A chegada de Jair Bolsonaro ao poder trouxe novas e graves incertezas para o já fragilizado cenário ambiental brasileiro. A ausência de diretrizes explícitas para a área em seu plano de governo [1] , na verdade, escamoteava uma perversa agenda ambiental a ser implementada pelo candidato. Logo no início do mandato, a nomeação de um réu [2] em crime ambiental, Ricardo Salles, como ministro do Meio Ambiente já revelou o propósito de uma agenda destrutiva cuidadosamente pensada, confirmada pelo próprio ministro na reunião ministerial [3] de abril de 2020:
“Nós temos a possibilidade nesse momento que a atenção da imprensa está voltada exclusiva, quase que exclusivamente pro (sic) COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado, mas não é isso que eu quero falar.”
Esse mesmo assunto já havia sido objeto de comentário de Bolsonaro em discurso no Planalto, seis meses antes da referida reunião ministerial, quando se dirigiu a garimpeiros recebidos em audiência no Palácio do Planalto:
“O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério! […] Como é que pode um país rico como o nosso, que tem toda tabela periódica embaixo da terra e continuar vendo vocês aqui sofridos? [4]”.
Nessa audiência, o presidente se dirigiu a representantes de garimpeiros de ouro da Amazônia, os mesmos que recorrentemente figuram nos telejornais, na qualidade de invasores de territórios indígenas e destruidores do meio ambiente.
Essas manifestações de membros da cúpula do executivo, muitas vezes tomadas equivocadamente como bravatas, revelam a face nua e crua da política ambiental do governo Bolsonaro: ao contrário da prerrogativa constitucional de proteger e garantir o direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações [5]” (BRASIL, 1988), Salles atuou abertamente como um lobista pró-desmatamento, enfraquecendo os órgãos oficiais de controle. Por esse motivo, foi recentemente acusado pelo STF de criar dificuldades à fiscalização ambiental num caso de apreensão de 226 mil metros cúbicos de madeira extraída ilegalmente na divisa dos estados do Pará com o Amazonas [6].
A postura de Salles revela a verdadeira agenda ambiental do governo Bolsonaro, incentivando o lobismo e praticando a chamada “advocacia administrativa”, crime em que o agente público atua em benefício de interesses privados. Em busca de ampliar a exploração da “tabela periódica toda embaixo da terra”, o setor minerário conseguiu impor a formação de um Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados com o objetivo de reformular o Código Mineral Brasileiro. Com objetivos nada modestos, o próprio coordenador do GT, Deputado Evandro Roman (Patriota – PR), revelou o anseio de entregar a Arthur Lira e Jair Bolsonaro um documento que atenda aos anseios de pequenos e médios mineradores e garimpeiros. A ideia é ampliar a participação do setor para dez por cento do PIB – meta nada modesta, pois hoje a mineração, excluindo petróleo e gás, responde por cerca de dois e meio por cento do produto interno nacional.
Essa meta ambiciosa explica em boa medida o texto que foi apresentado pelo grupo de trabalho. Ele contém uma série de cláusulas que colocam o interesse econômico extrativo predatório acima das garantias de proteção ambiental, precaução, segurança climática, vida digna, acesso à água e tantas outras. Essa proposição legislativa vai na direção oposta das diretrizes globais de proteção dos ecossistemas, das florestas, da biodiversidade e redução das emissões de carbono.
Nas últimas semanas de 2021, diversas entidades emitiram notas [7] alertando para a gravidade dessa proposta. Por exemplo a conversão da atividade minerária em “atividade de utilidade pública e essencial à vida” dialogam diretamente com o artigo que pressupõe a vedação à criação de unidades de conservação, áreas de proteção ambiental, tombamento e outras demarcações que restrinjam a atividade minerária. A análise do texto aponta diretamente para a intenção de seus formuladores de colocar a atividade de mineração e o interesse econômico acima de todos os demais interesses sociais. Evoca ainda argumentos como o da rigidez locacional como critério para que a atividade detenha privilégios sobre os interesses dos municípios, na medida em que condiciona o ordenamento territorial à não inviabilização do aproveitamento mineral.
Na prática, o objetivo é promover a Agência Nacional de Mineração a um status de ‘super agência’, responsável pela gestão de litígios ligados aos territórios, hierarquizando a exploração mineral frente a outras formas de ocupação, inclusive ante à necessidade de preservação ambiental, as demandas relativas à ocupação urbana e rural e a permanência e sobrevivência de populações tradicionais.
A proposta, que no momento se encontra em franca disputa por diferentes entidades ligadas ao setor mineral, se alinha a outras ações que requerem a máxima atenção da sociedade em todos os seus extratos: academia, movimentos sociais, políticos, assim como de todos os setores da sociedade civil organizada. Enquanto tenta avançar no Legislativo, o setor mineral segue agindo por dentro do governo Bolsonaro que, de modo macabro, implanta sem pudor suas promessas de campanha citadas no início desse manifesto: em decisão inédita, o General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI) autorizou a exploração de ouro em São Gabriel da Cachoeira, uma das regiões mais preservadas da Amazônia, apenas três dias após uma operação da Polícia Federal desmantelar uma operação ilegal de garimpo de ouro no Rio Madeira, com a apreensão e desinstalação de 130 balsas. Mais ainda, os beneficiários dessa autorização seriam empresários com histórico de crimes ambientais na Amazônia. A decisão se valia do fato de a área, conhecida como “Cabeça do Cachorro”, ser região de fronteira, algo totalmente fora do padrão convencional de licenciamentos desse tipo, especialmente em áreas preservadas. Após manifestações da Agência Nacional de Mineração (ANM), Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e de diversas entidades e ambientalistas da sociedade civil, o GSI recuou e cassou os atos de assentamento prévio.
A chegada de 2022 não esfriou os ânimos do governo federal de seguir desmantelando a já combalida estrutura regulatória mineral brasileira. Decreto assinado em 12 de Janeiro (no 10.935/2022) derrubava um dos últimos dispositivos capazes de impedir licenciamentos minerários em regiões de cavidades naturais, que protegia cavernas com grau máximo de relevância. Dentre outros pontos polêmicos, o documento prevê que essas estruturas naturais poderiam ser destruídas desde que autorizadas pelo órgão licenciador e que, para cada caverna destruída uma outra fosse preservada – algo que viola claramente o princípio da proibição do retrocesso, ou seja, retrocede a níveis de proteção anteriores, o que é inconstitucional. Após pedido do partido Rede Sustentabilidade, o ministro Ricardo Lewandowski suspendeu partes do decreto. Embora, em sua decisão, o jurista tenha lembrado que a exploração dessas áreas pode “ocasionar o desaparecimento de formações geológicas, marcadas por registros únicos de variações ambientais e constituídas ao longo de dezenas de milhares de anos, incluindo restos de animais extintos ou vestígios de ocupações pré-históricas”, a decisão é incompleta. A manutenção do art. 8º mantém a definição da relevância espeleológica sob influência dos ministros de Minas e Energia e Infraestrutura, além do art. 2º, que mantém a possibilidade de o empreendedor pedir a revisão da classificação da relevância já definida. O que fica, portanto, é um decreto incompleto que evoga a IN 02/2017, que estabelece a metodologia de classificação do grau de relevância das cavidades naturais sem substitutivo à altura. Essa instrução normativa tem sido fundamental para impedir o avanço de grandes empreendimentos como a fábrica da Heineken em Pedro Leopoldo (MG) e o Projeto Apolo, monumental projeto de mineração de ferro que visa explorar minério de ferro no Parque Nacional da Serra do Gandarela, importante sítio de paleotocas, no coração do Quadrilátero Ferrífero mineiro.
O que se observa é que o projeto de governo Bolsonaro segue em franca etapa de implementação: o garimpo em terras indígenas, o lobismo, a leniência com o meio ambiente e com as populações originárias seguem um plano não declarado, mas tacitamente implementado – e, talvez, de modo ainda mais vigoroso em face de uma dificuldade crescente que Jair Bolsonaro parece enfrentar nas pesquisas de intenção de voto para a reeleição. A boiada de Salles segue passando. O cenário se agrava. É preciso reagir. Urgente!
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Notas:
[1] O Caminho da Prosperidade Proposta de Plano de Governo. Disponível em: https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf
[2] Futuro ministro, Ricardo Salles é condenado em ação de improbidade. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2018/12/19/futuro-ministro-ricardo-salles-e-condenado-em-acao-de-improbidade.htm
[3] Ministro do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml
[4] Bolsonaro diz que pode atender garimpeiros e mandar Forças Armadas à Serra Pelada. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/10/01/interna-brasil,793053/bolsonaro-diz-que-pode-atender-garimpeiros-e-mandar-forcas-armadas-a-s.shtml, 05/09/2019
[5] Constituição Federal, Capítulo VI, Artigo 225.
[6] Parte do material apreendido, inclusive 131 mil m3 de madeira, foi liberada no último dia 19 de janeiro pelo desembargador do Tribunal Federal Regional da 1ª Região (TRF – 1), Ney Bello. O magistrado atendeu a um pedido da empresa MDP transportes, representada pelo advogado Frederick Wassef, amigo da família Bolsonaro, que se tornou conhecido por dar esconderijo a Fabrício Queiroz, preso por atuar no caso das “rachadinhas” do filho do Presidente, Flávio Bolsonaro.
[7] Destacamos aqui a nota emitida pela LEIA – A Associação dos Observadores do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural de Minas Gerais , disponível em: https://leia.org.br/proposta-de-codigo-da-mineracao-expande-conflitos-e-afrouxa-politica-nacional-de-seguranca-de-barragens/, embasada pela Nota Técnica da Associação Brasileira de Antropologia sobre a proposta do novo código da mineração, disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/nota-da-associacao-brasileira-de-antropologia-aba-sobre-a-proposta-do-novo-codigo-da-mineracao/
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Daniel Neri, Juliano Costa, Álvaro Crosta e Leda Gitahy, Instituto de Geociências da Unicamp.