O filme Bacurau deveria anteceder a entrega do documento que o Human Rights Watch pretende entregar (em vão) ao governo brasileiro. Ele não recebe. Mas também ao Congresso, à Cúpula de Ação Climática em Nova York, ao Sínodo da Amazônia no Vaticano, em 27 de outubro, que o presidente desconsidera, e ao resto do mundo. Com o título Máfias do Ipê, o relatório de 169 páginas explica como a violência e a impunidade de redes criminosas impulsionam o desmatamento na Amazônia brasileira. Foram mais de 170 entrevistas, incluindo sessenta membros de povos indígenas e moradores do Maranhão, Pará, Rondônia. Embora a violência por madeireiros da Amazônia não tenha começado no governo Bolsonaro, a apresentação do relatório abre com um frase do presidente: “Não vou admitir mais o Ibama na área, essa festa vai acabar”. Há outra frase clássica de Bolsonaro: “O cocozinho petrificado dos índios impede a continuidade das obras”. Como em Bacurau, o jornalista Dodô Azevedo pergunta: “Por que nosso povo não pega em armas e se defende do genocídio?”
O relatório mostra que, nos últimos anos, mais de 3 mil pessoas foram assassinadas na Amazônia sem que nenhuma justiça passasse por perto, investigasse os criminosos. Dos 3 mil casos, apenas catorze foram levados ao tribunal. O processo dos assassinos da religiosa Dorothy Stang, em 2005, ainda corre na Justiça. Os crimes são certeiros, com armas de fogo, mas quando os criminosos querem enviar “mensagem” e intimidar, torturam com arma branca e deixam as marcas nos corpos. Não se consegue uma autópsia nos corpos. Nem as ameaças, inúmeras, as autoridades registram.
As impunidades vigoram e, em oito meses, o desmatamento na Amazônia quase dobrou; só de janeiro a agosto deste ano, foi desmatada uma área equivalente à do Rio de Janeiro – 5.645,60 km², além de desfalques ambientais em outros dez municípios. O ex-ministro do Meio Ambiente entre 1993 e 1994, Rubens Ricupero, fala da imensa frustração e da atual “coligação de forças malignas”. A ativista Sonia Guajajara levanta a campanha ‘Sangue Indígena, Nenhuma Gota Mais’”, convocando para a Marcha das Mulheres Indígenas em 7 de dezembro. O condutor da pesquisa para a HRW, Cesar Muñoz Acebes, diz que Bolsonaro deu carta branca às redes criminosas que atacam a Amazônia. O diretor de Direitos Humanos da HRW, Daniel Wilkinson, afirma que as redes criminosas têm capacidade logística de coordenar a extração e o processamento de madeira ilegal, intimidando quem tenta impedi-los. E João Paulo Capobianco, biólogo e ativista da área ambiental, afirma que os recursos para a Amazônia minguaram no governo Bolsonaro e é categórico: “Temos necessidade urgente de uma ação ou em pouco tempo essa área, junto com as pessoas que habitam ali, será minada”.
Faroeste distópico, Bacurau é o Brasil profundo, é o sertão de Euclides da Cunha atacado por estranhos, é a Amazônia de hoje. Pássaro noturno do cerrado brasileiro que enxerga no escuro, Bacurau é a metáfora para a revolta dos habitantes do povoado que, transposta para a Amazônia, poderia cumprir a indignação de Dodô Azevedo: “Por que se escolhe um ônibus lotado de trabalhadores para atear fogo? Por que não incendiamos os jardins de quem promove e ridiculariza os incêndios na Amazônia?”
A Amazônia não é floresta vazia. Capobianco reage, a degradação não é só ecológica, é contra a comunidade que vive nesse continente que é a Amazônia. “E o Brasil já tinha provado em 2014 ser capaz de gerenciar esse continente com dez agentes de estados municipais, o desmatamento havia despencado para para 4 mil k². Tínhamos 100 mil km² de reservas indígenas, mais de 250 mil km² de reservas extrativistas, o governo criou opção de planejamento com dados de satélites e governamentais. Acabou.”
Sonia Guajajara não entende, “mais de 80% da população brasileira é contra a mineração em terras indígenas e contra o desmatamento, por que temos uma PEC 187 pronta a ser aprovada permitindo arrendar terras para mineração? Por que chegamos a esse ponto? Ninguém percebe que isso só vai aumentar o veneno nos alimentos, a expansão agrícola na Amazônia, o desmatamento e a extinção dos povos indígenas que são os guardiões da floresta?” Ela se revolta quando o governo afirma que povos indígenas não têm capacidade e alerta para a população não comprar materiais dessas áreas, pesquisar de onde vêm o couro do seu sapato, o cacau do chocolate, a ração dos cachorros, a carne que se consome em casa. “Boicote mesmo, aos ilegais, às declarações do presidente que aumenta a tragédia ambiental, a ganância, o egoísmo e o ódio. Os índios querem sensibilizar a sociedade para esse olhar mais fraterno, mais solidário. Somos um povo ameaçado, um indígena é assassinado e não acontece nada, as terras são griladas, as madeiras ilegais circulam livres e, de novo, nada acontece”.
A ativista portuguesa Ana Filgueiras pergunta: se até as doze caminhonetes da Funai foram retiradas da área, por que os recursos não são dados nas mãos dos povos indígenas para gerirem suas terras? E se defenderem… Capobianco lastima: “Esta opção já estava em prática lá atrás, o atual governo barrou a possibilidade”.
Wilkinson lamenta: “Em 2004, o Brasil era um modelo no mundo, diminuiu o desmatamento, mas a política atual, demitindo 21 dos 27 diretores regionais da Amazônia, deixa a região livre para violações ambientais e humanas. Precisamos de uma coordenação entre os defensores da floresta e o apoio do estado, com CPIs e audiências públicas.”
Rubens Ricupero sabe que é preciso agir. “Porque o governo se embrulha na bandeira – e Johnson já dizia que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas -, mas no Brasil é o penúltimo, porque o primeiro é Deus…invocações aos altíssimos. Agora temos de agir, a Assembléia Geral da ONU vai acontecer e a Amazônia será tema do Brasil, que vai falar ‘contra a cobiça dos estrangeiros’ sem tocar no problema real, que passa ao largo. Temos de nos defender é de nós mesmos, as grilagens, os criminosos, os extratores de madeira ilegal e assassinos são brasileiros. Essa tragédia ambiental vai afetar o agronegócio, se as exportadoras brasileiras se convencerem disso podemos ter alguma chance de cooperação dentro e fora do país, e o lobby do agronegócio é forte. Eles são a chave do negócio”.
Eleita uma das cinquenta pessoas que poderiam salvar o planeta, Marina Silva se sensibiliza com os apoios que vem recebendo de várias entidades, ressalta a Associação Brasileira de Imprensa, também na mira de Bolsonaro, e diz que o relatório do HRW é uma ferramenta importantíssima: “Ao enfraquecer o bioma, os índios se enfraquecem e a floresta fica vulnerável – mas o governo não tem a coragem de recebê-lo porque é um documento que fala e prova com números a violência contra os defensores da floresta. Então vamos ter boicote aos produtos brasileiros no exterior. Se o governo não se interessa pelo índio, se não afasta a rede de criminosos visíveis e invisíveis, então vai ter de se interessar pelo seu negócio. Quando o Brasil crescia 3% ao ano, a floresta estava sendo conservada, agora estamos numa recessão técnica, a Amazônia devastada e nós, nos afastando do estado de direito da democracia com os índios expostos à barbárie. Há duas maneiras de se acabar com os povos tradicionais: pela assimilação cultural ou pela morte. Não podemos acabar com a legislação. Não podemos ficar à mercê das ideologias de plantão.”
Enquanto o governo brasileiro finge que não vê a tragédia Bacurau-Amazônia, a Fondation Cartier em Paris promove uma exposição espetacular, Nous, Les Arbres (Nós, as Árvores), que começou em 12 de julho e vai até 10 de novembro, reunindo uma comunidade de artistas, botânicos, filósofos em torno da árvore, o que inclui desenhos dos próprios índios, instalação de Luiz Zerbini (“Coisas do Mundo”) e a pesquisa fotográfica dos Ianomâmis que data dos anos 1970 pela suíça de pais judeus Claudia Andujar. Andujar também tem uma exposição de fotografias no Instituto Moreira Salles. A Fondation Cartier mostra, é claro, vídeos com a destruição ambiental do planeta, foco na Amazônia.
O governo ignora e não recua de suas ações destruidoras, mas o mundo está de olho. O Brasil também virou capa, em 3 de agosto, da revista The Economist, “Deathwatch for the Amazon – the threat of runaway deforestation” (Vigilância da morte na Amazônia – a ameaça do desmatamento descontrolado). E o mundo logo vai receber o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau. Impossível não fazer a relação.
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Norma Couri é jornalista.