Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Não estamos queimando só a mata

(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Uma revelação assistir à entrevista de Alberto Dines no Roda Viva (19/03/2012) na semana em que a pesquisa Datafolha concluiu que eleitores do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Recife confiam mais no jornalismo profissional — impresso, TV ou rádio — do que nas redes sociais. Foi perceber que vamos regredir 40 anos em 4 como Fernando Abrúcio escreveu no Valor (9/10/20), parafraseando JK que prometeu “50 anos em 5”. Dines completava 80 anos de vida e 50 de profissão. Os entrevistadores do Roda Viva eram na maioria jornalistas profissionais, Eugênio Bucci, Tereza Cruvinel, Maria Cristina Fernandes, Laura Capriglione e o neto de Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), o advogado Manoel Alceu Ferreira. Paulo Caruso registrava no traço e Mario Sergio Conti estava no comando. Dines e os jornalistas falavam em união, garra para virar o mundo, compromisso com os fatos e a verdade, criar novos veículos de mídia, a crença de um Brasil melhor.

É fácil entender que não vamos queimar só 40 anos. Estamos queimando um século.

Bolsonaro diz que está feliz em lavar a lava-jato a jato porque neste governo não há corrupção. Há mais que evidências de rachadinhas entre os Bolsonaro, movimentações mais do que suspeitas, depósitos de milícias, doações irregulares com dinheiro vivo, disparos multiplicados de fake news, provas compartilhadas pelo antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), a própria investigação do presidente para controlar a Polícia Federal, os imóveis e mais imóveis das ex-mulheres, e a pergunta que ficou no ar: “Por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle?”.

Bolsonaro tem medo do xilindró e se virou pelo avesso ao desprezar arruaceiros, saras winters, os terrivelmente evangélicos para apostar em quem “toma tubaína comigo no fim de semana”. E descobrimos que seu companheiro de tubaína fez 2 pós-doutorados antes do doutorado, que o doutorado foi concluído às pressas 5 dias antes de ser escolhido por Jair, que os pós-doutorados eram cursos de extensão de uma semana, que a dissertação de mestrado tem plágios primários, e suas passagens pelas universidades de Espanha, Portugal e Itália são controversas. Se para conhecer uma pessoa temos de conhecer quem toma tubaína com ele, é só voltar um ano e nove meses para descobrir plágios e cursos fictícios no exterior dos indicados para o MEC: Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Carlos Alberto Decotelli.

A frase da semana foi “nossa mata está intacta” e nesse pormenor o ministro Ricardo Salles também nunca se envergonhou de dizer indevidamente que era aluno do mestrado em Yale. Ele passava a boiada mas quem evitaria as queimadas, para a ministra Tereza Cristina da Agricultura, seria “o boi bombeiro”. Este foi o ano do maior registro de queimadas na Amazônia e no Pantanal. Para o governo, é o melhor momento da Amazônia “dos últimos 18 anos”. A União Européia não quer ratificar o acordo com o Mercosul e nem saber de produtos não sustentáveis que vêm do lado de cá. O garimpo ilegal se acelera, os grileiros espalham as queimadas, os bois pastam à vontade mas não comem a mata seca na medida em que o fogo acelera. Bolsonaro quer unir Salles à Tereza, Meio Ambiente à Agricultura. Também, juntar o ICMBio, que cuida de centenas de áreas protegidas, ao IBAMA, que se ocupa da fiscalização. O resultado é desmobilização dos dois.

O que deixa de cabelo em pé um dos mais famosos cientistas da área de aquecimento global, Carlos Nobre. Os infratores estão empoderados, pelo menos 11 candidatos a prefeitos nas cidades com maior desmatamento foram multados por crimes ambientais. E a intolerância a indígenas mais do que dobrou em 2019:

Esta é a década do deserto,” disse Nobre em entrevista ao Observatório da Imprensa esta semana. “São 2 milhões de km2 desmatados. Nisso, 40% da Amazonia pode virar savana. Estamos no ponto de não retorno da savanização. As queimadas são 90% ilegais, e ainda há suspeitas de que a grilagem esteja interligada ao narcotráfico. Uma portaria de 2019 retirou a ordem de destruir máquinas pesadas e tratores apreendidos no processo de desmate ilegal. Nem estamos falando dos indígenas que povoavam o Brasil em número de 10 a 15 milhões em 22/04/1500 quando Cabral chegou e hoje não chegam a 15 mil, mortos pelas doenças levadas pelos brancos. Essa união é uma péssima idéia, tanto no caso do Ibama e do ICMBio, como dos ministérios, um defende os biomas e proteção do meio ambiente, o outro, a expansão das fronteiras da agricultura. Um tiro no pé. Atenção, nós somos a primeira geração que recebeu o impacto ambiental e a última que ainda pode fazer alguma coisa para reverter tudo”.

Bolsonaro diz que o Brasil foi o melhor país no combate ao vírus. E temos até hoje um patético general à frente do Ministério da Saúde que, quando chegou ali como interino em maio deste ano, “nem sabia o que era o SUS”. Mas encontrou um país com 13 mil mortos pela Covid que em cinco meses viraram 150 mil, 5 milhões de infectados.

Deus é outra questão neste país laico. Bolsonaro pede voto “a quem tem Deus no coração” citando o slogan do Integralismo. E as escolhas do presidente no STF para o lugar do decano Celso de Melo, e no TCU para o lugar de Marco Aurélio Mello, seriam ou “o terrivelmente evangélico” ou “o companheiro de tubaína”. O resultado é que podem ir para o ralo as decisões sobre aborto em geral e, em especial, o aborto de anencéfalos. Além do resto das conquistas do século XXI. Em nome de Deus, Bolsonaro já quis as verbas do Fundeb para a Bolsa Cidadã e agora quer o dinheiro para as escolas ligadas à Igrejas. Da Educação já requisitou R$ 1, 5 bilhão para obras.

A Cultura anda por baixo. Os livros são taxados em 20 % ou incendiados como aconteceu com Paulo Coelho por ter criticado o governo. “Como esquecer a destruição das bibliotecas de Alexandria e Sarajevo, crimes de Savonarola e as práticas do nacional-socialismo?”, reagiu em nota a Academia Brasileira de Letras onde Coelho ocupa a cadeira 21, lembrando a intolerância religiosa e o nazismo. Às vezes o presidente do STF pode tolher as manobras políticas de Bolsonaro para escapar do xilindró ou do impeachment. E outro ministro, Dias Toffoli, como acaba de fazer, pode pedir explicações ao pastor presbiteriano que ocupa a pasta da Educação, Milton Ribeiro, sobre sua qualificação a homossexuais “desajustados em famílias desajustadas”.

Mas não foi o governo quem socorreu a Cinemateca Brasileira, próxima vítima do descaso absoluto onde os funcionários trabalham de graça para não deixar queimar o maior acervo audiovisual da América do Sul. A Cinemateca vai receber o prêmio Humanidade da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo que estreia sem verba e virtual com 200 filmes entre os dias 22 de outubro e 4 de novembro.

“O cinema corre o mundo, faz o papel do Itamaraty divulgando o Brasil” diz a diretora da Mostra, Renata de Almeida, ao justificar o prêmio à Cinemateca na conferência de imprensa deste sábado. Não estamos muito longe das expulsões que ocorriam no Itamaraty durante a ditadura de 1964 a 1985, como aconteceu com o poeta Vinicius de Morais ou o cineasta Jom Tob Azulay. “O mundo não é nosso, é tudo emprestado”, diz Renata, citando o líder indígena e ambientalista Ailton Krenac, “é nosso dever manter tudo para as próximas gerações”.

Memória é o que o governo e Bolsonaro desprezam. Mas o vice-presidente Hamilton Mourão, em entrevista ao jornal alemão Deutsche Welle, fez questão de preservar a memória do coronel torturador Carlos Alberto Brilhante que o Dossiê da Ditadura relaciona a 60 casos de desaparecidos em São Paulo. Os relatos são de um militar “facínora” e “cruel”. Segundo Mourão, Ustra era “um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados“. Para Mourão, muitas pessoas que trabalharam nos anos 60 e 70 contra guerrilhas urbanas foram “injustamente acusadas de serem torturadoras”.

O Brasil não se dobrou só à direita, como diz o título do livro do cientista político Jairo Nicolau lançado semana passada. O Brasil perdeu o rumo. Perdeu o fio da modernidade, o elo com o futuro. A americana Louise Glück venceu o prêmio Nobel de literatura com poemas diretos, limpos, com referências à mitologia greco-romana. Nós? Nos confrontamos com um ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos ocupado pela pré-histórica Damares Alves — que deve se candidatar ao Senado pelo PP em 2022.

Nesse pântano cultural, social, religioso e político que vivemos, dá orgulho reviver o poder e o papel da imprensa no Roda Viva de 2012 com entrevistadores de peso, e Alberto Dines na berlinda.

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Norma Couri é jornalista.