A tragédia de Belsan escancarou o difícil relacionamento entre o presidente da Federação Russa Vladimir Putin e a Chechênia.
Putin nasceu em Leningrado (1952), atual São Petersburgo. Diplomou-se em direito e língua alemã, e logo depois ingressou nos quadros da KGB (Komitet Gosudarstvennoj Bezopasnosti – Comitê de Segurança do Estado), a polícia secreta soviética. Em 1983, foi vai para a Alemanha Oriental como agente da contra-espionagem. Os anos que passou neste país são uma parte totalmente obscura de sua vida. Fato é que, com o fim da União Soviética, voltou à sua cidade natal como o principal assessor do prefeito. Em 1996 foi para Moscou trabalhar com presidente Boris Yeltsin como chefe da FSB (Federalnaja Sluzhba Bezopasnosti – Serviço Federal de Segurança), o novo nome da antiga KGB. Em 1999, Yeltsin o nomeou primeiro-ministro. No ano seguinte, foi eleito presidente da Rússia com 50% dos votos – e reeleito em 2004.
A Chechênia é uma pequena república da Federação Russa e suas dificuldades de relacionamento com Moscou vêm desde a época do império. Com a degradação da União Soviética, e seguindo as pegadas de outras repúblicas, em 25 de novembro de 1990 a Chechênia tornou-se independente. Em 1992, a União Soviética deixou de existir e nasceu a Federação Russa, a Chechênia recusou-se a fazer parte dela. Um ano antes, o ex-general da Força Aérea soviética Dzokar Dudajev assumiu o poder num golpe de Estado e convocou um plebiscito, no qual foi ratificada a independência do país e ele próprio escolhido presidente, com 24% dos votos.
Em abril de 1992, Dudajev dissolveu o Parlamento e este foi o estopim para o início de uma guerra civil. No início de dezembro de 1994, Boris Yeltsin autorizou a intervenção militar na Chechênia, e em dez dias blindados e 40 mil soldados russos entram na capital, Grozny. A cidade foi devastada, com a morte de milhares de civis. Em maio de 1995 os russos consideram o país conquistado. Enganavam-se. O que ficou conhecido como a Primeira Guerra da Chechênia (1994/1996), transformou-se na maior derrota jamais sofrida na história do exército russo.
Em agosto de 1996 a Federação Russa viu-se abrigada a assinar um acordo de paz com a Chechênia. A guerra havia matado 10% da população local (100 mil mortos) e 70 mil soldados russos tombaram no campo de batalha. O acordo previa o prazo de 5 anos para a obtenção de um estatuto nacional checheno. Todavia Moscou continuou a não lhe reconhecer a autonomia, mas os independentistas – animados pelas vitórias militares – estavam cada vez mais decididos à separação.
Capital em ruínas
A Guerra da Chechênia é um complexo de múltiplas tensões que atravessam todo o Cáucaso e que neste país encontram convergência. Seria muito simples estabelecer como motivo o espírito separatista. Existe a disputa entre grupos armados, a crescente influência dos fundamentalistas islâmicos, a importância estratégica do Cáucaso para a Rússia e, mais do que tudo, o interesse econômico ligado ao trânsito de petróleo pela região. Os oleodutos que passam pelo país transportam petróleo do mar Cáspio para o Mediterrâneo, reponsáveis por 23% das exportações russas e 12% de seu Produto Interno Bruto. A tudo isso, pode-se acrescentar o medo que a separação da Chechênia sirva de exemplo para outras repúblicas.
As diversas facções armadas começaram a invadir os estados vizinhos a fim de implantar um estado islâmico, o que serviu como pretexto para Putin começar a Segunda Guerra da Chechênia (1999), ligando sua sorte política à normalização desse país.
O poder de Putin numa Rússia onde não existe uma democracia de fato baseia-se no segredo irresponsável. Ele não dá satisfações a quem quer que seja daquilo que faz ou deixa de fazer. É um poder que não tem que responder à opinião pública. Nem sobre os mortos no desastre do submarino atômico Kursk no estreito de Bering, nem sobre as vítimas do teatro de Dubrovka, nem dos aviões Tupolev que foram explodidos por kamikazes. Putin nada diz e não é perguntado, nem pela Rússia nem pelo mundo democrático. Não interessa se a Chechênia foi transformada em um cemitério, que a capital Grozny esteja em ruínas, que a tortura seja um hábito das tropas russas, que o desemprego desse país atinja a marca de 90%.
Visitas guiadas
Antes dos acontecimentos de Beslan, a voz mais forte contra a invasão da Chechênia era do jornalista e filósofo francês Andrè Glucksmann, de 67 anos, que mantém a mira apontada para os regimes totalitários.
Quando ainda ninguém, além dos planejadores do ataque, poderia imaginar a tragédia que se abateria dali a poucos dias sobre Beslan, Glucksmann escrevia para a revista do Corriere della Sera (26/8/2004) o artigo ‘Chechênia, shopping e normalidade (assim Putin faz propaganda)’. A matéria é ilustrada com a foto de uma bela jovem, muito bem vestida, andando por uma rua de Grozny. Vêem-se ao fundo os trabalhos de reconstrução da cidade e a moça carrega na mão uma bolsa de compras na qual está escrito: ‘A.S. Fashion Style – Moda Italy’.
Glucksmann começa seu texto de forma irônica, dizendo estar temeroso pois achava que, ao tolerar uma guerra colonial de extermínio, os europeus estivessem vendendo sua alma; que, convidando para a mesma mesa como irmão um ex-oficial da KGB, cujo exército esta massacrando um povo inteiro, os dirigentes estivessem vilipendiando os princípios basilares do projeto europeu. Temeu Glucksmann pelos civis abandonados no mundo quando o Museu do Holocausto, de Washington, colocou a Chechênia em primeiro lugar na sua lista ‘Genocide Watch’ (observatório de genocídios); e finalmente teve medo quando viu pela televisão Putin pavonear-se por Roma, Madri e Berlim.
Mas Glucksmann concluiu que estava errado, e que a opinião pública faz muito bem em não preocupar-se com o calvário de 1 milhão de chechenos: eles não existem. Assim como não existe Grozny, a primeira capital européia arrasada depois de Varsóvia (em 1944). Não existem dezenas de milhares de mortos, centenas de milhares de refugiados em países vizinhos. Não existem as matanças, os estupros, as ‘zatchistkas’ (operações limpeza), as torturas, os campos de filtragem. Como disse o presidente do Conselho de Ministros italiano Silvio Berlusconi, ‘em Grozny tudo está bem’.
Claro que ‘tudo está bem’: no centro foram reconstruídas duas ruas. Jornalista e fotógrafos ocidentais são convidados a inspecioná-las durante as visitas guiadas por agentes da FSB.
Catarina II tinha suas ‘aldeias Potenkin’, os dirigentes soviéticos as viagens programadas pela pátria do proletariado, Vladimir Putin sua Grozny ‘normalizada’.
‘Cenário de Hollywood’
Nenhum jornalista ou fotografo tem autorização de transitar na Chechênia sem ser ‘guiado’. Correriam o perigo de cair em uma fossa comum onde são sepultados os mortos civis, ou encontrar um soldado bêbado achacando uma velha, ou milicianos que raptam jovens para seus chefes ou para si próprios. É esta a Rússia que o presidente francês Jacques Chirac classificou como ‘na primeira fila entre as democracias pelo respeito aos povos em primeiro lugar, pelo diálogo entre culturas e, simplesmente, pelo respeito aos outros’.
Glucksmann continua dizendo que deve estar divagando, já que Putin afirma que a ‘guerra acabou’. Mentira perfeitamente digerida pelo Ocidente, que insiste em acreditar que a resistência chechena esteja ligada à al-Qaeda.
A Chechênia é a terra do ‘não direito’. A FSB está experimentando um sistema de abolição do princípio da realidade e da submissão por meio do terror. A segunda vítima da guerra de Putin, depois da população, é a verdade – e a imprensa livre e independente. A mídia repete docilmente a propaganda do Kremlin, como nos velhos e ‘bons’ tempos.
Andrè Glucksmann termina seu artigo contando o seguinte caso: Putin estava sobrevoando Grozny e, ao tomar ciência da destruição, exclama: ‘Que horror!’. O ministro da Economia, o responsável pela reconstrução da cidade, concorda e acrescenta cinicamente: ‘Parece até um cenário de Hollywood, para filme da Segunda Guerra Mundial’.
Convém reiterar que o artigo foi escrito antes da tragédia de Beslan, portanto não foi usado como justificativa ou explicação para o injustificável e o inexplicável. Mostra tão-somente o que garantiu Vladimir Putin ao começar a Segunda Guerra da Chechênia: ‘[Nós] os seguiremos [os chechenos] até nos banheiros e os exterminaremos’ – e está cumprindo rigorosamente sua promessa.
[Texto de apoio: ‘Triste verita sulla guerra dell’orrore’, de Eugenio Sacalfari, la Repubbllica (5/9/04)]