Está na mídia a queda-de-braço entre o presidente americano George W. Bush e o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. A querela, que vem de longe, tem a ver com as ambições do governo iraniano de produzir energia nuclear. O Irã diz que é para fins pacíficos. Os Estados Unidos, que é para fins bélicos, criando ainda maior instabilidade política na conturbada região. Mas um fato que não pode passar ao largo é que a situação atual dos direitos humanos e da reforma social na República Islâmica do Irã não pode ser entendida adequadamente se não levarmos em conta o desenvolvimento histórico das perseguições contra a comunidade bahá´í – uma história muito importante para explicar a crise cultural pela qual passa a sociedade iraniana nos dias de hoje, à medida que seus líderes se vêm obrigados a enfrentar o desafio da modernidade.
Pois bem, a idéia de que deveria haver mensageiros de Deus depois de Muhammad é vista por muitos muçulmanos como heresia – sendo uma das razões teológicas subjacentes que levaram às perseguições movidas contra os bahá´ís. A fé bahá´í tem sido perseguida no Irã desde sua fundação em meados do século 19. Cedo os seguidores enfrentaram oposição violenta das autoridades religiosas islâmicas e das dinastias sucessivas. Calcula-se que cerca de 20.000 pessoas pereceram nesses massacres durante o século 19. Estas perseguições continuaram com intermitência no século 20, coincidindo freqüentemente com a necessidade do governo de se escorar no apoio dado por integrantes da liderança islâmica do Irã. As perseguições ocorriam independente da orientação política vigente.
A repressão sistemática aos bahá´ís, que constituem a maior minoria religiosa daquele país, com cerca de 350 mil seguidores, se revela nos ataques contra os bahá´ís dirigidos por autoridades locais ou regionais. Há pouco mais de 100 anos, logo em 1903, por exemplo, foram mortos 101 bahá´ís na cidade de Yazd por turbas incontroláveis incitadas por clérigos hostis. Outras vezes, a opressão aos bahá´ís fazia parte de um programa nacional oficial. Durante os primeiros anos do Regime de Pahlavi (1927-1979), o governo formalizou uma política de discriminação contra os bahá´ís como uma concessão ao clero. Começando em 1933, proibiram a divulgação de literatura bahá´í, os casamentos bahá´ís não era reconhecidos, e os bahá´ís funcionários do governo foram rebaixados de posto ou demitidos. Posteriormente, as escolas bahá´ís foram fechadas.
Violação flagrante
Outra onda de perseguições teve início em 1955, quando o regime de Pahlavi permitiu a radiodifusão em âmbito nacional de uma série de vilipendiosos sermões contra os bahá´ís feitos por um conhecido clérigo xiita de Teerã — com o objetivo de tornar os bahá´ís ‘bodes expiatórios’ para desviar a atenção pública de políticas impopulares do governo.
O entendimento dos bahá´ís é que este padrão de perseguição é uma manifestação dos mal-entendidos e temores que freqüentemente acontecem quando surge uma nova religião, cuja matriz é uma ortodoxia já estabelecida. Tal padrão de reação ocorreu sempre na história das religiões; virtualmente todas as grandes religiões do mundo enfrentaram.
A Anistia Internacional, em fins de fevereiro de 2006, trata da violação dos direitos humanos que ocorreram nos últimos dezoito meses no Irã e focaliza, particularmente, as ações tomadas pelas autoridades iranianas como resposta à enorme inquietação que ocorre entre as minorias étnicas do país, especialmente árabe e curdo; à contínua repressão às minorias religiosas, especialmente aos bahá´ís.
No dia 20 de março, a relatora especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Crença ou Religião, Asma Jahangir, colocou o dedo na ferida ao afirmar estar ‘altamente preocupada com as informações sobre o tratamento que está sendo dado no Irã aos membros da comunidade bahá´í naquele país’. Asma Jahangir menciona uma carta confidencial enviada no dia 29 de outubro de 2005 pelo presidente do Comando Geral das Forças Armadas no Irã a várias agências governamentais e que foi trazida à sua atenção. A carta, que é endereçada ao Ministério de Informação, à Guarda Revolucionária e a polícia, afirma que o líder supremo, o ayatoláh Khamenei, instruíra o Comando Central para identificar todas as pessoas seguidoras da fé bahá´í e monitoram as suas atividades. A carta vai além. Pede que os destinatários, de uma forma altamente confidencial, coletem toda e qualquer informação sobre os membros da fé bahá´í.
A sua apreensão é altamente justificável em se tratando da política de direitos humanos vigente no Irã. Pois monitorar as atividades de cidadãos somente porque seguem uma religião diferente da religião estatal constitui uma interferência injustificável e inaceitável sobre os direitos de membros de minorias religiosas. E conclui expressando sua preocupação quanto ao uso posterior de tais informações para aumentar ainda mais a discriminação e perseguição das quais têm sido vítimas os membros da fé bahá´í, o que se constitui numa violação flagrante de normas internacionais.
Terrível cicatriz
Tais ações surgem em meio a ataques que vêm ocorrendo através da mídia oficial iraniana, idênticos aos que ocorreram no passado precedendo ações criminosas de fanatismo contra os bahá´ís. O jornal diário oficial Kayhan já publicou mais de 30 artigos nas últimas semanas, todos difamatórios para provocar a ira dos leitores contra os seguidores da fé bahá´í. Emissoras de rádio e televisão também transmitem notícias e programas tendenciosos contra os bahá´ís e suas convicções. No último dia 25 de maio, autoridades iranianas prenderam 54 bahá´ís na cidade de Shiráz. A maioria deles eram jovens e estavam todos engajados em serviço humanitário quando foram presos. Foi uma das maiores investidas contra membros da fé bahá´í desde os anos de 1980. Não são ainda claras as acusações específicas para justificar as prisões, embora seja um fato conhecido que no passado todas as prisões foram sumariamente sob falsas acusações. As prisões coincidiram com investidas contra seis lares bahá´ís, quando computadores, notebooks, livros e outros documentos foram confiscados. Nos últimos 14 meses, 72 bahá´ís em todo o Irã foram presos e mantidos prisioneiros por várias semanas.
Não há justificativa alguma para novas ações criminosas, como as que já ocorreram no passado. Afinal, não é de hoje que pugnamos por um mundo que vem celebrando uma decantada Era dos Direitos, talvez o maior legado deixado pelo último século.
Mas, infelizmente, pelo andar da carruagem, enquanto o mundo dorme, a humanidade, já ferida tantas vezes, encontra-se diante de uma nova forma de extermínio deliberado. Que seja esta a geração que levante suas vozes, em alto e bom som, para coibir o redesenhar de mais uma terrível cicatriz na face espiritual da espécie humana.
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Jornalista, autor de Nova ordem mundial, novos paradigmas, co-autor de Direitos humanos – Conquistas e desafios e Quem está escrevendo o futuro?