A medicina tem talvez uns cinco mil anos de existência. Foi iniciada de braço dado com as religiões e os diversos deuses, talvez milhares, da antiguidade. Afinal, as duas usavam principalmente uma qualidade das pessoas: a credulidade desenfreada. Qualquer coisa que se afirme, as mesmas acreditam. O que explica a infinidade de crenças, credos, crendices, religiões, homens que subiram aos seus, demônios que habitavam as entranhas na terra, mandingas, simpatias, sortilégios, coisas impressionantes aos nossos olhos hoje.
Já criança, ainda estudando no primário, me lembro da minha família e a vizinhança correndo atrás da panacéia da época. Um pedaço de madeira do ipê roxo que fornecia maravilha, que dava um chá que era um milagre para a saúde. Depois dos relatos miraculosos da descoberta da panacéia, finalmente médicos querem mantê-la escondida das pessoas, passa a moda, e curado mesmo, ninguém foi. Mais tarde, apareceu a sétima maravilha curativa, melhor ainda, o chá da folha do confrei, que limpava por dentro e por fora. Ora, médicos queriam vender remédios, em vez de receitar chás que salvariam a humanidade, para ganhar dinheiro. Pessoas abandonando os remédios, pois era bom para tudo, e que foi muito utilizado por naturalistas em forma de chá. Desde cicatrizante da pele até para as doenças internas mais variadas e ilimitadas. Não adiantava aconselhar cautela às pessoas, pois as testemunhas eram impressionantes. Até que passou a moda e ficou apenas o aumento de câncer de fígado relacionado ao uso de chá de confrei, que contém dois alcalóides que causam tumores malignos no fígado de animais.
‘O senhor não acredita, doutor’
Quem não se lembra do nosso presidente da República, José Sarney e o naturalista Augusto Ruschi, 72, fazendo pajelança para curar um envenenamento de sapo, fatal. Após o ritual, Ruschi disse que estava curado dos males do veneno, mas que trataria seus problemas de fígado e estômago pela alopatia.
Há pouco, toda revista de divulgação de saúde promovia a quintessência da vida sadia, o suco de capim, rico em clorofila, que ajudava a oxigenar o cérebro das pessoas como se elas tivessem cabeças de abóbora. Pois apesar da semelhança da clorofila com a hemoglobina, ela não carrega nada no sangue humano. Nem comendo sangue isto se dá, e se o suco fosse injetado na circulação, seria um desastre.
Circulou pelo Rio Grande do Sul a ‘descoberta’ de um frei, Romano Zago, que afirmava, ajudado por infalíveis testemunhas, que descobrira a cura de todas as formas de câncer, sendo entrevistado pelo folclórico médico jornalista Abraão Winogron em seu programa de rádio. Era a descoberta pelo mesmo de que folhas de babosa, mel e colheradas de cachaça faziam milagres.
Teve a moda de usar gotas de creolina para tratamento de ‘gastrite’ ou o que o crédulo achava que fosse isto. ‘Eu sei que o senhor não acredita, doutor…’ Trata-se de um veneno que não existe indicação para uso humano nem externo ou muito menos interno.
‘Pena de morte’
Sem falar nas curas por cirurgiões e médicos espíritas, como Arigó, Garrincha, Edson Queiroz etc… E as benzedeiras, mães de santo, curandeiros e seus assemelhados, que circulam entre o povo e divulgam dentro da internet. O que causa admiração que tanta cura ainda sobre pessoas para tirar fichas no SUS.
Sem podermos deixar de fora a maravilhosa urinoterapia como forma de curar os males do corpo pelo método natural. Já que no passado também foram usados pó de múmia e excrementos de animais.
O jornalista Walter Medeiros, RN, num típico comportamento histriônico apelando para a falácia do argumentum ad populum, deu neste Observatório o artigo ‘A notícia que ninguém publicou‘. Mais afastado ainda do conhecimento médico que o mesmo não possui, usa um argumentum ad hominem ao atribuir ao CFM atos de vil mesquinharia:
‘O parecer do Conselho Federal de Medicina sobre a prática da auto-hemoterapia, ao invés de esclarecer, mostra uma série de dúvidas, mas reage cegamente à realidade atual, quando cidadãos de todos os recantos do Brasil estão se beneficiando do tratamento, numa cruzada clandestina em defesa da própria saúde e vida. Ignorar que a auto-hemoterapia é uma questão da ordem do dia que precisa ser resolvida com responsabilidade institucional, mas continua submetida à tentativa de tapar o sol com a peneira.
‘Na ânsia cega de condenar antes de avaliar e pensar, os Conselhos de Medicina – não os médicos, pois encontramos médicos que querem que haja um aprofundamento do estudo do assunto – talvez nem observem que a auto-hemoterapia tem tudo para se transformar em uma nova especialidade médica e, a partir de então, a técnica ser aplicada de acordo com protocolos cujas bases já estão praticamente estabelecidas. Vamos torcer para que as energias do universo inspirem as pessoas da área a fim de evitar que continue sendo aplicada esta pena de morte para tantos brasileiros.’
Sangria para prevenir
E é seguido por comentaristas deste OI, esmiuçando a ‘orquestração médica e das indústrias farmacêuticas em promover a doença na população para dela lucrar eliminando a panacéia’.
A sangria, e a sua mística no pensamento popular, foi usado por milhares de anos como base de tratamentos por sua ampla aceitação no imaginário do leigo. Usada até hoje em dia pela medicina tradicional chinesa, trazida para o Brasil, e na Índia, por populares. Uma forma de ‘limpar’ o sangue ruim que mostra a sua intoxicação até na pele. Quantas vezes vem o leigo ao consultório para querer fazer um exame de ‘sangue’ para saber se está ‘ruim’ pelas infecções de pele que apresenta. Com muito custo, a classe médica conseguiu que ela fosse abandonada na medicina científica, tal a penetração do gosto popular. Assim como o uso de laxantes rotineiros para ‘limpar’ os intestinos de toxinas. Não demorou muito no século 19, após a invenção da seringa hipodérmica, para pensarem em se auto-inocular.
Em Lucas, encontramos a passagem em que Cristo está a praticar curandeirismo e lembra a idéia que o povo poderia ter dele. A que tinha dos médicos judeus na época: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’ (Lucas, 4; 23).’ Tal a descrença nos seus tratamentos.
Seria muita pretensão do nosso jornalista pensar que tenha mais entendimento de saúde e de dedicação ao tratamento de pessoas do que os que optaram passar a vida neste mister. Ao contrário da história real retratada no filme O Óleo de Lourenço, em que os pais passam alguns meses se dedicando ao estudo para salvar o seu filho da doença, médicos fazem isto há milênios, mas para salvar os filhos dos outros. Deixam seus filhos para passar a noite de plantão para atender pessoas que nem conhecem. A busca das vacinas demonstra que a má intenção do jornalista não prospera. Por que médicos dedicam décadas de suas vidas pesquisando, e laboratórios fazem investimentos para erradicar doenças que poderiam servir de custo obrigatório para pais e para governos? Para que médicos divulgam métodos de prevenção de doenças, combatem epidemias, fazem pré-natais, ensinam tratar e cuidar das crianças se a doença daria maior lucro, como o que ocorria com a paralisia infantil, em que se criou uma indústria cara fabricação de pulmões de aço? Seria crível acreditar que pessoas que se envolvem em combate ao fumo, contrariando o gosto popular, e contra o uso de álcool, e das drogas, dois gostos que escravizam pelo seu prazer milhões, estaria preocupado com alguma outra coisa? Para que não deixar estas pessoas adoecerem e encherem os consultórios de doenças preveníveis, crônicas, e portanto mais lucrativas? Para que médicos fazem trabalhos caros, demorados, financiados pelo governo, e a maior parte pela indústria, para depois dizer: vamos abandonar o mesmo e perder milhões de dólares investidos porque não funciona, se o paciente jamais saberia do que está adoecendo ou morrendo? Se o paciente passa milhares de anos fazendo sangria para prevenir e para curar doenças, graças à força dos testemunhos que validavam esta terapia?
Teoria da conspiração
Não me parece que os médicos e pacientes estejam precisando do jornalista para agora descobrir terapia abandonada no século 19, que tentou novamente ser recriada no início do século 20, e que hoje o nosso divulgador acha que encontrou a descoberta finalmente da pedra filosofal da cura. Agora, graças ao seu desconhecimento científico de jornalista, a coisa vai dar certa.
Órgãos como o FDA norte-americano e a Anvisa foram criados justamente com o objetivo de validar os tratamentos, pois dependendo do gosto do paciente, ele mantém tratamentos inúteis a vida inteira, ou se nega a fazer tratamentos essenciais pelo seu desconforto. Passar a vida se picando diariamente para regular a glicose, ou manter comprimidos para diversos males. Estes órgãos estão justamente para validar tratamentos e descartar todo o tipo de falha encontrada possível. Para o mesmo não perder tempo, dinheiro e saúde. Mesmo que a população ache o maior barato se submeter a coisas mirabolantes. Por que a pesquisa desenvolveu avaliações que nem o médico e o paciente sabem o que está sendo fornecido ou usado? Justamente porque por testemunho, tanto do médico, como para o paciente, tudo funciona. Todos se sentem agraciado pelo medicamento. E quando isto ocorre igualando o resultado entre o placebo e a medicação avaliada, se conclui que ela não age. Para que o teste de um novo medicamento pode demorar de 10 a 15 anos, se as pessoas se sentem bem de saída? Medicina não se faz pelo gosto do freguês e nem por via eleição do que as pessoas achem que funciona.
Felizmente, o nosso jornalista reclama de que é o soldadinho do passo certo ignorado pela mídia mais madura para não cair nesta teoria da conspiração da Rede Globo.
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Médico, Porto Alegre, RS