Brasil que pretendia ‘adotar o debate quando candidato’ e esta declaração – justificada e consertada como um equivoco do presidente, que não quis anunciar-se candidato, mas colocar-se na situação hipotética de se fosse candidato – acabou tomando grande parte da cena, até então ocupada pela fala de Palocci. O disse e o desdisse não teriam tanta importância se os meios de comunicação hoje não conseguissem levar as mensagens em tempo real a milhões de pessoas.

Foi o que aconteceu: quando ouvi o presidente dizer alto e bom som ser candidato, imediatamente concluí que ele estava anunciando isso ou deixara escapar, mas era um fato real para milhões que como eu ouviram Lula, mesmo, logo a seguir, tendo recuado. O desdobramento natural, no mesmo dia, foi a transformação da reunião do PSDB, destinada à eleição da nova direção, em discursos inflamados contra o oponente. Sinal claro, ainda, de que a campanha ‘Lula no governo, vergonha para o país’, que vem sendo veiculada no rádio e na TV, deve se intensificar.

Distância menor

Os acontecimentos se encadeiam de tal forma que desdobramentos e fatos novos criam futuro a todo instante. Não é exagero dizer que o futuro é sempre agora. E que a mídia, sim, tem papel fundamental, mas fogem a seu controle os rumos dos acontecimentos.

Neste contexto vem o papel do jornalista, a responsabilidade do profissional que cobre o Congresso. O jornalista às vezes chega a se confundir com o meio ou a se equivocar diante de tantos e tão expressivos acontecimentos. O comentário político de Franklin Martins, no Jornal da Globo, no mesmo dia da entrevista de Palocci, estava mais para político do que para jornalista: ao confessar que estranhava o comportamento da oposição, de forma perplexa e ingênua, deixava de esclarecer o espectador, e só com o passar dos dias se redimiria, com as verdadeiras razões da oposição: PSDB e PFL não estavam perdendo uma oportunidade, como disse Martins, mas limitaram suas perguntas ao ministro a temas econômicos numa jogada política – deixariam as acusações sobre Ribeirão Preto para a CPI dos Bingos, onde Palocci pode estar mais vulnerável. O Jornal da Globo, que entra no ar cerca de três horas depois do Jornal Nacional, deste se diferencia por poder se aprofundar mais nas matérias mais importantes do dia e tem no comentário de Franklin Martins um de seus principais recursos. Mas, nesse dia da fala de Palocci, Martins ficou um quilômetro antes da linha de chegada.

Os congressistas respondem individualmente, grosso modo, por 300 mil brasileiros. Entretanto, grandes decisões têm sido tomadas por 300 deles, que representam 90 milhões de brasileiros, mas que atingem os mais de 180 milhões de habitantes do país. O Congresso atual deixa bem para trás a Casa de alguns anos e, principalmente, aquela dos tempos de ditadura. Não só pelo trabalho técnico, desenvolvido com muito mais informações, que permite ao parlamentar votar ou criar projetos mais afinados com os interesses da população, mas também pela independência do Poder em relação ao Executivo e a organização que os partidos alcançaram. Entretanto, há interesses pessoais, partidários, suprapartidários, de governistas e de oposição, e interesses verdadeiros do país se misturando nos embates. Como ontem, hoje o povo está distante, nos seus lares, no trabalho ou em trânsito, enquanto em Brasília se desenrolam as atividades parlamentares. Mas, a ampliação da cobertura jornalística diminuiu sensivelmente a distância do Parlamento da população. Em contrapartida, a responsabilidade da imprensa aumentou além mesmo da proporção de crescimento da cobertura jornalística.

Boca para contar

Diante da responsabilidade maior e das influências do clima politiqueiro do Congresso a que todo profissional está sujeito, qual o papel do jornalista? Recorremos a um antigo texto sobre a visão da Igreja Católica sobre o papel da comunicação, escrito pelo então bispo-auxiliar de São Paulo, D. Lucas Moreira Neves, publicado na edição número 40 dos Cadernos de Jornalismo e Comunicação/Edições JB, que é muito oportuno para a presente situação:

‘Meios de Comunicação Social a serviço da verdade são MCS capazes de conhecer, valorizar, respeitar, defender, propagar a verdade de onde venha e onde a encontrem. E decidimos a fazê-lo. Ora, a primeira forma de serviço à verdade, forma obscura e despretensiosa mas indispensável, é o escrupuloso respeito à humilde verdade dos fatos e acontecimentos. Conhecer com toda possível exatidão aquilo que sucedeu, ser informado, receber subsídios para a inteligência e a interpretação dos fatos: estes são direitos sacrossantos de todo homem, direitos de todo leitor ou ouvinte. Neste sentido, sonegar uma notícia ou uma informação porque contraria interesses ou prejudica uma linha de pensamento, uma ideologia ou uma práxis é pecar contra a verdade. Fornecer notícia e informação mas com tal arte que as palavras mais escondam que revelem a realidade é pecar contra a verdade. Deturpar um fato, conscientemente ou por negligência na sua averiguação, é pecar contra a verdade. Desorientar a mente do outro com interpretações subjetivas fantasistas ou imaginárias é pecar contra a verdade.’

A visão de D. Lucas pode se resumir numa única idéia: a verdade sempre tem que ser colocada acima de qualquer circunstância, por ser ela a máxima em que sempre se baseou nosso trabalho e nossas vidas. Mesmo com o jogo político, que abarca a todos, inclusive muitas vezes o jornalista, e com as pressões do tempo a incidir a todo momento no desenvolvimento do trabalho, devemos nos desviar de mitos e utopias, devaneios e faz-de-conta, fatalismo e evasões, conclamando a verdade como alvo do arqueiro bem treinado e luz com a qual a ignorância, mesmo apoiada pelos mais fartos recursos, não pode jamais.

A professora Marilena Chaui tem mesmo razão: se a mídia não tivesse chegado aos recursos e sofisticação de cobertura que agora temos, a propina nos Correios, o mensalão e tudo que cercou estes dois acontecimentos não teriam passado de ocorrência estranha, distante e um tanto fantasiosa para ser verdade. Infelizmente, os tempos da velha Mesbla já se foram e os meios de comunicação não têm apenas olhos e ouvidos, mas boca para contar tudo que acontece por trás das paredes de palácios e repartições públicas. E de forma rápida, como nunca se viu antes.

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Jornalista